Estacionar é preciso

O lírico guardador de carros Antônio Sarlos dos Santos oferece canções para os motoristas que estacionam em sua área

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Numa rua onde um lado inteiro do calçamento fica reprimido com uma placa

Não tem lugar barrado por esse guardador lírico, que oferece versos em troca de vaga

ordinária de proibido estacionar, Antônio Carlos dos Santos ganha a vida fazendo o papel de orientador do parqueamento de carros. Recebe trocados pelo serviço de sinalizador do trânsito e muitas vezes devolve o rendimento com mais do que a atenção dispensada aos veículos. Ele entrega canções de sua lavra aos clientes que mais se afeiçoa.

É desse lírico guardador de carros, cronista musical do cotidiano de uma via de mão única, que será feito balizamento de sua vida. Sua candura é a de um urso de pelúcia, que parece incapaz de ficar com uma fisionomia crispada e, mesmo que não responda, está sempre de acordo com tudo. O apelido, portanto, é Veludo desde a infância, um facilitador na rua Francisco Ferraro, muito procurada pela demanda do sindicato dos comerciários e da APLB Sindicato, dos professores. No início da manhã e ao meio-dia, os pais de alunos de uma escolinha são a principal clientela. A professora Lilian Senna é uma dessas freguesas de estacionamento, que passou da restrição natural de quase todo motorista ao trabalho de loteamento urbano do guardador de carro para uma relação de amizade e respeito.

“Conheci ele no ano passado e aos poucos me cativou pela gentileza e por ser uma pessoa que realmente necessita”, enfatiza a educadora, que passou a abastece-lo com compras de alimentos e roupas, porque acredita mais nesse poder simbólico de doações continuadas do que no simples pagamento por um serviço manobrado na informalidade. O compositor zona azul soube reconhecer a dedicação produzindo uma música para a filhinha de Lilian, Maria Eduarda. Criança Alegre é o título: “Criança alegre é criança feliz/ Criança alegre é Maria quem diz/ Criança contente, porém inocente que não sabe o que diz/ na escolinha que ela estuda para aprender/ brinca de pulinho com as coleguinhas e aprende a ler/ sempre vareia, faz castelo de areia e sorri pra valer”.

Sósia de Cartola

Cumplicidade entre motorista e guardador

O perfil esguio de Veludo, o rosto marcado como se fosse uma fotografia do sambista Angenor de Oliveira, o Cartola, só que sem a mancha na ponta do nariz, dão a ele uma aparência boêmia. Calcula em mais de 100 as composições suas, só duas delas gravadas por um cantor obscuro de seresta, chamado Hélio Reis, que incluiu no repertório A Cigana Romântica e Jega Boa. A primeira é uma ode a essas mulheres leitoras de mão, cartomantes, a quem se procura saber de amores futuros e decepções passadas. A outra, uma satírica crônica de deboches criada em função de uma história exibida no programa do Ratinho, onde um homem chorava ao vivo pela jumenta desaparecida, a quem declarava toda a paixão entre espécies. “Tem uma jega boa aí/ tem uma jega boa aí/ Se você gosta de jega se prepare que um dia vai ter que assumir”, narra a letra, que não é exatamente um primor de métrica e rima, muito menos de bom gosto poético. Mesmo assim, Veludo defende os sentimentos bem pouco ortodoxos que deram a partida na criatividade. “Foi a história mais bonita que já vi na televisão”.

A sua própria história de amor ficou enguiçada por uma dupla viuvez que ele desistiu de tentar ocupar. A primeira mulher, Ana Bela, com quem teve duas filhas (hoje adultas), foi sucedida por outra companheira, que também faleceu por complicações de diabetes. Com a segunda perda, Veludo desistiu do amor conjugal, mas ele nem precisa se distanciar muito nessa avenida de tristezas porque aparece mais um carro para guiar.

Senhor guardador

E ali está ele no ofício geralmente incorporado por molecotes, biscateiros, semi-indigentes, mas dificilmente senhores pais de família, viúvos, solitários e de inspiração musical. Por isso, ele tenha resistência com o termo guardador de carros. Trabalha “na área de estacionamento” desde o ano 2000. O serviço diário como orientador de balizas e vigia de vagas surgiu num momento de necessidade extrema, quando o desemprego já se impunha como sinal vermelho para a sobrevivência.

Passava pela avenida Joana Angélica quando topou com seu Felipe, que já tinha sido chefe dele havia pelo menos três décadas, e hoje é visto pela maioria como um pária do centro da cidade. Seu Felipe foi enxergado por Veludo como ex-patrão e até agiu como patrão na hora em que soube do problema do antigo funcionário. “Parado, você não vai ficar”, determinou, com uma autoridade de executivo de multinacional, mesmo que seus trajes encardidos lembrem em muito os de um badameiro. “Você vai ficar aqui nessa rua, guardando os carros”.

Foi como se passasse um bastão ou deixasse um minifúndio de produção de trocados como herança. Felipe já não tinha mais visão ou a lucidez necessária para saber quem tinha chegado conduzindo qual veículo. Poderia achar que a adolescente com pinta de universitária era a dona do importado, ou o senhor de pasta 007 era o legítimo proprietário do Supermini barulhento, da Gurgel.

Seu Felipe diz que tem 62 anos, mas já passou dos 68 e a dissociação da idade não é nem o principal sintoma de sua alienação ao mundo que está em volta. Ex-dono de uma embarcação no Dique do Tororó, ex-patrão de Veludo, Felipe, o maltrapilho, erra pelas ruas sem eira nem beira. “Dou valor ao cidadão que trabalha correto”, pontifica o senil abandonado em sua magreza de tísico, querendo fazer o maior dos elogios.

Antônio Carlos, enquanto isso, vai se ajeitando para encerrar o expediente às 17h. Guarda o apito que usa como advertência sonora aos desavisados e devolve o banquinho que tomou emprestado do segurança da escola, usado para descansar a ossatura de namíbio. Conseguiu arrecadar R$4,30 durante o dia, o suficiente para pão e café, sobrevive assim, o dinheiro das próximas 24 horas, sem se preocupar muito com o futuro distante, sem previdências supérfluas.

Compõe por inspiração do dia-a-dia, rabiscando refrões no pedaço de papel entre uma e outra estacionada e depois completando a letra em casa. Foi assim quando ouviu um pássaro canoro em ação e decidiu homenagear a criatura alada e cantante. “o passarinho cantou no galho da laranjeira/ um passarinho tão lindo das cores da nossa bandeira”.

Filho da boemia

Antônio Carlos dos Santos nasceu há 59 anos em Santo Amaro e ficou encantado com o talento do pai, o tocador de partido alto Vicente da Viola. Só que o velho não demonstrava muita vocação para mestre e nem interesse em ver o filho na boemia. Morreu sem deixar nenhuma lição de instrumento, mas ao que parece logo estava arrependido, onde quer que estivesse. “O espírito dele voltou e colocou a viola em minha mão”, relembra Veludo, com a naturalidade de quem conta o exame de auto escola. “Só que fiquei com medo e recusei na hora. Depois, rezei e pedi ao espírito que me desse tudo em música. Aí, deslanchei de vez”, acredita.

Quando sobe numa balança, Veludo vê no máximo a marcação de 53 quilos, um biotipo proibitivo para quem fosse enfrentar os rigores do trânsito pesado da cidade. Sua ruela não é das mais movimentadas na Mouraria, ao lado do Colégio Central, e ele trabalha com uma ética de guardador que impede as chantagens tornadas normais em qualquer ponto da capital. As ameaças e pedidos acintosos que transformam o motorista em mais um refém da privatização informal das ruas. “Sempre tem alguém que se recusa a pagar, mas o melhor é ficar calado, agradecer e esperar o próximo que vai dar em dobro”, pondera. “Tudo isso vai do preparo do guardador”.

Ele, que trabalha cotidianamente sem ameaça de concorrência, já chegou a visitar o Sindicato dos guardadores, na Lapa, para pedir a transformação da área em zona azul. Seria a valorização e o reconhecimento do serviço, já que o ofício de compositor nunca foi devidamente notabilizado. Pelo menos como guardador ele gostaria de ter um crachá e um fardamento, só que a proposta foi vetada. Enquanto isso, vai transformando em versos a melancolia no acostamento de uma vida.

Tuca pode estar deprimido, mas deve ser só charme

Tuca do jammil diz “venha de cinco” quando está bebendo cerveja na praia. Não so diz a expressão do imaginário lúdico infantil da década de 90 como também estende a mão ao alto e espera o interlocutor fazer o mesmo e dar aquele tapão típico do que se chamava de “brau”. Tuca, que tem mais cara de Jammil mesmo, e não de Antonio Carlos, faz isso com mulheres também – e adultas, e de biquínis tão exíguos quanto a diversidade de rimas que ele, Tuca, canta. Ele faz isso tudo com

o cara é broder, e vale tudo na rebarba da sexta-feira

euforia ainda maior do que a gravação de um DVD, só que a platéia agora é de apenas duas ex-ninfetas (e um ex aí tão bem aplicado temporalmente como seria colocar o mesmo prefixo na palavra famoso junto do nome Gilliard). Elas, que só entenderam o que o professor de física falava sobre gravidade depois dos 25 anos e, em média, dois abortos, acham que derrotar esse vilão é tarefa fácil do herói Jump, uma caminha elástica que em tese serve para segurar alguma coisa.

Elas fingem estar um pouco desatentas e entediadas com a conversa de surfista tentando mostrar conteúdo. De vez em quando, dão uma risada espontânea mas até a risada espontânea nelas é artificial.

É sexta feira nesta praia em que todos parecem ter obrigação de tatuar o corpo e ninguém parece ter emprego formal desses com nome na folha de ponto.

É sexta feira e só as ex-lolitas para dar sentido a esse início antecipado de noite para Tuca do Jammil, esse rapaz que de quarentão exibe a sunga com listras escuras horizontais e a proeminência na parte de baixo do abdômen, aquela que não dá pra reprimir apenas prendendo a respiração.

(a pergunta que se fariam os observadores mais rigorosos é que tipo de crise é capaz de tirar o serviço do nosso galã da meia-idade em noite de sexta. Respostas na editoria de economia ou na de show bizz local).

Tuca não precisaria de tanto mais empenho até porque o tédio das mulheres é só fingido. Afinal, ali está um praieiro legítimo, daqueles que podem mandar uma declaração cifrada entre aês e eôs, capaz de deixar qualquer amiga impressionada: “oh, ele escreveu esse ´quero mais viver´ em homenagem a sua tatoo CARPE DIEM na nuca?”

A todo momento caçadores de viado passam correndo com suas sungas de afrescos e viados incubados passam andando com pensamentos sobre como colocar silicone nas nádegas e parecerem apenas que estão malhando o suficiente para inchar os glúteos.  Tucá já está arrumando a mochila e a dupla já está sacodindo a canga. Certamente, não precisa muito malabarismo, para ele confirmar que está ali disposto a contar máximas de play ground correndo o risco de ofuscar sua aura de quase celebridade apenas porque está com pressa e precisa levar urgentemente alguém pra comer na cobertura de Stela, já que passou o tempo em que requisitava esse serviço delivery.

Um gordo ruivo com sunga azul marinho (dois números abaixo da ideal pelo sistema cofrinho de medição) não leu o manual que diz que papetes não combinam com os pés confortáveis de gays.

Tuca anda por entre as meses até o carro cumprimentando deus-e-o-mundo. É figurinha carimbada naquela zona de sombreiros verdes. É gente boa com garçons, e beija clientes mulheres, suas conhecidas ou fãs, nas cabeças e faz sinais como de shalom e soquinhos no peito para os homens. É aquele cara que faz bem para a imagem de cetro espírita e acha que um cumprimento seu é algo como contrapartida social, uma espécie de bolsa família para a classe média alta.

Eu, com 31 anos, ainda estou muito novo para achar graça disso tudo. Sinto pena do DJ que por estar tocando músicas ruins em remixe balançando a cabeça em púlpito elevado, acha que está acima de todos mundo. A vida tem derrotas, Tuca, você sabe disso mais do que eu. Só que hoje você pode comemorar suas lamentações com as ex alguma coisa. Mas antes vá ali no caixa do quiosque, passe o cartão pra pagar as contas que ainda não eram suas e ser menos infeliz.

Pobre milionário

Há 35 anos, Nivaldo ganhou uma bolada na loteria esportiva; hoje é apenas um guardador de carros leproso morando em albergue com suas recordações

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Era uma vez um jovem de 20 e poucos anos na idade e nas prioridades de vida, estômago e veias sempre calibrados pelos melhores uísques que o dinheiro pode comprar, cercado pelas melhores mulheres cuja companhia pode ser alugada, certo de que ser um nababo é uma condição perene como ser um diabético, por exemplo. Pois aquele moço que viajou do padrão de assalariado para a rotina de milionário apresentando um bilhete com o placar certeiro de 13 jogos de futebol agora é este homem abandonado na região do Aquidabã, sobrevivente das migalhas de quem deixa um carro estacionado aos seus cuidados. Nivaldo Eduardo dos Santos, um dos primeiros milionários do Brasil com a Loteria Esportiva, aos 62 anos, perdeu de goleada uma partida em que enfrentou a soberba.

No jogo da vida, Nivaldo foi milionário só no 1° tempo

O conto de fadas que nas histórias da carochinha persiste até alguém ser feliz pra sempre para Nivaldo durou no máximo seis anos. E seu maior pecado foi apenas ter ficado rico repentinamente com 27 anos de idade. “Que experiência que eu tinha?” A bolada recebida por Nivaldo equivaleria hoje a um pouco mais do que R$ 6 milhões, valores atualizados pelo Índice Geral de Preços ao Consumidor, da Fundação Getúlio Vargas. Dinheiro suficiente para comprar mais de 300 carros populares, ou cerca de 60 apartamentos de três quartos em um bairro de classe média de Salvador, ou ainda 950 mil sanduíches Big Mac. De certa forma, o prêmio foi torrado nesse tripé: carro, moradia e gastronomia, além de sessões de um hedonismo proporcional a sua conta bancária.

Credita toda a sua ruína a investimentos malfadados em letras mortas e sociedades em negócios falidos, principalmente na instalação do primeiro check-up eletrônico para veículos em Salvador, a Oficina Auto Elétrica 2001, nos Dendezeiros, que originou processos trabalhistas dos quase 20 empregados e uma dívida com a Justiça (que ele precisou pagar cumprindo pena na detenção). Mas parece tomado de uma conveniente amnésia que o faz esquecer dos esbanjamentos em até cinco Dodge Dart ao mesmo tempo na garagem e que se algum arranhasse a lataria no meio-fio, ele providenciaria passar adiante e comprar um novo na sempre solícita concessionária. E não faz questão nenhuma de mencionar que foi o responsável pela emancipação imobiliária de grande parte das mulheres damas do Pelourinho, que conseguiram comprar casas próprias graças a sua generosidade de cliente priápico e bem dotado financeiramente.

Na fase boa, fazia da ponte aérea Salvador-Rio de Janeiro um percurso tão banal como ir do Farol da Barra até a praia de Stela Maris. Se tinha jogo do Bahia no Maracanã, pagava a viagem de 20 amigos, de avião, para a capital carioca. Nivaldo já foi assíduo companheiro das mulatas de Sargentelli, hoje vive na sarjeta.

Frustração oculta

É do tipo que insiste nunca ficar arrependido, frustrado ou saudosista do período de fausto. Só que todas as suas narrativas querem provar o contrário. Lembra com exatidão o valor do prêmio (2,976 milhões de cruzeiros novos), a data da extração (16 de julho de 1972) e até o número do concurso (nº96, já que a loteria tinha sido criada em abril de 1970). É como aquele namorado que teima em dizer não sofrer com o fim do relacionamento, mas não esquece o dia em que começaram a namorar, a roupa que ela estava usando e até o perfume com aroma de pêssego misturado com alfazema e uma leve fragrância de pasta de dente, cabelos lavados com xampu de babosa.

Antes, podia gastar o equivalente a mil reais por dia que não pensava em pobreza. Hoje, precisa dormir num albergue na Barroquinha e batalha por uma aposentadoria por invalidez. Como se não bastasse a desgraça monetária, Nivaldo ainda é leproso.  Os dedos encolhidos e parecendo estar pela metade, a pele descascando em úlceras brancas e secas dão os contornos miseráveis de um corpo sendo carcomido pela doença, enquanto a alma é corroída por lembranças. A diferença é que a primeira, cientificamente chamada de hanseníase, é perfeitamente curável com os medicamentos que ele toma. O segundo mal estar é de difícil tratamento e um dos principais sintomas é o murmúrio reincidente que se ouve como um suspiro: “Que experiência que eu tinha?”

O novo-pobre fala com a boca mole, desdentada, também ela hipotecada pela miséria. Tinha a maioria dos dentes de ouro e quase todos foram extraídos para pagar os estertores de sua riqueza. Os primeiros foram trocados por uma dívida, já os últimos serviram para pagar comida.

Já foi vizinho de craques do Flamengo, nos apartamentos de Ipanema, hoje passa a maior parte do tempo ao lado do casal Ivan e Maria, que estendem um lençol de mendigos na calçada e colocam o filho Ivanzinho como refém e vetor da sensibilidade alheia. Garante não ter arrependimento. “Se tivesse, me suicidava, como já vi muita gente se jogando de carro da ponte Rio-Niterói”.

Leproso, o ex-milionário guarda carros no Aquidabã

Oreia

Nas redondezas do terminal do Aquidabã, a história desse ser humano falido é de domínio público. Honório, o proprietário da farmácia que vende os medicamentos de hanseníase, indica seu local de trabalho diário. Seu Careca, o veterano dono do bar, com quatro décadas de Aquidabã, foi o principal confidente das memórias cheias de dinheiro e aventura de Nivaldo. Ele não trabalha mais no balcão, mas passou todos os capítulos para o filho Roberto. E mesmo assim, perguntar por Nivaldo é o mesmo que nada. É só falar no milionário da loteria que todos se lembram: “Ah, é Oreia”

Com os lóbulos da orelha alargados e amolecidos, como se fossem os lábios de índios deformados por rótulas da tradição, o leproso Nivaldo deixa mais do que boas histórias no convívio com os comerciantes da região. Às vezes, ele larga, involuntariamente, uns pedaços de carne pelo balcão.

Dos nove filhos que teve com mulheres diferentes, cinco já morreram. Dois deles ainda aparecem para ver o pai e o tratam como… leproso. São também desvalidos que só fazem reclamar do fato dele ter perdido uma fortuna. Nos poucos comentários que elaboram, apenas dizem que estariam melhor de vida se este não fosse tão perdulário. Mas é claro que não dizem com essas palavras. Preferem termos como imprestável, vagabundo e irresponsável. A companheira mais fiel foi a última mulher, também uma renegada social, que se apoiavam mutuamente na vida de rua. Morreu atropelada há três meses no Aquidabã e Nivaldo não teve direito a receber nenhum tipo de seguro.

É difícil Nivaldo admitir, mas continua fazendo uma fezinha. Ele vigia o carro do dono da banca da Paratodos, que se tornou amigo e confidente, Ricardo José, e quando este vai pagar R$0,50 ou R$1 pelo serviço Nivaldo pede que jogue na centena ou no milhar. Em mais de 10 anos de hábito seria natural que o ex-milionário ganhasse uns trocados no bicho (apostando no macaco ou na zebra), mas isso nunca aconteceu. “A sorte bateu uma vez na vida dele e pronto. Ele não soube aproveitar”, condena Ricardo.

É também uma visão cartesiana de uma trajetória. O protagonista não acha o mesmo. Quando o álcool do whisky vagabundo ou do conhaque começa a fazer efeito, ele desdenha dos interlocutores na roda onde o papo tem invariavelmente o mesmo julgamento moral: “como é que você foi desperdiçar isso tudo?” Nivaldo encerra o assunto de forma taxativa: eu aproveitei tudo e bem, vocês vão ter três vidas e não conseguirão gozar tudo que eu tive.

Realmente, deve ser um cansaço repetir sempre a mesma história, responder sempre as mesmas perguntas sobre como é poder comprar qualquer carro, qualquer bebida, ou quase qualquer mulher na hora em que se quer. Por outro lado, é o momento em que Nivaldo se sente vivo, na oportunidade de recordar, de sensibilizar, de oferecer ao outro uma viagem mental por todos aqueles caminhos que ele percorreu em carne e osso.

Curtiu a vida igual a uma cigarra daquela fábula sobre ser precavido ou extravagante. Escolheu ser a personagem de quem todos sentem pena no final. “Mas que experiência que eu tinha?”

Na batida do pancadão

No 1° Baile do Funk carioca em Salvador, reclamações por atraso, cenas explícitas de “calor humano” e seguranças em ponto de bala: tudo é comédia

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

A Ninja do Funk, o alter ego de uma jovem carioca chamada Amanda, de 1,62m de altura e grossura de pernas não

Brincadeira de adulto: contorcionismo erótico

registrada em nenhum cartório, está emocionada com o, digamos, “calor humano” dos baianos. Ela não conhecia Salvador e garante ter ficado encantada com a forma “espontânea e carinhosa” com que foi tratada pelos fãs. Há 12 minutos, ela estava sobre um palco com um short preto de látex, menor do que muitas lingeries que estão no mercado, um top e o inseparável véu cobrindo nariz e boca. Ao lado da Proibida, da Mercenária e da Loira da Galera, ela não simplesmente dançava – isso seria para uma funkeira qualquer. Elas escolheram quatro espectadores do show para participarem de uma sessão de contorcionismo sexual, cuja única diferença para uma aula prática de tantra seria o fato de permanecerem vestidos.Provocando os rapazes, naquele momento considerados felizardos por uma platéia de uns 100 impetuosos homens, elas foram tocadas, cheiradas, lambidas, e qualquer outra forma de expressar uma atividade táctil, enquanto seus “clientes” permaneciam deitados no chão. As quatro tinham o controle da situação com seus movimentos insinuantes de gueixas do pancadão a ponto de um observador neutro, de cima do tablado sentenciar: “esses caras vão gozar aí mesmo”. Isso tudo é no 1° Baile Funk do Rio de Janeiro realizado na Bahia.

Para entender a languidez da cena é melhor começar do começo. Se bem que o início é de imprecisa definição. Pode ficar marcado nas origens do soul americano, ou do movimento musical da periferia do Rio de Janeiro, onde nos shows a platéia feminina costuma ir “de minissaia e sem calcinha”, como explica a jovem Girlene Costa, de 17 anos, em tom de reprovação. Ela diz isso usando uma bermuda jeans de cinco dedos de largura e um top menor do que um biquíni, mas garante que está com calcinha.

O público “seleto” do pancadão

Para efeitos práticos, o início desse evento lúbrico-musical é 22h de sábado, como indicam os cartazes e ingressos, no Portual Portuário, ex-Codeba, um grande galpão ao lado do Terminal Marítimo de Salvador, em São Joaquim. Mas já são as primeiras horas da madrugada de domingo e nada de show, a não ser o som de cd irradiado por quatro modestas caixas de alto-falantes. A irritação é nítida e alguns grupos procuram “a reportagem” para registrar suas queixas, como o fato de já terem pagado R$27 de táxi para virem de Tancredo Neves, mais os R$12 do ingresso, mais R$7 de cerveja e acarajé e até agora nada de show. E o que é pior: “o nível de mulher está bem fraco”. Denílson dos Santos Andrade, por exemplo, jura que vai ao Procon, ao que é seguido por quatro amigos num grito de “propaganda enganosa”.

O organizador, o carioca radicado na Bahia há 17 anos, Maurício Brito, considera natural o atraso do grupo Funk Fest (“eles já tão ali na Avenida Contorno”), mas não demonstra o sorriso de um MC na hora de falar sobre a presença de público. No máximo 120 pessoas, sendo que uma parte delas já está partindo, um número admitido como baixo para um show com o apelo do pioneirismo e a divulgação em comerciais de televisão. “Amanhã (ontem), vai ter na Fashion Club e vai estar lotado”, consola-se o produtor da festa.

Martela o martelão

Finalmente a Van branca com o MC Claudinho, o DJ Inoxx e as quatro acompanhantes em trajes sumários chega. É o veículo da esperança coletiva de salvar a noite. Uma noite em que pequenos delitos são permitidos, como a entrada sem problemas de quatro estudantes vindas de Águas Claras, sendo que só Suelen Nascimento tem 19 anos, as três amigas são menores de idade. Antes mesmo de o show começar, elas já estão executando, com riqueza de movimentos, coreografias de músicas com refrões acrobáticos como “de ladinho, a gente gosta”, “vou aparar pela rabiola, vou sim” e “então martela, martela, martela o martelão”.

Fazendo justiça à sigla de Mestre de Cerimônias, o MC Claudinho começa o show sem se importar que a platéia reúna,

O mestre de cerimônias e as “artistas”

no máximo, 120 pessoas cansadas de horas de espera. A animação dele é como se estivesse gravando um DVD no Maracanã lotado. O público também responde com agitação logo que surgem, uma a uma, as vedetes do batidão. Com a aparição das musas, os mais afoitos – quase todos – se comprimem na frente do palco, que tem 1,50m de altura, como se fosse a última chamada para um emprego com carteira assinada no SIMM. A cena é linda: mais de 20 celulares são sacados simultaneamente e têm as câmeras apontadas para os mais íntimos talentos da Loira da Galera, da Mercenária, da Proibida e da Ninja do Funk. Elas respondem com mímicas de quem está gemendo e posições que fazem os aparelhos de filmagem parecerem apêndices do corpo, tamanha a aproximação.

Contratados para proteger o palco, os seguranças aderem às imposições hormonais e aproveitam da proximidade. A princípio, nenhum deles usa armas, mas a julgar pelos uivos de delírio todos estão em ponto de bala. O segurança identificado apenas como Marcos pretende descontar todo seu furor reprodutivo em uma inocente. “Agora eu tô nervoso. Êta que a nêga véia lá de casa vai tomar uma cipoada”, suspira.

Suor do trabalho

Num instante, um momento mágico de interação de artista e público. Uma camisa chega ao palco e a Ninja enxuga o suor e devolve para a platéia. Começam a voar camisas, bonés, lenços, toalhinhas e elas atendem a todos esfregando as peças por todo o corpo –  precisamente todo o corpo – e jogando de volta para os donos.

A apoteose da lascívia é com a escolha de quatro entre os mais empolgados como partners das divindades profanas em uma performance capaz de deixar encabulada qualquer discípula da modelo Daniela Cicarelli. Eles deitam no palco e viram servos imóveis de idiossincrasias sexuais, em poses que ficaram muito mais elegantes quando expressas como a união entre o côncavo e o convexo, na música de Roberto Carlos. Qualquer esforço descritivo se tornaria inútil, do mesmo jeito que ficaria incompatível relatar a gravação de uma pornochanchada usando o vocabulário do maternal.

Terminados os cinco minutos de visões asfixiantes, o cantor MC Claudinho fala em alto e bom som no microfone que está vendo pelo volume da bermuda que determinado participante da gincana do orgasmo está sexualmente excitado.

Mão na cabeça para homenagear o desempenho da Ninja

Só que num baile funk a expressão sexualmente excitado nunca é usada, ele fala sem usar esses eufemismos de médico. MC Claudinho usa o jargão popular sinônimo de pênis ereto. O jovem, envergonhado diante de uma platéia de cerca de 80 marmanjos furiosos, responde apenas que está com o celular no bolso.

Pouco mais de 50 minutos depois de chegarem na van branca, os cariocas já estão se preparando para voltar ao hotel. No camarim, MC Claudinho bebe uma água e afirma “estar de bobeira” com a animação da platéia. Vai voltar a Salvador em 2 de dezembro, com a mesma trupe e o ator pornô Alexandre Frota, para continuar a divulgação pelo nordeste do CD com o singelo título Te Banquei, mas Te Comi.

Só há mais um momento de tensão antes da despedida. O biombo feito para as artistas trocarem de roupa fica bem ao lado de um janelão de vidro. Logo que descobrem que as garotas estavam tirando a fantasia, os seguranças passam a subir nos ombros uns dos outros para dar aquela espiadinha. Não apenas um ou dois, mas dezenas deles. “Isso termina sempre acontecendo. Eles sempre confundem porque no palco é uma coisa, fora do palco é outra”, minimiza a Ninja, conhecedora profunda do tal “calor humano”. Ah, e para os curiosos, Amanda fica bem melhor com o véu do que sem ele.

A última subversão de Big Ben

Aos 66 anos, Waldir Serrão, o roqueiro mais longevo da Bahia, continua sua cruzada – quase solitária – contra pagode, axé e arrocha


Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

O mais gentil aposto que o roqueiro Big Ben costuma aplicar a qualquer iniciativa ligada a pagode é dizer que “não se trata de música de gente”. Sob

Com quase 70 anos, Big Ben continua roqueiro na ativa

re axé music, ele considera uma forma primitiva de fazer som em três acordes. Mais recentemente, Big Ben faz uma cara tão cinza como seus cabelos quando ouve falar de um negócio chamado arrocha. “É lixo sonoro da pior espécie. Prefiro ouvir uma serra elétrica em funcionamento”, dispara.

Com sua estatura diminuta, seus cabelos grisalhos e uma pinta escura na bochecha esquerda, tem aquela aparência de decano das artes plásticas, como se fosse um Calasans Neto à procura de marchand. Mas quando abre a boca, Waldir de Oliveira Serrão mostra que não fossilizou uma inquietude juvenil mesmo aos 66 anos de idade.

Meio século atrás, quando criou um fã-clube de Elvis Presley, junto com um menino de 12 anos chamado Raul Seixas, ele impôs o nome – e depois o apelido notório – na enciclopédia cultural da Bahia. Big Ben é uma tradição artística baiana, mesmo contra todos os estereótipos nagô para exportação.

Sabe que é odiado pelo grupo dominante do mainstream musical, produtores e empresário que podem chamá-lo de “ultrapassado” ou “maluco” com a mesma versatilidade com que mudam a banda protegida do pagode para o arrocha. “Eles me criticam, mas não sabem o que é uma banda como Eagles, Earth, Wind and Fire, nem conhecem a casa de Elvis, em Memphis, no Tenessee”, esnoba.

Os 66 anos de rebeldia de Waldir Serrão são regulados por medicamentos de tarja preta receitados por psiquiatra. Isso não é tanto segredo para alguém que incorpora o conceito de “maluco beleza”. O estigma de pioneiro é sustentado por ter sido o criador da primeira banda de rock que se tem notícia na Bahia, Waldir Serrão e seus Cometas, em 1957. Dois anos depois, comandava o programa Só Para Brotos, na rádio Cultura.

A transformação em Big Ben só ocorreu em 1967, uma paródia ao carioca Big Boy. O

Na juventude dourada, Waldir (à esquerda) ao lado de Raulzito

baiano era nada menos do que o lendário sino inglês acordando todos do marasmo musical.

Na década de 60, transformou o Cine Roma no quartel dos alternativos, o Templo da Juventude, fazendo as matinês de rock, ritmo proibido de dançar pelas garotas. De 1972 a 1984, comandou o Som do Big Ben, nas tardes de sábado da TV Itapoan. No tempo em que disputava com Chacrinha a preferência dos telespectadores nas tardes de sábado, Big Ben virou atração nacional. Chegou a ser jurado do show de calouros de Sílvio Santos, depois de se destacar como um dos maiores divulgadores do Baú da Felicidade. Na bancada, descobriu em pouco tempo que o fermento da polêmica quase sempre faz crescer o bolo da popularidade imediata. “Eu discuti com Pedro de Lara, dizendo que ele não entendia nada de música”.

Na época de seu sucesso televisivo, assediado e bajulado, recebia pedidos de artistas baianos e brasileiros. Lembra de um jovem chamado Luís Maurício, que chegou na porta da TV Itapoan com uma guitarra bem usada e uma aparência de andarilho e anos depois vestiria roupa de playboy e adotaria o nome de Lulu Santos.

Muitos candidatos a talento vindos do interior chegavam com cestas de coco, cacau, ou laranja para oferecer em troca de alguns segundos de fama. Big Ben preferia aceitar a oferta para ocupar cargos de assessoria de imprensa das prefeituras, serviço que, a rigor, não ocupava muito do seu tempo. Bastava viajar até a cidade, ficar dois ou três dias desfrutando da hospitalidade local e trazer consigo alguns bilhetes para ler durante sua atração de sábado. Estava bem pago o seu ordenado.

Baú de lembranças

Esse baú de lembranças é reaberto – e dele saem fotografias em preto e branco para exibir Big Ben e as bigbetes – justamente para mostrar como há uma certa ingratidão em ver o ícone sacolejando em ônibus coletivo, quando os seus rivais que não produzem cultura dirigem carros importados com ar condicionado e película solar nos vidros. Big Ben continua usando suas blusas florais e garantindo um sustento por causa de uma pensão pouco maior do que um salário mínimo, desde que, há uns oito anos, conseguiu “se encostar” por invalidez.

Quando ainda morava no bairro aprazível e poético de Stella Maris, colocou o transmissor à serviço de uma rádio comunitária no bairro. A Stella FM só tocava rock, como era de supor. Precisou mudar de endereço porque o senhorio tomou o prédio de volta. Seu ninho de recordações em vinis e fotografias sem cores agora fica à rua Professor Lustoza, em Itacaranha, no subúrbio ferroviário, a quase 30 quilômetros de Salvador.

Sua metralhadora giratória está parada em um alvo único. Decidiu que não vai deixar o chamado movimento arrocha tomar conta da Península Itapagipana. Nascido na Boa Viagem, Big Ben considera que o perigo musical é quase tão devastador como a pesca com bomba que aflige a região. Aliou-se ao parceiro Laudelino Celestino, o contrabaixista de sua banda há quase 40 anos, na ONG Pôr do Sol, na prática uma entidade cultural eminentemente roqueira.

O galpão onde fica a sede abriga a rádio comunitária Beira Mar FM (106,1), mas também é o centro cultural de shows quinzenais com guitarras distorcidas e cantores que fazem a voz tão potente quanto uma bateria. Big Ben é mestre de cerimônias e agitador das festas. “Ele é uma lenda viva, que abre portas”, justifica Lauzinho, como é chamado pelo amigo. O próximo plano é fazer um palco móvel em uma balsa e convidar artistas como Jerry Adriani, Ultraje a Rigor e Marcelo Nova para um show no mar. “Isso vai ter repercussão nacional e eu já falei até com Pitty, ela disse que vem”, alardeia Big, sobre a baiana que é o meteoro do rock no Brasil.

Os delírios de grandeza de Big Ben vão além do apelido, que não faz justiça aos seus 1,63m de altura. Ele planeja o lançamento de um DVD até o final do ano (embora não tenha um roteiro para isso) e até um canal de televisão, que ele diz ser no modelo da TV Assembléia, só voltado para as classes C e D. Tudo é projeto que depende de “Deus ajudar e a política no ano que vem também”.

Entra em beco

Há pouco mais de 10 anos, Big Ben investiu sua indignação contra ninguém menos que o hoje ministro Gilberto Gil. Este gravara, com grande repercussão, a música Madalena (entra em beco/ sai em beco/ há um refúgio Madalena) e registrara a letra como de domínio público. Waldir Serrão alegou que a canção era dele e de Isidoro Oliveira. Procurou a justiça para conseguir os direitos autorais. “Levei o compacto em que ela está gravada. É uma música que eu fiz como crítica social”. Até hoje, não conseguiu provar que é um dos autores da música. “Hoje, a viúva de meu parceiro recebe os direitos autorais”.

Aos pauteiros jornalísticos, uma recomendação direta. Não indiquem ele apenas como fonte de reportagens sobre o rock. Big Ben sabe quase tudo sobre cinema, mesmo sem ter uma formação além do segundo grau. É tudo acúmulo audiovisual de sessões intermináveis ao lado de Raulzito, quando entrava numa sala às 10h da manhã e podia sair mais de 10 horas depois.

Do primeiro casamento, teve dois filhos: Elvis (uma natural homenagem ao rei do rock) e Silvia (inspirada no nome de uma de suas músicas de maior sucesso). Não é que o primogênito também se interessou por esse negócio de música? Nos momentos em que não trabalha como gerente de uma unidade do Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAB), o Elvis Serrão é cantor gospel. Segundo o pai, tem a melhor voz da família, mas é capaz até de achar que esse negócio de rock é coisa do satanás.

E continua provendo suas necessidades com os shows, numa periodicidade tão casual que fica difícil acreditar no faturamento. Os mais recentes foram no Dia do Rock, 13 de julho, em Camaçari, e um pocket-show, na Saraiva Megastore do Shopping Salvador, em 21 de agosto. O próximo, ele não tem nenhuma previsão de quando será. Com um microfone nas mãos, Big Ben modula sua voz à altura de um estandarte cultural. Com sua carteira de passe livre às mãos, ele tem direito a uma entrada no ônibus e vai até onde quiser. Só não pode voltar ao ponto exato onde deixou de ser o grande Big Ben para virar uma excentricidade.

O encantador de pombos

Alberto Nascimento está desempregado, mas junta migalhas de seu dinheiro para dar de comer aos pombos

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Essa história vai começar bem aqui, no Paço Municipal, entre pássaros e gente, com o gesto amável, sensível e mudo de alimentar pombos no meio do povo, e vai terminar lá numa viela do Cabula V, em frente a um sobrado para abrigar quase 10 famílias, com uma apresentação tardia que vai aparecer pousando do nada na história. Aquele rapaz não tem nome, apenas o título de alimentador de pombos, semeando no chão de pedras migalhas de pão e milho que fazem as aves descreverem o caminho inverso ao natural de cada vôo: elas vêm de cima para encontrar a comida no solo.O gentil Alberto se curva para alimentar os pássaros

Aquele homem de calça de brim, sapatos com solado torto de quem anda muito, camisa quadriculada suada e fisionomia de deleite não liga pra toxoplasmose, nem se o sol está quente demais para ficar 20 minutos sem sombra ou se toda vez que ele joga o pão um pirralho corre para espantar os pombos. Ele apenas cumpre o ritual que se tornou uma espécie de terapia: do Pelourinho ao Campo Grande, passando por Praça Municipal, Praça Castro Alves e Piedade, ele vai a cada dois dias prestar a solidariedade alimentícia aos símbolos alados da paz.

O gesto de candura ornitológica não é inédito e pode ser enquadrado na paisagem do cotidiano como um equivalente ao do aposentado que não se descuida de regar umas orquídeas no Dique do Tororó, ou a dona de casa que se entretém dando uma ração especial aos peixes no Campo Grande. Só que para Alberto Souza Nascimento, divorciado, pai de cinco filhos com três mulheres diferentes, 37 anos, primeiro grau incompleto, o passatempo ganha uma dimensão de promessa.

O homem por trás do anônimo alimentador de pombos está sem trabalho há quatro meses, só conseguia dinheiro para comer e pagar o aluguel por causa do seguro-desemprego e mesmo assim não abdicou de sair todo dia de seu bairro para percorrer 15 quilômetros até o Centro levando os mantimentos aos seus bichos de estimação. “É uma espécie de diversão para mim. Sinto-me tranqüilo nessa hora”.

Alimento de alma

Liberado do emprego como auxiliar de serviços gerais num condomínio de classe média, Alberto, o escapista, iniciou a peregrinação por um trabalho e descobriu o hábito de alimentar pombos em um senhor no Campo Grande. Perguntou ao mestre como ele poderia fazer o mesmo e não parou mais. Aliás, ele está prestes a interromper o seu vôo solo de reverência às aves. Sem dinheiro para sustentar as próprias necessidades, ele abdicou do passeio diurno pelo Centro Histórico porque não suportaria chegar para os pombos com as mãos literalmente abanando.

A meta mais objetiva para ele, que tem a escolaridade depenada, é conseguir uma colocação como repositor de mercadorias em estabelecimentos, ou servente, ou jardineiro, qualquer coisa que exija um mínimo de perspicácia sem a necessidade de um nível escolar apurado. Pensando que a sorte pode bater asas à sua frente a qualquer momento, Alberto já anda com todos os documentos em uma carteira surrada: carteiras de trabalho, de identidade, de reservista, título de eleitor e atestado de antecedentes criminais.

Ultimamente, vendia cosméticos para faturar o mínimo da sobrevivência. Desodorantes, cremes e óleos para massagem de marcas desconhecidas eram a matéria-prima de seu ofício itinerante de mascate. Um frasco do chamado “doutorzinho” pode ser comprado na mão dele por R$8. O cubículo onde mora há quatro meses (aluguel de R$100) é um vão que separa uma porta e uma janela a quatro passos de distância.

Para os desavisados, entrar no local exatamente no mormaço vespertino é uma experiência de impressões fortes. O calor da pequena estufa que serve de quarto, cozinha e banheiro, é sufocante. Pior é o aroma indecifrável com cheiro de suco de maracujá e carne frita no óleo e calça jeans suada de três dias e resto de água sanitária e tudo que se aglomera no minúsculo lar de um homem solitário. Um colchão fino e puído, um fogão sobre as bocas tapadas por duas frigideiras sem lavar, uma fruteira com os compartimentos de cima tomados por dois frascos de desodorante, um radinho de pilha, um bloco de anotações e um telefone celular, e os de baixo com três aipins, algumas cebolas e dois pimentões, compõem o resto da decoração.

A vida de privações é confortada por livros cujo conteúdo diz aquilo que seus anseios de integrante da Assembléia de Deus querem ler. Espírito Santo – o Deus que vive em nós, do pastor e psicólogo Caio Fábio, e Medo, do missionário RR Soares, são as únicas obras no espremido lar. Ambos os autores são ídolos para o evangélico, que chegou a fundar a própria igreja, em uma experiência que não decolou direito. Em um espaço alugado no próprio Cabula, ele deu início aos cultos da Congregação Pentecostal Roda de Fogo. A freqüência de participantes ia de 50 fiéis a apenas dois, a depender do dia.

A pretensão a pastor fora o aprimoramento de um tempo como obreiro de igreja (“minha vocação é pregar a Palavra do Senhor”), mas não foi adiante por causa de dificuldades financeiras. “Tudo obra do Inimigo. Foi minha época de problemas familiares, sem poder pagar pensão e sem poder pagar o aluguel do templo”, reconhece, falando sobre um galpão com dimensões de um cômodo.

Andar com fé

Para atrair mais crentes para sua instituição, ele confessa que sempre levava aos cultos únicos, à noite, pão com manteiga e café. Alimentava os fiéis que normalmente chegavam da estafante jornada diária de trabalho, como hoje leva a comida para as aves do Centro. Parece ter trocado o rebanho de almas, pela revoada sem altar e sem gaiola.

A devoção cristã do adestrador de pombos só não fica exatamente explicada quando se percebe que na entrada do seu quartinho, um pouco de lado, em estratégica posição de esconderijo, um pires com uma vela acesa totalmente cercada de um arroz cozido. “É apenas para proteção”, explica, um pouco desconcertado, como quem é pego em flagrante de adultério.

Ao final de uma entrevista com tantas revelações sobre aquele que era um anônimo no calçamento colonial, mais de uma hora de conversa, contato telefônico, carona e tudo, o encantador de pombos despede-se com a pergunta definitiva ao repórter: “qual é mesmo o seu nome?”. Depois da resposta, ele se dá por satisfeito, como se não tivesse contado nada sobre sua vida: “e eu sou Alberto, muito prazer”.

Rainha das quinquilharias

Ada Tem de Tudo, pseudônimo de Iraci Brandão Cajado, comercializa antiguidades e miudezas no seu museu de novidades

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Ada Tem de Tudo está a cada dia mais empreendedora no comércio de quinquilharias, objetos cujo valor muitas vezes não passa do sentimental, peças que para muitos não são mais do que entulhos da sociedade de consumo. Na rua do Gravatá, uma zona no centro de Salvador ladeada por sobrados históricos – alguns em ruínas -, onde violência e degradação convivem numa perversão urbana, ela já abriu três lojas praticamente vizinhas, onde oferece nostalgia em bugigangas.

Oficialmente, seu ramo é o de antiguidades, mas vamos direto para o popular: “Ela é a rainha dos cacarecos”, resume o enteado Elias, que trabalha como vendedor em uma das lojas e, como se vê, não é muito de meias palavras. Ada é imperadora de um território do pretérito, cujas fronteiras estão delimitadas por um gramofone não usado há quase 40 anos, ou uma cristaleira com cheiro e aparência de casa de vó. São objetos jamais vistos por muitos adolescentes da geração internet e que delimitam novas dimensões do espaço-tempo-custo: um telefone preto antigo de disco por R$400, qualquer volume da enciclopédia Delta Larousse por R$10, um LP de Julio Iglesias ou de Ray Conniff, de 1980, por R$1.

A bolsa de valores é toda determinada pela cotação da dona. Seus índices se baseiam na possibilidade de um lucro em cima da peça e na presunção de uma idade que muitas vezes o objeto não tem. Se muitas de suas peças são mais valorizadas pelo tempo de fabricação, o mesmo não se pode falar da proprietária. Ela não divulga a idade nem sob ameaça de penhora do seu museu de grandes novidades.

Iraci Brandão Cajado – ela revela o nome do qual não é muito fã, mas não o motivo do apelido Ada – começou nesse ramo há quase 25 anos, na década de 80, e ela diz de forma jocosa que era uma bebezinha. Como funcionária do Antiquário San Martin, na rua Ruy Barbosa, passou a se interessar pelo assunto. Depois de sete anos, abriu a própria loja, sem o mesmo requinte do antigo patrão, comprando qualquer coisa que lhe aparecesse como oferta de outrora. Entre os objetos dessa fase, um pinico de louça já tem 15 anos e hoje serve como lixeira. A foto de uma ânfora gigante, maior do que um adulto, provavelmente feita na China é o que ela usa para mostrar a aquisição mais exótica que já passou por ali. O objeto que proporcionava uma visão realmente suntuosa foi vendido por mais de R$ 10 mil.

Depósito de tralha

Em 17 anos de negócios, as mercadorias foram se entulhando ao ponto da matriz ficar pequena para tanta tralha. A primeira filial foi aberta três anos depois e também se tornou um depósito impraticável para o trânsito de clientes. Ada abriu neste mês a terceira loja no mesmo quarteirão com o dobro do tamanho da segunda e mesmo assim ainda ficou faltando espaço. “Tinha peça lá dentro que há 15 anos eu não via”, revela, dando a noção do grau de desarrumação. “Antes, no espaço para colocar 20 peças, tinham 500”. Depois do mutirão para a faxina, ela diz que tudo está um legítimo show room. Só que o ambiente relativamente clean que a loja virou ela não considera inteiramente favorável para o negócio. “Quem gosta dessas coisas, gosta de bagunça”.

A freguesia é formada por decoradores, colecionadores, artistas plásticos. A psicóloga Ana Luzia Outeiro chega no início da noite de sexta-feira trazendo um amigo para conhecer os itens do arquivo. “Eu sou cliente há muito tempo e faço questão de divulgar para os outros”, vibra Ana Luzia. Ultimamente, Ada tem sido visitada por uma classe que chama de novos-ricos. Eles buscam bibelôs atemporais, como uma imagem do Menino Jesus com não mais do que 15 centímetros de altura, oferecida por R$ 200. “Isso é valorizado porque deve ser de 1900”.

Ao ser perguntada sobre o artigo mais caro em seus domínios, Ada ensaia uma indignação calculada. “Caro? Não, aqui nada é caro”, responde ela, que dá o preço e coloca o valor em etiquetas adesivas. “Analiso pelo olhômetro e pela convivência. Não sou museóloga, mas tenho a faculdade da vida”.

Sobre relógios de parede, ela conhece um pouco mais. Mostra um do estilo oito e garante que todos os fazendeiros da Bahia nostálgica do século passado tinham o seu. Um relógio do tipo Capelinha, com duas cordas, custa R$450. Até esterilizador de ar faz parte do armazém de souvenirs depreciados. O observador um pouco mais atento e sem rinite alérgica para suportar poeira pode encontrar lustres de cristal e algumas jurássicas máquinas de datilografia, até pneu de trator e projetor de cinema.

Ética de antiquário

Para manter um tão eclético estoque de artigos pitorescos, Ada conta com o olhar experimentado para saber o que é vendável, assim como o jornalista precisa ver logo o que é notícia, e o político fica atento ao que é factóide para gerar votos. Ela garante que qualquer oferta que recebe faz questão de ir checar na casa do cliente (“vou em qualquer lugar na capital, interior, sítio, fazenda, village, veraneio, e só chamar que eu vou”) para verificar se é aquilo mesmo que está procurando. Mesmo quando não é, ela diz, marota, que sempre compra alguma outra coisa pra não voltar sem fazer negócio.

Só comprar em residências é uma espécie de código de ética nesse ramo, onde muita gente é capaz de oferecer produtos roubados ou de procedência duvidosa. “Pode ser um funcionário de uma casa que pega algum bem porque foi demitido, ou até um filho que é viciado em drogas”, diz Ada, para quem isso é uma imposição da profissão. “Isso se chama cautela”.

Sua outra transação predileta é a troca, um escambo de coisas velhas. “Às vezes, troco um ovo por uma boiada. E vice-versa”, diz a praticante da Lei de Gerson, para a qual o importante é que todos levem vantagem em tudo. Nem o funcionamento normal da loja está livre dessa ânsia de atender aos clientes. A abertura de segunda à sexta é das 8h às 19h, no sábado, das 8h às 14h. “Domingos e feriados, é só ligar que eu venho”, antecipa Ada.

A vida de uma família terminou girando em torno de miudezas e bugigangas. Ada tem um casal de filhos e a mais velha, Carolina, de 12 anos, com sonho de ser atriz e jornalista, coleciona moedas antigas. Sua paixão pela numismática alcançou 100 itens. Já a mãe não se sente à vontade de levar as peças que vende para decorar a casa. “Já convivo tanto diariamente, senão eu perco o fôlego”, explica. Falando em coisa antiga, vale até recuperar o batido adágio de casa de ferreiro, espeto de pau. Só que, no caso dela, aquele antigo gramofone até que ficaria bem na mesa da sala em jacarandá.