O lírico guardador de carros Antônio Sarlos dos Santos oferece canções para os motoristas que estacionam em sua área
Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)
Numa rua onde um lado inteiro do calçamento fica reprimido com uma placa
ordinária de proibido estacionar, Antônio Carlos dos Santos ganha a vida fazendo o papel de orientador do parqueamento de carros. Recebe trocados pelo serviço de sinalizador do trânsito e muitas vezes devolve o rendimento com mais do que a atenção dispensada aos veículos. Ele entrega canções de sua lavra aos clientes que mais se afeiçoa.
É desse lírico guardador de carros, cronista musical do cotidiano de uma via de mão única, que será feito balizamento de sua vida. Sua candura é a de um urso de pelúcia, que parece incapaz de ficar com uma fisionomia crispada e, mesmo que não responda, está sempre de acordo com tudo. O apelido, portanto, é Veludo desde a infância, um facilitador na rua Francisco Ferraro, muito procurada pela demanda do sindicato dos comerciários e da APLB Sindicato, dos professores. No início da manhã e ao meio-dia, os pais de alunos de uma escolinha são a principal clientela. A professora Lilian Senna é uma dessas freguesas de estacionamento, que passou da restrição natural de quase todo motorista ao trabalho de loteamento urbano do guardador de carro para uma relação de amizade e respeito.
“Conheci ele no ano passado e aos poucos me cativou pela gentileza e por ser uma pessoa que realmente necessita”, enfatiza a educadora, que passou a abastece-lo com compras de alimentos e roupas, porque acredita mais nesse poder simbólico de doações continuadas do que no simples pagamento por um serviço manobrado na informalidade. O compositor zona azul soube reconhecer a dedicação produzindo uma música para a filhinha de Lilian, Maria Eduarda. Criança Alegre é o título: “Criança alegre é criança feliz/ Criança alegre é Maria quem diz/ Criança contente, porém inocente que não sabe o que diz/ na escolinha que ela estuda para aprender/ brinca de pulinho com as coleguinhas e aprende a ler/ sempre vareia, faz castelo de areia e sorri pra valer”.
Sósia de Cartola
O perfil esguio de Veludo, o rosto marcado como se fosse uma fotografia do sambista Angenor de Oliveira, o Cartola, só que sem a mancha na ponta do nariz, dão a ele uma aparência boêmia. Calcula em mais de 100 as composições suas, só duas delas gravadas por um cantor obscuro de seresta, chamado Hélio Reis, que incluiu no repertório A Cigana Romântica e Jega Boa. A primeira é uma ode a essas mulheres leitoras de mão, cartomantes, a quem se procura saber de amores futuros e decepções passadas. A outra, uma satírica crônica de deboches criada em função de uma história exibida no programa do Ratinho, onde um homem chorava ao vivo pela jumenta desaparecida, a quem declarava toda a paixão entre espécies. “Tem uma jega boa aí/ tem uma jega boa aí/ Se você gosta de jega se prepare que um dia vai ter que assumir”, narra a letra, que não é exatamente um primor de métrica e rima, muito menos de bom gosto poético. Mesmo assim, Veludo defende os sentimentos bem pouco ortodoxos que deram a partida na criatividade. “Foi a história mais bonita que já vi na televisão”.
A sua própria história de amor ficou enguiçada por uma dupla viuvez que ele desistiu de tentar ocupar. A primeira mulher, Ana Bela, com quem teve duas filhas (hoje adultas), foi sucedida por outra companheira, que também faleceu por complicações de diabetes. Com a segunda perda, Veludo desistiu do amor conjugal, mas ele nem precisa se distanciar muito nessa avenida de tristezas porque aparece mais um carro para guiar.
Senhor guardador
E ali está ele no ofício geralmente incorporado por molecotes, biscateiros, semi-indigentes, mas dificilmente senhores pais de família, viúvos, solitários e de inspiração musical. Por isso, ele tenha resistência com o termo guardador de carros. Trabalha “na área de estacionamento” desde o ano 2000. O serviço diário como orientador de balizas e vigia de vagas surgiu num momento de necessidade extrema, quando o desemprego já se impunha como sinal vermelho para a sobrevivência.
Passava pela avenida Joana Angélica quando topou com seu Felipe, que já tinha sido chefe dele havia pelo menos três décadas, e hoje é visto pela maioria como um pária do centro da cidade. Seu Felipe foi enxergado por Veludo como ex-patrão e até agiu como patrão na hora em que soube do problema do antigo funcionário. “Parado, você não vai ficar”, determinou, com uma autoridade de executivo de multinacional, mesmo que seus trajes encardidos lembrem em muito os de um badameiro. “Você vai ficar aqui nessa rua, guardando os carros”.
Foi como se passasse um bastão ou deixasse um minifúndio de produção de trocados como herança. Felipe já não tinha mais visão ou a lucidez necessária para saber quem tinha chegado conduzindo qual veículo. Poderia achar que a adolescente com pinta de universitária era a dona do importado, ou o senhor de pasta 007 era o legítimo proprietário do Supermini barulhento, da Gurgel.
Seu Felipe diz que tem 62 anos, mas já passou dos 68 e a dissociação da idade não é nem o principal sintoma de sua alienação ao mundo que está em volta. Ex-dono de uma embarcação no Dique do Tororó, ex-patrão de Veludo, Felipe, o maltrapilho, erra pelas ruas sem eira nem beira. “Dou valor ao cidadão que trabalha correto”, pontifica o senil abandonado em sua magreza de tísico, querendo fazer o maior dos elogios.
Antônio Carlos, enquanto isso, vai se ajeitando para encerrar o expediente às 17h. Guarda o apito que usa como advertência sonora aos desavisados e devolve o banquinho que tomou emprestado do segurança da escola, usado para descansar a ossatura de namíbio. Conseguiu arrecadar R$4,30 durante o dia, o suficiente para pão e café, sobrevive assim, o dinheiro das próximas 24 horas, sem se preocupar muito com o futuro distante, sem previdências supérfluas.
Compõe por inspiração do dia-a-dia, rabiscando refrões no pedaço de papel entre uma e outra estacionada e depois completando a letra em casa. Foi assim quando ouviu um pássaro canoro em ação e decidiu homenagear a criatura alada e cantante. “o passarinho cantou no galho da laranjeira/ um passarinho tão lindo das cores da nossa bandeira”.
Filho da boemia
Antônio Carlos dos Santos nasceu há 59 anos em Santo Amaro e ficou encantado com o talento do pai, o tocador de partido alto Vicente da Viola. Só que o velho não demonstrava muita vocação para mestre e nem interesse em ver o filho na boemia. Morreu sem deixar nenhuma lição de instrumento, mas ao que parece logo estava arrependido, onde quer que estivesse. “O espírito dele voltou e colocou a viola em minha mão”, relembra Veludo, com a naturalidade de quem conta o exame de auto escola. “Só que fiquei com medo e recusei na hora. Depois, rezei e pedi ao espírito que me desse tudo em música. Aí, deslanchei de vez”, acredita.
Quando sobe numa balança, Veludo vê no máximo a marcação de 53 quilos, um biotipo proibitivo para quem fosse enfrentar os rigores do trânsito pesado da cidade. Sua ruela não é das mais movimentadas na Mouraria, ao lado do Colégio Central, e ele trabalha com uma ética de guardador que impede as chantagens tornadas normais em qualquer ponto da capital. As ameaças e pedidos acintosos que transformam o motorista em mais um refém da privatização informal das ruas. “Sempre tem alguém que se recusa a pagar, mas o melhor é ficar calado, agradecer e esperar o próximo que vai dar em dobro”, pondera. “Tudo isso vai do preparo do guardador”.
Ele, que trabalha cotidianamente sem ameaça de concorrência, já chegou a visitar o Sindicato dos guardadores, na Lapa, para pedir a transformação da área em zona azul. Seria a valorização e o reconhecimento do serviço, já que o ofício de compositor nunca foi devidamente notabilizado. Pelo menos como guardador ele gostaria de ter um crachá e um fardamento, só que a proposta foi vetada. Enquanto isso, vai transformando em versos a melancolia no acostamento de uma vida.