A Insustentável leveza de ser Lyu

O baiano que fez o travesti Yolanda em Ó Pai Ó criou fama na ambigüidade do masculino e do feminino

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

O que dizer de seu José Ari, um velho marinheiro ancorado em valores rígidos do passado, vendo seu filho se beijando – ou melhor, se lambendo e se chupando -, se agarrando com um barbado rastafari, em uma tela de sete metros, diante de uma platéia de milhões? Logo o seu José, tido como carrancudo pela família, que não fazia questão alguma de disfarçar a ojeriza por gays e negros, logo ele tendo que se submeter à visão do filho usando salto alto e minissaia esvoaçante e – crime dos crimes – em intercurso de pura lascívia com outro marmanjo.

E seu Zé viu. E o filho saiu de Ó Paí Ó com outro batismo além do que ele havia dado de Lyuarison Bispo de Freitas. Virou Yolanda, celebrizado como um travesti que nunca foi na realidade, reconhecido nas ruas, ídolo, uma fechação só. O ator, coreógrafo e dançarino Lyu, uma das mais surpreendentes revelações do filme que retrata um dia de carnaval em um cortiço do Centro Histórico de Salvador, tem o jeito de cruzar as pernas de uma dama. Fala rápido e estalando os dedos, como se estivesse fazendo truques de mágica. Transformou Iolanda em uma figura andrógina, sem perder a sensualidade que pode ser de homem ou de mulher. E justamente nessa ambigüidade que seria o desespero do pai está a riqueza do seu talento.

Um arabesque bem feito determinou o rompimento de Lyu com os dogmas machistas de José Ari e, consequentemente, com as barreiras familiares a sua vocação natural. O velho achava que sua apresentação na festa de fim de ano da escola seria praticando o katá do caratê. Chegou lá de surpresa e encontrou o primogênito totalmente empolgado em uma sessão de balé. A partir daquele dia, o marinheiro transformou o amor de pai em hostilidade.

Cearense de Quixeramobim, oficial da marinha na reserva, é apontado pelo filho, entre os adjetivos mais leves, como rude e preconceituoso. Branco, de cabelos pretos e lisos, parecido com um oriental, casou com uma cabocla, mas não conseguia admitir nenhum dos filhos como negro. Matriculou Lyuarison na aula de caratê em Paripe, aos nove anos, mas o menino ficou encantado pelos movimentos na barra da academia de balé, que era vizinha.

Começou a aprender mais do pas de deux das aulas clandestinas, do que do catá da arte marcial. Na apresentação de fim de ano na escola, o pai chegou de surpresa para ver golpes que lembrassem Bruce Lee, mas testemunhou a docilidade do Lago dos Cisnes de um Barishinikov mirim. Desse episódio, ficou um mês sem poder falar em casa, toda vez que o pai estivesse presente.

Madame Satã

Ser um homem feminino nunca feriu o lado masculino de Lyuarison. Por isso, ele pode muito bem alternar momentos de extrema docilidade com instantes de fúria. Como se fora uma Madame Satã com menos extravagância, Lyu também é capaz de quebrar pau em público. Os anos de treinamento em capoeira e boxe tailandês protegem a aparente fragilidade no rosto de olhos claros e rasgados, de cílios longos, e a cabeleira grande (que não é o popular megahair, ele garante). Lyu cai na porrada, se necessário, e pelo menos duas vezes isso aconteceu. Numa edição da festa Farol Folia, um rapaz tentou agredir seu irmão e quando ele percebeu já estava tirando sangue com socos e pontapés do adversário. Numa boate de Salvador, famosa pelo público GLS, um homem engatou uma cantada pedindo para ele pagar champanhe. Ele atendeu, mas não deu muita atenção.

Em seguida, o rapaz puxou o cabelo de Lyu e o chamou de viadinho, atitude que não é considerada galanteio em nenhum manual de sedução, muito menos na cartilha de bons modos de Lyu. Menos do que atiçar a libido dele, despertou o lado gladiador do artista.

A briga, se fosse traduzida em linguagem verbal, seria um monólogo de porrada, onde a vítima recebeu sonoras bordoadas e terminou sangrando já fora da boate.

10 cenas em uma

Para integrar o elenco do filme também foi uma luta, numa audição como nunca passara como bailarino. Estava em um ensaio de balé, quando recebeu uma ligação da trançadeira Negra Jhô, avisando que estavam procurando um travesti para interpretar um papel numa gravação. O teste já estava acontecendo, numa das salas do hotel Convento do Carmo. Chegou correndo e esbaforido no salão, abriu a porta já dizendo “colé de mermo”. Além da diretora Monique Gardenberg, deu de cara com Stênio Garcia, Dira Paes, Emanuelle Araújo, Lázaro Ramos e metade do Bando de Teatro Olodum, que já o conhecia. Alguns comentaram com a cineasta que aquele era o cara. Ela resolveu confirmar do jeito mais difícil: “agora, você vai fazer 10 cenas, de Tony Ramos a Vera Fischer”.

Ganhou o papel de vez quando tirou um salto de 10 centímetros dos pés de uma produtora, saiu de cena, calçou e quando voltou já era fazendo a pose que virou característica de sua personagem, com um braço apoiado na parede e uma perna ligeiramente erguida. “Nunca vi um artista completo como você”, exclamou o veterano Stênio Garcia, sem imaginar que ele tinha acabado de chegar de ônibus na audição sem qualquer preparação anterior para o teste.

O laboratório para o papel foi com reuniões de travestis no Grupo Gay da Bahia, mas principalmente aprendendo com os passos da mãe e da irmã. Aprender a se equilibrar no salto é como saber colocar o peso na planta do pé e não no calcanhar, do mesmo jeito em que dá pra dividir as porções feminina e masculina de sua personalidade complexa. “Uma mulher no salto fica muito mais poderosa”.

O filme foi gravado em uma semana e meia, no período do carnaval de 2006, só que a notoriedade do travesti das telas resiste às cinzas de qualquer quarta-feira. Lyu não tem pudores de ser o centro das atenções e até sinaliza quando alguém grita seu nome na rua, ou melhor, o nome da personagem mais famosa que interpretou: “Yolandaaaaaaaaaaaa”, chama um guri na calçada. Um pouco adiante, ele salta do carro e a menina aponta para a mãe: olhe a Iolanda ali. É uma festa da espontaneidade como se vê no cortiço do filme.

Aí ele completa dizendo que faz muito sucesso com as crianças – uma admiração incompreensível para uma personagem que vive cenas tórridas daquilo que já foi chamado de “o amor que não ousa dizer o nome”. Lyu diz gostar do assédio, com exceção da parte que ele vem acompanhado de puxões e beliscões. Por via das dúvidas, prefere evitar usar ônibus coletivo como meio de transporte.

Pagode

Outro dia tentou fazer um cooper na praia, com o cabelo preso e óculos escuros e na corrida percebeu que uma criança tinha reconhecido. Na volta, já havia uma pequena legião de meninos gritando Yolanda, Yolanda. Precisou entrar na roda do pagode, sambar um pouco, suportar alguns arranhões e depois sair correndo, como tinha chegado. Os que consideram ele mulher ou travesti, depois pedem desculpa com uma justificativa que faz Lyu ganhar o dia: é que você tem o rosto tão lindo…

Certamente, seu José Ari não ficaria satisfeito com esse tipo de elogio. Ele só começou a dar algum crédito quando o filho já fazia parte do Balé Folclórico da Bahia e se apresentou no Teatro Castro Alves, na comemoração de 10 anos da companhia. Sentado na primeira fila, o turrão chorou emocionado ao perceber que havia arte nos movimentos. Mesmo com o relacionamento conturbado, o pai parece ser uma fonte de inspiração. Involuntariamente, Lyu vai contando episódios marcantes justamente com o velho, como quando pediu uma calça jeans de uma vitrine, aos 12 anos, e ele respondeu que daria uma calça por ano para a escola e que no dia em que ele trabalhasse poderia comprar o que quisesse. “Naquela hora, não sabia se sentia raiva dele, ou de mim, por precisar dele”, recorda.

O resultado foi que começou a fazer biscates como engraxate e lavar carro no shopping do Rio de Janeiro, perto de onde moraram alguns anos, até o pai chegar com o próprio carro e descobrir como o filho ganhava os trocados e chorar junto com ele pela lição. Hoje, o sustento está garantido. Enquanto aguarda o início das gravações do seriado na Rede Globo, ele vai se apresentando na comédia No Buzu, no teatro Caballeros de Santiago. O ator-dançarino saca o cartão de banco com a logomarca da Globo, tão estilizado que tem as cores do arco-íris impressas. “A Globo é gay, meu amor”, brinca o artista contratado para participar do seriado inspirado no filme, para depois dar uma gargalhada característica.

Aos 29 anos de idade, Lyuarison Bispo, espírita e candomblecista, filho de Iansã com Oxum e Oxumaré, passeia pelo Dique do Tororó, nomeando orixá por orixá na obra metalizada de Tati Moreno. Mas já carimbou o passaporte com os vistos de entrada no mundo inteiro. Como dançarino do Balé Folclórico da Bahia, ampliou as fronteiras na Europa, Ásia e América do Norte. Nos países ditos desenvolvidos nunca encontrou um artigo abundante considerado no Brasil: o calor humano, a sensação de conversar podendo tocar o interlocutor e olhando no olho.

Lembra de um desembarque em Amsterdam, na Holanda, quando sentiu o racismo não-verbalizado, uma das mais cruéis formas de preconceito. No aeroporto, o grupo do balé, dezenas de negros e negras com aspecto imponente, estava guarnecido por policiais. Logo, os passageiros começaram a apontar como se estivessem escoltados por algum crime. No hotel, só conseguiram admiração dos funcionários, depois que começaram a aparecer as reportagens sobre o grupo no jornal e na televisão.

Atualmente, Lyu só participa do balé folclórico como convidado em apresentações especiais. Seu trabalho como coreógrafo ficou conhecido depois da cena da dança coletiva no bar de Ó Pai Ó. Com a experiência no cinema, Lyu teve que se adaptar à ambigüidade de ser homem e mulher. Em determinado momento, se perguntado sobre Reginaldo, o namorado dele no filme, ele corrige: o namorado de Yolanda… Só que fica radiante quando alguém o chama de Yolanda no meio da rua. “Você viu? Você viu o cara no ônibus? Você viu o guri falando?” Parece que todo mundo viu e memorizou. Vai saber o que seu José Ari, lá em Fortaleza, está achando dessa fama toda.

Avimaria, Painho

Sargento reformado da PM, o babalorixá Bel de Oxum inspirou o personagem de Chico Anysio e sente falta de estar na mídia

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Antes mesmo da virada para o ano de 2008, quando muitos babalorixás vaticinavam a regência por Exu, Obaluaê, Logun Edé, Oxumaré e um panteão de orixás tão diverso como um tabuleiro de baiana de acarajé, Bel de Oxum preferiu calar. E não fez isso por omissão, mas com uma justificativa capaz de convencer até a mais carola das evangélicas: “não posso falar sobre uma coisa que ainda não começou”. Alguns dias depois, consultas feitas e confirmadas, o baiano Bel de Oxum que já foi considerado símbolo nacional de pai-de-santo, uma espécie de oráculo religioso, capaz de mobilizar uma equipe de reportagem do Rio Grande do Sul para uma consulta em Salvador só para saberem o time campeão gaúcho naquele ano, dava o veredicto: “o ano é de predominância de Ogum com influência de Xangô”.

Palavra de quem já foi jurado de programa de auditório, cantor e compositor, confeiteiro de bolo e até policial militar, mas encontrou-se com a fama depois de inspirar uma caricatura audiovisual criada por Chico Anysio, no que pode ter sido o personagem mais engraçado de sua carreira de humorista. Como o Painho, ele também está fora da mídia há mais de 10 anos, um incômodo exílio da notoriedade pública.

O candomblé de pai Bel de Oxum – como os vizinhos se referem – é uma casa aconchegante, onde ele faz questão de ser um anfitrião despojado e gentil. Chegar até seu terreiro, numa das muitas ribanceiras de Paripe, no subúrbio ferroviário de Salvador, é aventura que exige mapa e um veículo com tração nas quatro rodas. A rua esburacada como se tivesse sido palco de guerra, alvejada por granadas do descaso, é o oposto da brancura com que o muro se revela no alto da Gameleira. Bem perto, uma igreja batista Deus é Fiel, que nunca recebeu nem a metade dos políticos, artistas e empresários, de Salvador e de outras capitais brasileiras, que vão ao terreiro em busca da discrição.

Bel não renega a inspiração, seu jeito realmente lembra aquela coisa mole com que Chico Anysio interpretava o Painho. “Vamos entrando, vamos tomar um cafezinho”, convida. O tratamento intimista é o mesmo que notabilizou a personagem que falava um “aviiiimaria” arrastado e ficava com os pezinhos descansando em almofadas. Dos quase 200 tipos cômicos criados, Chico Anysio declarou em mais de uma oportunidade que Painho era o seu predileto. Ruy de Todos os Santos atendia celebridades em seu terreiro (do mesmo jeito que o babalaô real) e ficou marcado pelo bordão: “Afffeee, tô morta. Eu sou doido por essa neguinha”. Bel de Oxum apenas acha exagerado o fato de seu clone “só pensar naquilo”.

Contato imediato

Foram poucos minutos de contato para o comediante captar o estilo solto do babalaô. Este apresentava o programa Cruzeiro e você no caminho dos orixás, nas madrugadas da rádio Cruzeiro AM, no final da década 70 e início dos anos 80. Nunca acatou sugestões para fazer a produção gravada, por causa da hora inconveniente. Preferia sempre ao vivo para poder debater com os ouvintes. Chico Anysio chegara para uma entrevista no programa anterior e terminou se impressionando com o despojamento com que o pai-de-santo tratava dos temas da religião.

Na capa do LP de cânticos afro Xirê aos Orixás, lançado há uns 25 anos, Bel está sentado em uma poltrona de cana-da-índia, numa posição refestelada característica do Painho. Ao seu lado, as ekedes, que viraram referência de discípulos, mas cujo nome foi subvertido. Bel de Oxum era seguido por uma abian (nome dado a uma pré-noviça), mas Chico Anísio entendeu a expressão como cunhã. Hoje, a menina que inspirou o humorista já é mãe de família.

O babalorixá popstar virou jurado de programas de auditório, como o de Tia Arilma, e gostava de curtir os antigos carnavais de escolas de samba em Salvador fazendo desfiles de alegorias. Passava oito meses aprontando uma fantasia com o objetivo de ganhar o concurso.

Glória de previsões

Bel já teve seus momentos de glória por antecipar, em páginas de jornal, os acontecimentos funestos do futuro. Em janeiro de 1985, previu a morte do presidente Tancredo Neves, mas não dizendo secamente que poderiam encomendar o caixão para o embarque no dia 21 de abril do mesmo ano. Ele respondeu que havia um egum (espírito da morte) no destino do mineiro, e que isso poderia ser desfeito apenas com um esforço espiritual muito grande.

Num jornal de 1° de janeiro de 1989, alertou para os perigos com o presidente da Assembléia Constituinte Ulysses Guimarães. O parlamentar resistiu até 12 de outubro de 1992, morrendo em um acidente de helicóptero, só que a credibilidade do babalorixá como prestidigitador não foi abalada. Em novembro de 1982, um jornal gaúcho procurou seus serviços para indicar o campeão de futebol do estado daquele ano e a manchete de esportes terminou saindo como se fosse para colocar a faixa no Internacional antecipadamente. E no final do certame, o Colorado realmente ganhou provando que os búzios de Bel são o melhor sistema tático já experimentado nos gramados brasileiros.

Bel é de Oxum, mas parece protegido por todos os orixás. Fez uma peregrinação pelo interior da Bahia, antes de se tornar o líder do concorrido terreiro Ylê Asé Omin Arim Masun (numa tradução livre, “as águas que fluem sem cessar”). Nos afluentes da religião, Gonçalo Oliveira deixou o trabalho como técnico em eletrônica consertando rádios na cidade de Castro Alves, onde nasceu, e foi conduzido pela correnteza do candomblé desde os 15 anos, quando fez a cabeça para Oxum no terreiro de pai José Fabriciano, em Muritiba. Morou em Santo Antônio de Jesus antes de migrar para Salvador e obter o respeito como divulgador do culto. Depois de receber o deká (um canudo que o torna apto), ainda precisou de mais sete anos de obrigações até abrir o próprio terreiro na Capelinha de São Caetano.

Bel foi elevado a membro fundador da Federação de Cultos Afros da Bahia, com a carteirinha que ainda guarda com o número 0027. Em quase 50 anos na religião, ele garante já ter iniciado mais de 100 filhos de santo. E o trabalho continua. Amanhã, precisa fazer um ebó que prometeu para um sargento, de tarde tem oferenda.

Bolos e presépios

Gonçalo Oliveira é policial da reserva e garante que sua renda é praticamente toda do soldo de primeiro sargento. Na época em que estava na ativa, tinha uma obstinação por presépios. No Natal, suas criações adornavam a capelania da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros de Salvador. Atualmente, completa o orçamento fazendo bolos confeitados e bufês sob encomenda. Tem uma coleção de fotos de seus banquetes ornamentais, uma espécie de portifólio gastronômico para agradar os paladares, já que o espírito ele tem a receita de satisfação.

O babalorixá tem orgulho em exibir fotos da manifestação de Oxum em uma indumentária amarela, com um véu metálico cobrindo o rosto. Ele mostra o retrato e fica perguntando quem é a moça que está por trás da fantasia. Questiona e dá como pista o fato de qualquer um ali na sala da sua casa já tê-la visto. Depois de alguns minutos de insistência sem que a moça seja reconhecida, ele enfim se entrega. “Sou eu mesmo, rapazes”, comemora. “Vejam que coisa impressionante como o colo cresce”, vibra, apontando para o volume dos seios.

Depois de fazer uma visita recente ao terreiro, o paulista Marccelus Bragg, um dos fundadores do Grupo Gay da Bahia, escreveu que Bel de Oxum “continua o de sempre: inteligente, extrovertido e amado”.

No próximo dia 10, quando completar 63 anos, Bel vai continuar aparentando a jovialidade em cabelos que insistem em não ficar brancos. “É que minha Oxum é menina, é jovem”, justifica, sem falar em tinturas ou colorações.

Pequeno grande homem

Aos 25 anos, com 1,20m de altura, o anão Pepe, dançarino de pagode, tenta alcançar o ponto alto da carreira

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Acabaram-se os créditos do telefone celular do anão Pepe por isso ele liga e deixa chamando o suficiente para o interlocutor perceber que está tentando uma comunicação. É o chamado “dar um toque”, à espera de uma ligação de retorno. Pepe, que já fez um sucesso inversamente proporcional aos seus 1,20m de altura, como dançarino da banda de pagode Nossa Juventude, está impedido de ligar. Acabaram-se os créditos, mas ainda resta o questionamento dos fãs que o idolatravam quando a banda chegou a vender 400 mil CDs: onde foi parar o anãozinho?

Péricles Maciel Sampaio, 25 anos recém-completados no dia 1° de agosto, nunca vai passar totalmente despercebido por causa de sua condição física e o estranhamento que o povo não faz questão de esconder toda vez que se depara com um integrante de minorias. Só que desde o desligamento do grupo musical – por divergências de remuneração –  ele já não tem o mesmo “ibope” e, ao que parece, a banda também não porque não emplacou mais a vendagem nas alturas da época de sucesso. Para atingir o topo das paradas, quanta ironia, foi preciso encontrar um dançarino que precisa se esticar todo e ficar na ponta dos pés para alcançar o ferrolho do portão do prédio.

Pepe ganhou uma estatura de ídolo no carnaval do ano 2000, com a música Dig Dig, Lambe Lambe, onde era apresentado como um libidinoso em miniatura (“Sou Pepe safado, sou de Deus e todo mundo”). Junto com o vocalista Lu Costa, o primeiro CD vendeu mais de 350 mil cópias, onde o nanico dançarino, à época incensado como o “primeiro anão do pagode”, aparecia na capa carregado por outros três integrantes da banda. Saiu do grupo em 2003, por divergências sobre remuneração – aliás, os cachês de Pepe não eram proporcionais ao seu sucesso, eram mais compatíveis com seu tamanho. Os amigos mais próximos chegam a dizer, mas ele não confirma, que ganhava 30 reais por show.

Precisando cumprir uma agenda de 40 shows por mês, Pepe largou de vez a educação formal. A dedicação exclusiva aos palcos fez com que mudasse para a casa da banda, em Brotas, e abdicasse dos estudos na quarta série do ensino fundamental, com 16 anos de idade, em 1998. Já não tinha altos planos com a educação formal, por isso fugia das aulas para participar de ensaios e shows.

Pepe não deixa sem boné a cabeça, que parece desproporcional a largura dos ombros. É um recurso de jovialidade para sua mente assaltada por responsabilidades de adulto. Ele tem os olhos fundos e a aparência preocupada com o compromisso gigantesco da paternidade. Ultimamente, não consegue dormir direito e perdeu boa parte dos cerca de 40 quilos que apresenta como massa. A insônia e a inapetência são os sintomas físicos da falta de perspectiva. A tia confidencia que ele está muito agoniado, agitado, querendo logo voltar a trabalhar para sustentar Raiza, de 6 anos (que mora com a primeira mulher em Madre de Deus), e Lucas, de dois anos, que vive com a atual esposa na casa da sogra de Pepe.  “Quero dar o leite para as crianças e está difícil arrumar emprego para anão hoje”, lamenta ele, falando de uma realidade complicada, independentemente de estatura.

Ele procurou alternativas. Pretende agora cantar e dançar com o grupo Pepe do Gueto, que tem lançamento previsto para o dia 1° de setembro. O retorno para a banda Nossa Juventude não está descartado. Depende de um acordo amigável, que culmine na retirada de um processo judicial movido contra a banda. Uma indenização referente aos anos de trabalho é pedida, mas os empresários acenam com a possibilidade de firmar um contrato com o dançarino e recomeçar a parceria. Todos querem Pepe, que exibe um requebrado exótico para seu baixo centro de gravidade, equilibrando sua verve nos pés que calçam tênis infantis, n° 32.

Anão e pronto

Pepe é daqueles que desdenham da cartilha politicamente correta que recomenda chamar alguém em sua situação de portador de nanismo. Ele é anão e ponto final. Na família, não há precedentes de nanismo. A explicação para o seu congênito problema foi de que a mãe contraiu rubéola durante a gravidez. Dona Rosa tem 50 anos e também é mãe de Ana Paula, na normalidade de seus 1,58m, a filha mais velha.

O apartamento alugado em um prédio de transversal da Estrada da Rainha, na Baixa de Quintas, é a residência da mãe, dos dois filhos e de uma tia. Pepe já morou com a família em um bairro que soa como provocação: Pau Miúdo. Na sala de casa, dona Rosa faz questão de mostrar os recortes de jornais e revistas que guardou sobre o filho, além de cadernetas escolares preenchidas pela metade, já que ele abdicou do estudo prematuramente. Ela fala tudo o que pode sobre a vida profissional de Péricles, é daquelas que acham que a mentira tem perna curta. É mãe zelosa que parece excessivamente preocupada com os altos e baixos de sua carreira. Péricles Maciel Sampaio, entretanto, costuma procurar o pai, que mora no Cabula, quando precisa de conselhos.

Reduzido é o campo de trabalho para alguém com sua estatura. Ele, literalmente, precisa dar mais passos do que os outros adultos para conseguir se encaminhar no mercado. O primeiro trabalho de Péricles foi também no palco, na peça Salve-se Quem Puder, de Renato Piaba, a quem Pepe considera um padrinho artístico. Um amigo viu o anúncio nos classificados de jornal requisitando anão para trabalhar no teatro. Pepe fez o teste com o diretor Fernando Guerreiro e foi aprovado para ser o filho de Piaba na encenação. Depois, ele também atuou em propaganda do guaraná Brahma, que fazia alusão a Branca de Neve e os Sete Anões.

Pepe identifica a pequenez de certos pensamentos como a origem da discriminação. “Pode acontecer de pessoas que não gostam de ver o sucesso de outras e, com raiva, tentam atingir com este preconceito.” Só que, normalmente, a reação mais fácil é a da surpresa com o inusitado e muitos riem.

O dançarino também ri à toa, mas com o assédio das fãs. Ele sempre teve uma torcida feminina empolgada, mas como está “morando junto” com a mãe do segundo filho, prefere mudar de assunto se o tema é o fetiche que desperta nas tietes.

Pepe garante que encerrou a estatísticas de sedução, mas está disponível para trabalho como ator de comercial, ou garotinho-propaganda, como convém ser chamado. O celular de contato é o 8147-8592 e se alguém vir este número em algum visor de telefone é melhor ligar de volta. Trata-se de Pepe “dando um toque” porque os créditos acabaram.