Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)
O cão escuro segue o dono aonde ele vá, embora este se esforce em escondê-lo de todos. Animal indiscreto. Quando perto, faz o dono parecer mais velho, desanimado, sem apetite. Na madrugada insone, alimenta-se de insistentes pensamentos negativos do dono. Quanto mais cansado, estressado, o cão escuro se agiganta, late alto, vira senhor da situação. Aprender a domesticá-lo é não permitir o esgotamento de sentido da vida. É a maneira de começar cada dia escolhendo viver.
Sem metáforas, precisamos falar sobre depressão, apontada pela Organização Mundial de Saúde como tormento para quase 19% da população brasileira. São 38 milhões de compatriotas tentando, diariamente, colocar uma coleira em seus cães escuros. No mundo, 15% da população sofre com a doença que, até 2020, deve sair de quinta para segunda maior questão de saúde pública, atrás apenas dos problemas cardiovasculares, segundo a OMS. (Depois desse artigo ser escrito, a previsão ficou mais pessimista: principal doença mundial até 2030)
A cada 30 segundos alguém no planeta abrevia a vida por causa do distúrbio. No Brasil, em 1996, 58 pessoas tiveram a depressão atestada no óbito. Esse número aumentou para 467 em 2012. São estatísticas incongruentes com a realidade. Por todos os motivos, precisamos falar sobre a depressão.
Diferente da hipertensão, que remete a obesidade, anemia falciforme (associada a negros), tuberculose, que um dia foi doença de baixa renda, a depressão derruba bastilhas de estereótipos, em uma impávida democratização da perda da razão de viver sem relação com etnia, idade, gênero, classe sócio-econômica. Qualquer um pode ser vítima.
Robin Williams morreu aos 61 anos, em suicídio combinado por depressão e dependência química. Gênios, como Santos Dumont, Van Gogh e Hemingway, perderam no confronto entre a inteligência e um motivo para chegar ao dia seguinte. Empresários bem sucedidos se entopem de remédios para enfrentar dias exaustivos, professores lutam para sair da cama, adolescentes preferem a segurança estéril da internet, refúgio da próxima crise de ansiedade. Até padres, com toda a energia emanada por fiéis, recorde de discos e livros vendidos, não conseguem escapar dessa ferida que sangra e consagra indistintamente. E tem o palhaço de circo, ele que é a própria encarnação da angústia escondida sob pasta branca, nariz vermelho e um sorriso tão histriônico quanto artificial.
“Quando ela chega, degrada o eu da pessoa e finalmente eclipsa sua capacidade de dar ou receber afeição. É a solidão dentro de nós que se torna manifesta, e destrói não apenas a conexão com outros, mas também a capacidade de estar apaziguadamente apenas consigo mesmo.” O resumo está em O Demônio do Meio Dia – anatomia da depressão, livro de Andrew Solomon, tão técnico quanto lírico, tão pessoal quanto estatístico, tão dramático quanto revelador. “Na depressão, a falta de significado de cada empreendimento e de cada emoção, a falta de significado da própria vida se tornam evidentes. O único sentimento que resta nesse estado despido de amor é a insignificância”.
Quem se sente desprovido de significância pode tentar se punir não apenas pelo suicídio. Por trás de comportamentos sexuais promíscuos, deficit de atenção, transtornos de convivência, isolamento extremo ou exposição exagerada, baixo desempenho no trabalho ou, até mesmo, uma devoção quase religiosa ao emprego, apego a um ídolo que beire atividade profissional, por trás disso tudo pode estar o que estudiosos entendem como “último estágio da dor humana”.
Como diz o jovem comediante canadense Kevin Breel, falando sobre seus curtos 19 anos de vida (e isto não é piada): “Depressão não é ficar triste quando se perde uma namorada, ou não consegue o emprego. Isso é tristeza. Depressão não é quando algo em sua vida dá errado. Depressão de verdade é quando as coisas estão dando certo”.
A poetisa e psicanalista Maria Rita Kehl considera a depressão “o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade, que algumas pessoas conseguem evitar a vida toda”. Ela acomete os desencaixados, soterrados pela leveza insustentável que pode haver em apenas existir. Toda tarja preta é um recado insolente: viver exige cuidado, sem tristeza aparente, com alegria de lado. Anestesiado. Precisamos falar sobre depressão. Há muito, ela deixou de ser aquele engraçadinho tempero para uma melancólica poesia.
*artigo publicado no jornal A Tarde, em 16 de dezembro de 2014