O baiano que fez o travesti Yolanda em Ó Pai Ó criou fama na ambigüidade do masculino e do feminino
Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)
O que dizer de seu José Ari, um velho marinheiro ancorado em valores rígidos do passado, vendo seu filho se beijando – ou melhor, se lambendo e se chupando -, se agarrando com um barbado rastafari, em uma tela de sete metros, diante de uma platéia de milhões? Logo o seu José, tido como carrancudo pela família, que não fazia questão alguma de disfarçar a ojeriza por gays e negros, logo ele tendo que se submeter à visão do filho usando salto alto e minissaia esvoaçante e – crime dos crimes – em intercurso de pura lascívia com outro marmanjo.
E seu Zé viu. E o filho saiu de Ó Paí Ó com outro batismo além do que ele havia dado de Lyuarison Bispo de Freitas. Virou Yolanda, celebrizado como um travesti que nunca foi na realidade, reconhecido nas ruas, ídolo, uma fechação só. O ator, coreógrafo e dançarino Lyu, uma das mais surpreendentes revelações do filme que retrata um dia de carnaval em um cortiço do Centro Histórico de Salvador, tem o jeito de cruzar as pernas de uma dama. Fala rápido e estalando os dedos, como se estivesse fazendo truques de mágica. Transformou Iolanda em uma figura andrógina, sem perder a sensualidade que pode ser de homem ou de mulher. E justamente nessa ambigüidade que seria o desespero do pai está a riqueza do seu talento.
Um arabesque bem feito determinou o rompimento de Lyu com os dogmas machistas de José Ari e, consequentemente, com as barreiras familiares a sua vocação natural. O velho achava que sua apresentação na festa de fim de ano da escola seria praticando o katá do caratê. Chegou lá de surpresa e encontrou o primogênito totalmente empolgado em uma sessão de balé. A partir daquele dia, o marinheiro transformou o amor de pai em hostilidade.
Cearense de Quixeramobim, oficial da marinha na reserva, é apontado pelo filho, entre os adjetivos mais leves, como rude e preconceituoso. Branco, de cabelos pretos e lisos, parecido com um oriental, casou com uma cabocla, mas não conseguia admitir nenhum dos filhos como negro. Matriculou Lyuarison na aula de caratê em Paripe, aos nove anos, mas o menino ficou encantado pelos movimentos na barra da academia de balé, que era vizinha.
Começou a aprender mais do pas de deux das aulas clandestinas, do que do catá da arte marcial. Na apresentação de fim de ano na escola, o pai chegou de surpresa para ver golpes que lembrassem Bruce Lee, mas testemunhou a docilidade do Lago dos Cisnes de um Barishinikov mirim. Desse episódio, ficou um mês sem poder falar em casa, toda vez que o pai estivesse presente.
Madame Satã
Ser um homem feminino nunca feriu o lado masculino de Lyuarison. Por isso, ele pode muito bem alternar momentos de extrema docilidade com instantes de fúria. Como se fora uma Madame Satã com menos extravagância, Lyu também é capaz de quebrar pau em público. Os anos de treinamento em capoeira e boxe tailandês protegem a aparente fragilidade no rosto de olhos claros e rasgados, de cílios longos, e a cabeleira grande (que não é o popular megahair, ele garante). Lyu cai na porrada, se necessário, e pelo menos duas vezes isso aconteceu. Numa edição da festa Farol Folia, um rapaz tentou agredir seu irmão e quando ele percebeu já estava tirando sangue com socos e pontapés do adversário. Numa boate de Salvador, famosa pelo público GLS, um homem engatou uma cantada pedindo para ele pagar champanhe. Ele atendeu, mas não deu muita atenção.
Em seguida, o rapaz puxou o cabelo de Lyu e o chamou de viadinho, atitude que não é considerada galanteio em nenhum manual de sedução, muito menos na cartilha de bons modos de Lyu. Menos do que atiçar a libido dele, despertou o lado gladiador do artista.
A briga, se fosse traduzida em linguagem verbal, seria um monólogo de porrada, onde a vítima recebeu sonoras bordoadas e terminou sangrando já fora da boate.
10 cenas em uma
Para integrar o elenco do filme também foi uma luta, numa audição como nunca passara como bailarino. Estava em um ensaio de balé, quando recebeu uma ligação da trançadeira Negra Jhô, avisando que estavam procurando um travesti para interpretar um papel numa gravação. O teste já estava acontecendo, numa das salas do hotel Convento do Carmo. Chegou correndo e esbaforido no salão, abriu a porta já dizendo “colé de mermo”. Além da diretora Monique Gardenberg, deu de cara com Stênio Garcia, Dira Paes, Emanuelle Araújo, Lázaro Ramos e metade do Bando de Teatro Olodum, que já o conhecia. Alguns comentaram com a cineasta que aquele era o cara. Ela resolveu confirmar do jeito mais difícil: “agora, você vai fazer 10 cenas, de Tony Ramos a Vera Fischer”.
Ganhou o papel de vez quando tirou um salto de 10 centímetros dos pés de uma produtora, saiu de cena, calçou e quando voltou já era fazendo a pose que virou característica de sua personagem, com um braço apoiado na parede e uma perna ligeiramente erguida. “Nunca vi um artista completo como você”, exclamou o veterano Stênio Garcia, sem imaginar que ele tinha acabado de chegar de ônibus na audição sem qualquer preparação anterior para o teste.
O laboratório para o papel foi com reuniões de travestis no Grupo Gay da Bahia, mas principalmente aprendendo com os passos da mãe e da irmã. Aprender a se equilibrar no salto é como saber colocar o peso na planta do pé e não no calcanhar, do mesmo jeito em que dá pra dividir as porções feminina e masculina de sua personalidade complexa. “Uma mulher no salto fica muito mais poderosa”.
O filme foi gravado em uma semana e meia, no período do carnaval de 2006, só que a notoriedade do travesti das telas resiste às cinzas de qualquer quarta-feira. Lyu não tem pudores de ser o centro das atenções e até sinaliza quando alguém grita seu nome na rua, ou melhor, o nome da personagem mais famosa que interpretou: “Yolandaaaaaaaaaaaa”, chama um guri na calçada. Um pouco adiante, ele salta do carro e a menina aponta para a mãe: olhe a Iolanda ali. É uma festa da espontaneidade como se vê no cortiço do filme.
Aí ele completa dizendo que faz muito sucesso com as crianças – uma admiração incompreensível para uma personagem que vive cenas tórridas daquilo que já foi chamado de “o amor que não ousa dizer o nome”. Lyu diz gostar do assédio, com exceção da parte que ele vem acompanhado de puxões e beliscões. Por via das dúvidas, prefere evitar usar ônibus coletivo como meio de transporte.
Pagode
Outro dia tentou fazer um cooper na praia, com o cabelo preso e óculos escuros e na corrida percebeu que uma criança tinha reconhecido. Na volta, já havia uma pequena legião de meninos gritando Yolanda, Yolanda. Precisou entrar na roda do pagode, sambar um pouco, suportar alguns arranhões e depois sair correndo, como tinha chegado. Os que consideram ele mulher ou travesti, depois pedem desculpa com uma justificativa que faz Lyu ganhar o dia: é que você tem o rosto tão lindo…
Certamente, seu José Ari não ficaria satisfeito com esse tipo de elogio. Ele só começou a dar algum crédito quando o filho já fazia parte do Balé Folclórico da Bahia e se apresentou no Teatro Castro Alves, na comemoração de 10 anos da companhia. Sentado na primeira fila, o turrão chorou emocionado ao perceber que havia arte nos movimentos. Mesmo com o relacionamento conturbado, o pai parece ser uma fonte de inspiração. Involuntariamente, Lyu vai contando episódios marcantes justamente com o velho, como quando pediu uma calça jeans de uma vitrine, aos 12 anos, e ele respondeu que daria uma calça por ano para a escola e que no dia em que ele trabalhasse poderia comprar o que quisesse. “Naquela hora, não sabia se sentia raiva dele, ou de mim, por precisar dele”, recorda.
O resultado foi que começou a fazer biscates como engraxate e lavar carro no shopping do Rio de Janeiro, perto de onde moraram alguns anos, até o pai chegar com o próprio carro e descobrir como o filho ganhava os trocados e chorar junto com ele pela lição. Hoje, o sustento está garantido. Enquanto aguarda o início das gravações do seriado na Rede Globo, ele vai se apresentando na comédia No Buzu, no teatro Caballeros de Santiago. O ator-dançarino saca o cartão de banco com a logomarca da Globo, tão estilizado que tem as cores do arco-íris impressas. “A Globo é gay, meu amor”, brinca o artista contratado para participar do seriado inspirado no filme, para depois dar uma gargalhada característica.
Aos 29 anos de idade, Lyuarison Bispo, espírita e candomblecista, filho de Iansã com Oxum e Oxumaré, passeia pelo Dique do Tororó, nomeando orixá por orixá na obra metalizada de Tati Moreno. Mas já carimbou o passaporte com os vistos de entrada no mundo inteiro. Como dançarino do Balé Folclórico da Bahia, ampliou as fronteiras na Europa, Ásia e América do Norte. Nos países ditos desenvolvidos nunca encontrou um artigo abundante considerado no Brasil: o calor humano, a sensação de conversar podendo tocar o interlocutor e olhando no olho.
Lembra de um desembarque em Amsterdam, na Holanda, quando sentiu o racismo não-verbalizado, uma das mais cruéis formas de preconceito. No aeroporto, o grupo do balé, dezenas de negros e negras com aspecto imponente, estava guarnecido por policiais. Logo, os passageiros começaram a apontar como se estivessem escoltados por algum crime. No hotel, só conseguiram admiração dos funcionários, depois que começaram a aparecer as reportagens sobre o grupo no jornal e na televisão.
Atualmente, Lyu só participa do balé folclórico como convidado em apresentações especiais. Seu trabalho como coreógrafo ficou conhecido depois da cena da dança coletiva no bar de Ó Pai Ó. Com a experiência no cinema, Lyu teve que se adaptar à ambigüidade de ser homem e mulher. Em determinado momento, se perguntado sobre Reginaldo, o namorado dele no filme, ele corrige: o namorado de Yolanda… Só que fica radiante quando alguém o chama de Yolanda no meio da rua. “Você viu? Você viu o cara no ônibus? Você viu o guri falando?” Parece que todo mundo viu e memorizou. Vai saber o que seu José Ari, lá em Fortaleza, está achando dessa fama toda.