Capítulo 38

Em algum momento imperceptível, aquele encontro tinha deixado de ser previsível e ansiado para algo caótico, melancólico, assustador. Como um eclipse da lua que, de evento para entreter e confraternizar, durasse muito mais do que o previsto e se tornasse uma ameaça à própria civilização. “É preciso uma boa dose de decepção para entender como é a vida”. Ele deu uma tosse, como se essa frase fosse longa demais para alguém terminar em um fôlego só. “Só depois de passar pelo mínimo de sofrimento é que você consegue se permitir aproveitar.”

O olhar do velho voltou a percorrer a sala mal iluminada, como se estivesse procurando um daqueles troféus de caça pregados em uma parede. Era envolvente a postura noturna que adotara desde quando o diálogo começou a tratar sobre as lacunas de biografia evitadas como um fosso entre a sua existência atual e aquela que todos afirmavam ter vivido. Uma sombra se apoderava do rosto, a voz ficava como coberta por uma manta densa e escura.

Do lado de fora, pela janela, dava para perceber que os morcegos, agora, eram dois. Faziam uma trajetória de voo sinuosa, com eletrizantes encontros esparsos no ar no ponto mais longo da circunferência. Eles deveriam ser um casal. Bruno achou improvável que morcegos também pudessem amar.

O velho tossiu novamente. Foi mais um pigarro na garganta do que uma manifestação pulmonar: suficiente para desviar a atenção sobre aquele balé dos ratos alados. “Você é uma pessoa que não demonstra inveja de ninguém”. Ele nunca tinha percebido isso, mas parecia ser verdade, embora o tom usado na frase fosse mais de acusação do que elogio. O que invejaria, afinal? As pessoas viviam em uma insanidade medicada, cheias de problemas aleatórios, cujas soluções não existiam, não precisavam ou não tinham disciplina para adotar. Estavam mergulhadas em uma gosma esponjosa de mediocridade e falta de talento, tudo misturado com uma empáfia. Quem tinha dinheiro, não conseguia aparentar sabedoria, quem tinha inteligência, estava bem longe de serenidade, quem tinha beleza, era imaturo ou superficial.

Não havia como invejar ninguém em um mundo de filtros de fotografia, oscilando de um sépia opaco a um brilho estourado, sem gradações. Tudo era exagero e vazio nas pessoas, por isso a falta de vocação para buscar nelas o que, ocasionalmente, não estivesse nele, ali, naquela hora. Desprovido de qualquer interesse pela insignificância alheia, continuava sua saga de inapetência social, raquitismo interativo, frieza, isolamento e compaixão.

Se o velho estivesse mesmo com a visão naquele espaço só captaria um papel decorativo colado anos atrás, com uns motivos que pareciam toalhas de renda, um abajur carmim com a base que lembrava patas de tigre, a prateleira com seis livros em pé e dois deitados, o encosto do sofá de veludo verde musgo. Mas a atenção não estava por ali. Começou a falar que a mais secreta das vidas não é a que fica dissimulada para os outros, mas a que escondemos de nós mesmos, no porão das nossas covardias disfarçadas de destino. Achava que percorrer o mundo sempre era uma busca desesperada pelo atalho que levasse ao local mais inacessível de si mesmo. “Isso é o que os mais antigos abreviavam com o nome de Deus”.

Bruno não mais sabia se tinha perdido alguma parte do monólogo ou se era apenas o epílogo de uma digressão. Os morcegos já pareciam sem qualquer interesse de testemunhar aquele sepultamento de conversa.

*do livro Um Veneno Pequeno no Sorriso (no prelo)

Lagartas de fogo, temperos e física quântica no norte da Espanha

Entre Santibanez de Valdeiglesias e Astorga, lagartas de fogo atravessam grudadas uma estrada de cascalho de 2,5 metros de largura. Unidas, não são mais rápidas, mas enfrentam o vento frio e parecem maiores e mais fortes aos inimigos naturais.

O tempo de quem anda é diferente. Entre você enxergar um ponto desejado adiante e chegar até ele vai demorar o período necessário para você valorizá-lo; vai demorar muito. Viver não é chegar em um lugar. Isso ainda tem um nome mais adequado: morrer.

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Garçons europeus reagem com impaciência/desconfiança quando você quer saber o nome deles, mas sempre te atenderão melhor quando chamados pelo nome. Diferente do que sua mãe dizia no Brasil, não se morre ao beber água da torneira do hotel. Respeite 50 centavos de euro como se deles dependesse sua próxima alimentação (é capaz de depender mesmo). Quando for muito bem acolhido, doe 5 euros de gorjeta à dona de um albergue simples. Ela vai ficar tão feliz que não saberá o que falar, e terá certeza que brasileiros são todos especiais e/ou milionários excêntricos.

O menu mais saboroso dos primeiros 400km do Caminho de Santiago está numa cidadezinha de 1098 habitantes, Hospital de Órbigo, e é feito por uma agradável morena de seus 45 anos chamada Maria Palos, servido no restaurante com nome dela. Ela sempre sorri, embora a ciência não tenha descoberto qualquer relação entre alegria e temperos culinários. Sim, brasileiros são especiais.

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Você aprende que na Espanha “vale” se pronuncia “bale”, se entende “male”, e significa que está tudo certo. Ah, o menu delicioso de Maria Palos custa 9,50 euros, tornando ainda mais humilhante a diferença de sabor para um de 30 euros, assinado por um chef que é celebridade na Europa inteira.

O caminho não te dá as respostas que você quer; te dá as respostas que você precisa. E, quando você anda, todo o Universo se move ao seu redor e a seu favor. Isso parece muito Paulo Coelho, mas é apenas um negócio que inventaram chamado Física Quântica.

Apontamentos pelo norte da Espanha (10 dias de caminhada)

Morangos em promoção no Carrefour são mais baratos, mas os dos pequenos pueblos são sempre mais saborosos. A segunda melhor coisa pra não morrer por hipotermia é comer: a primeira ainda é procurar o calor. Sinais existem a todo momento para te guiar; não estar atento é de sua responsabilidade. Arte é o condimento da existência, música é seu tempero agridoce: camembert ao molho de morango.

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Cinco minutos a mais de alongamentos podem render uma hora a mais de caminhada: pense em como aplicar isso às finanças. Alguns pães artesanais, caseiros e quentinhos, fazem você esquecer imediatamente todos os dogmas sobre os males do glúten ao corpo: excesso de rigor e vigilância constantes privam a vida de muitos sabores. Há limites para a beleza do que o homem pode criar; não há limites para a beleza do que o homem pode criar quando inspirado pelo divino.

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Brasileiro não gosta de 17°C (frio), escocês adora 17°C (calor). Crianças de 7 anos botam uma mochilinha nas costas e vão sozinhas, andando, pra escola na cidade de Tardajos. Uma noite de sono num hotel por 60 euros pode não ser tão boa quanto num albergue de 15 euros. Há um quesos y vinos em Leon chamado Amor Verdadero, não há nome melhor. Há pessoas querendo ajudar e há pessoas sem querer ajudar; isso nada diz sobre elas serem boas ou más. A vida é banal, se você quiser fazer dela banal, é mágica, se você quiser fazer dela mágica, e chocolate amargo continua uma delícia indescritível, sob qualquer temperatura.

INDECISÃO

Ali, congelado por suas tristezas glaciais

Amordaçado por nós de garganta

A um passo de sempre ir

A uma indecisão de sempre ficar

 

Sorvia as belezas incultas da profanação da idade

Bebia as riquezas ocultas da complexidade

Estranhava ali tudo que era coleta e desuso

Estranhava o que era abuso

Fazia pouco caso do uso da vírgula, do trema

“Vida não é gramática pra ter esquema”

Qualquer dor é tema pra encerrar uma cena

 

E assim apertava as algemas

Alfazema borrifava, a ferida perfumava

Tudo que perdia e faltava

Aquela angústia que ardia

Aquela mulher que queria

Aquela dor que ansiava

 

E assim descartava

O que não desejava era o que mais procurava

Era falácia, era mentira, era suspeita

Esta lenta riqueza da graça

Tudo que via, tudo que passa

Ali adorava como seita

Comia, bebia, escarrava

Fez néctar daquilo q se aceita

Fez do amor a colheita

um mal que não esperava

 

Da brisa, a natureza, proeza do sofrimento: jornada

Era mais contemplado como castigo

Aquele bandido que andava ao lado

Fazia de tudo, fazia nada

Era doença, era deleite, era tortura, era pisada

Fazia de tudo, fazia nada

 

Por essas e aquelas; tormenta, me deixas

Onde estou nem é um lugar

A um passo de partir
A um peço de ficar

OPACO

Mais vale uma esquadra de homens coloridos

do que um exército inteiro de pálidos

GENGHIS KHAN

Ficou ali por alguns 35 segundos, a mão esquerda apoiando a cabeça, olhando para a unha roxa do polegar direito, até ser gritado pelo motoqueiro que passava em uma fúria de não sei quantas cilindradas: está verde, filhadaputa… Só deu pra ver naquele ângulo o tênis encardido e mais à frente o capacete rosa na cabeça.

Esses merdas agora deram para usar rosa, pensou, antes de descarregar um pouco da raiva no acelerador. Quando imaginou comprar um carro que lembrasse a tonalidade de um caminhãozinho amarelo-ovo que teve na infância, sabia que essa cor só seria respeitada no trânsito se fosse um importado de, no mínimo, 200 mil. Podia ser um esportivo rebaixado para apenas dois ocupantes, ou um utilitário extravagante, com telas de DVD atrás dos encostos das poltronas. Mas tinha que ter uma aparência de 200 mil e foi assim que se deu um presente de criança aos 52 anos de idade.

Até a chegada da curva eu alcanço ele, calculou, mas isso é quase um pensamento de psicopata. Tinha certeza que se o volante estivesse nas mãos de Bruninho a reação imediata seria essa. Bruninho é o menino que trabalha na máquina de xerox da agência, acostumado a transformar tudo que passa por suas mãos em páginas de branco e preto. Desde que vira a cabeça dele raspada cor de romã e percebera a vontade de não ficar mais do que um minuto no trabalho para não se atrasar na academia sentira a psicopatia do rapaz.

Esqueceu de Bruninho quando viu o azul em neon, a frase que ultimamente estava em quase todas as peças publicitárias da cidade, uma imposição varejista com certo estilo: longo prazo, prazer imediato. Era uma estratégia arrojada de mexer com os instintos mais hedonistas da classe média baixa que sobrevivia às custas de prestações de perder de vista, mas que pensava em ter aquela máquina digital ou uma geladeira nova agora.

Lembrou que na reunião geral para decidir a campanha de quase 80 milhões o slogan definitivo era de Adalberto Montenegro Campos de Carvalho: corra pra comprar porque sua alegria tem pressa. Todos os colaboradores da agência reunidos só iriam ratificar a idéia genial do diretor de criação mais premiado fora do eixo Rio-São Paulo. Até que a menina que havia saído da faculdade para ajudar no atendimento a uma concessionária de veículos e que terminou escrevendo e fazendo a arte para os outdoors do lançamento da linha de carros 2009 soltou a frase sem nem pedir autorização: longo prazo, prazer imediato.

Houve burburinho, Adalberto ainda tentou argumentar que estávamos em era publicitária de frases mais longas e filosóficas, até a “alegria tem pressa” remeteria ao carnaval, justamente a época em que a campanha estaria no ápice, e que a repetição de pra, pra em uma frase seria ruim de pronunciar. Só que os sócios ficaram impressionados com a receptividade que o jogo de palavras tinha provocado e assumiram a aposta da jovem. Maria Clara era o nome dela e a ousadia logo chamou a atenção. A ousadia e os olhos cor de mel.

Ele é o único diretor de fotografia daltônico que se tinha notícia. Sabia como ninguém empregar uma quentura no ambiente com essa ou aquela luz. Romeu Dourado era o nome que assinava os principais comerciais do estado, os mais comentados e inovadores, e alguns dos pouquíssimos filmes que eram rodados ali. Ganhou fama e dinheiro, teve a chance de ir trabalhar com cinema em São Paulo, mas achou que podia se acomodar.

A sociedade na agência era uma espécie de estabilidade muito bem remunerada. Tinha a sensibilidade para a área de criação, mas deixava as decisões fundamentais para Marco Aurélio, o parceiro desde que decidiram largar o curso de administração de empresas para arriscarem três meses no sertão acompanhando as filmagens de uma versão de Canudos, que jamais seria exibida depois da falência da Embrafilme. Só que a conversa bonita de Marco Aurélio tinha colocado eles em contato com outras equipes de produção e 8 meses depois já tinham participado de locações no Pantanal Matogrossense, na fronteira com a Guiana e no documentário sobre a invasão holandesa em Recife e Olinda.

Só que Romeu teria o privilégio de ver o nome nos créditos de um filme, depois de assinar uma produção pornô, rodada em uma praia da Paraíba. E ele foi notado como diretor de fotografia porque criou uma imagem alaranjada para o filme que se chamava “Maduras e Chupadas – as balzaquianas atacam no litoral”. Tudo bem que ficou sem o sobrenome original: era Romeu Goldeneye seu batismo na indústria da putaria audiovisual.

Quinze anos depois, levaria um Leão de Prata por um trabalho inédito em um comercial de televisão: o filme para a linha de perfumes era todo em branco e preto, mas no final a atriz deixava cair um lenço turquesa, que fazia um balé aéreo de arrancar suspiros de público e crítica. O mesmo efeito que seria usado – três anos depois – no filme A Lista de Schindler. Daquele dia em diante, por mais que se esforçasse, com pouco mais de 30 anos de idade, sua conta corrente jamais ficou de novo no vermelho.

Romeu era de um tempo no interior em que não entendia como tanta gente ficava fascinada pela chegada da televisão. Um quadrado que parecia sem vida diante de uma aquarela multitonal na roça, no rio, no pasto. Tinha verde, marrons claros e escuros, amarelos de amanhecer e vermelhos de sol se pôr, uma diversidade que só encontraria um paralelo no futuro ao conhecer a obra de Gaugin, embora este pintasse a tristeza.

Desde criança tinha notado que diferenciar as cores era como sentir a temperatura e a textura de superfícies, era quase necessário tocá-las, porque não entendia de imediato quando falavam pra pegar a blusa laranja ou a fita lilás. E assim, até os 12 anos, pensavam que ele era um pouco retardado.

Ela usava óculos finos grafite na primeira vez que saíram para jantar. Foi a coisa que logo notou, porque não entendia como uma pessoa que nunca aparecia de óculos tinha escolhido colocar justamente no que parecia um encontro romântico. Você tem miopia? Sim, quatro graus, mas uso lente durante o dia, respondeu, como se quisesse se justificar. Óculos é muito mais prático quando se escolhe apenas tirar para não ver as coisas do jeito certo, completou antes de beber o primeiro gole de vinho, brindando ao “senhor consumidor”.

Tinha sido marxista até pelo menos metade da faculdade, quando teve uma disciplina de design. Percebeu que, assim como um layout, o que dá a riqueza da vida é a gradação de tonalidades. Não pode ser apenas bem e mal, rico e pobre, preto e branco. Abandonei o comunismo do mesmo jeito que alguém deixa de assistir Chaplin para virar fã dos filmes de Almodóvar, concluiu, com um sorriso vasto de quem gostaria de outra garrafa de vinho tinto.

Acho que preferiria o mundo insípido a incolor, ela disse, olhando fixo para o garfo que tinha espetado um salmão grelhado ao molho de maracujá. O paladar definitivamente não é o melhor dos meus sentidos. Romeu olhou fixamente para os lábios dela e falou que a visão era até capaz de substituir alguns sabores só que nada como o tato para dar o colorido de uma vida. Ela achou que aquilo tinha sido o mais próximo de uma cantada na noite toda e fez um comentário sem sentido de que achava a decoração em bege altamente depressiva.

Quando voltaram para o carro, ela já tinha bebido o suficiente pra dizer que se o mundo não tivesse cores o carro dele não faria nenhum sentido. E se o mundo não tivesse sabores seus lábios também não, respondeu ele, no que seria a deixa perfeita para o beijo. Não houve beijo naquela hora, apenas um ensaio de assalto em que um pivete ameaçou roubar a bolsa dela e Romeu salvou a noite acionando a abertura automática da porta que chegou a tirar sangue do rosto do menino. Depois do susto, Maria Clara chegou a dizer que por causa de um assalto anterior teve sintomas de histeria e chegou a tomar remédios de tarja preta por quase um ano. Mas eu nem sou tão neurótica assim, olhe como estou calma agora. E Romeu fez um meneio com a cabeça, sugerindo um sim silencioso, com aparência tão distante que achou que ele só estava mesmo prestando atenção se a lataria amarela do carro estava arranhada. Ficaram juntos naquela noite e nos oito meses seguintes. A relação no trabalho não foi abalada, só que na intimidade ela sempre se concentrava mais nos problemas do que nas coisas em comum. A diferença de idade, a preferência dele por dormir de dia e ficar acordado de madrugada, a adoração dela por gatos e o preconceito dele por militantes da UNE, uma tatuagem no cóccix e um investimento ilegal na sociedade com um bingo. Na visão dela, pareciam carvão e tinta, não dava para misturar.

Romeu tentou fazer com que ela se mudasse para a cobertura, mas Maria Clara não aceitou sequer dormir lá uma noite. Na única vez em que visitou o apartamento fez um comentário sobre o bom gosto da iluminação em cobalto no espelho da sala e sugeriu uma parede pink com posters de Marilyn Monroe, Elke Maravilha e Madonna só para provocar. Isso foi quatro dias antes da consulta no pneumologista.

Romeu descobriu o problema de quase 40 anos de acúmulo de nicotina quando foi chamado pelo médico na sala com uma imagem enorme do que parecia ser o pulmão e uma expressão apressada. O senhor está vendo essa mancha cinza?, perguntou, apontando para uma bola do tamanho de um limão, Ali é o tumor. Romeu parecia não estar recebendo a notícia como se fosse relacionada a ele, ao corpo dele canceroso. Ficou mais interessado no modo como o doutor dizia as coisas mecanicamente, olhando para o relógio prata de marca suíça, que deveria ter custado uns 1,5 mil.

Saiu dali não com a sensação natural de que estava morrendo (“quimioterapia dolorosa ou a resignação de aproveitar intensamente os primeiros meses do resto de sua vida”, ofereceu o doutor), mas com a perturbação de achar que o jovem médico não estava fazendo o que gosta, apenas cumprindo uma obrigação entre um jogo de squash e uma orgia com prostitutas do site paraisoazul.com.br.

Quem está morto, afinal?, perguntou-se, enquanto abria a porta do seu brinquedinho de meia-idade.

Mais cedo tinha recebido no iPhone uma mensagem digitada às pressas: naum dah mais, deixo os DVDs portaria seu predio. Não conseguia admitir um final desse jeito. Estava dirigindo para o condomínio dela lembrando da vez que ela falou que só teria um filho com a certeza de que o pai seria mais rígido do que pai , ou do dia em que abriu um envelope pardo de correspondência e falou na frente dele que se todo mundo recebesse pelo correio o que pedia era muito provável que as cartas nunca saíssem de moda, ou de quando fizeram uma sessão de cinema ser reiniciada só porque um casal de velhinhos não tinha visto os créditos iniciais do filme.

Havia pensado em tudo aquilo pra dizer a Maria Clara, mas na hora simplesmente ficou com a voz embargada, o pensamento confuso: deu branco. Conseguiu apenas falar que não fazia sentido ela ir deixar os DVDs, ele estava lá para buscar tudo. Ela entregou a caixa de papelão que tinha lacrado com uma fita adesiva e escrito em hidrocor ROMEU, 1501. Só queria conseguir ter dito uma coisa: sem você, minha vida perdeu a cor. Deixou a porta se fechar e espremer o dedão, que meia hora depois estaria com o sangue pisado, completamente roxo de cair a unha.

pequeno tratado das coisas que fazem chorar

Pelo presente instrumento, ficam declarados eventos, imagens e pensamentos que autorizam lágrimas (este protocolo não contempla circunstâncias relacionadas a consultórios odontológicos):

_uma lembrança vívida;

_a conversa, aflita e definitiva, no carro, enquanto chove forte lá fora;

_o último parágrafo, do primeiro capítulo, de O Amor nos Tempos do Cólera;

_a caminhada longa e solitária;

_quedas. Na infância;

_uísque misturado com excessos;

_a primeira ninhada;

_nota baixa;

_crepúsculos;

_rostos em exercício de melancolia;

_o adeus não-verbalizado;

_revólver na cara;

_silêncio no cais;

_Ave Maria, de Schubert;

_filho em leito de UTI;

_a madrugada, gigante, pela frente;

_aquela lembrança.

O tratado ora exposto terá duração ilimitada, sendo eterno enquanto durar.

Oração da Tristeza

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Somos tão tristes que rimos. Rimos coletivamente, nos compadecemos de nossas desgraças, sorvemos nossas desilusões, ouvimos músicas em alto volume e erguemos a elas um altar chamado sofrência.

Somos tão tristes, meu Deus.

Estamos sempre à mercê, ao léu, ao Deus-dará, a ponto de um ataque, al dente. Estamos sempre em busca, à espera, no aguardo, no intervalo. Ansiamos pelo que não temos nas mãos, sofremos pelo que escapou dos dedos.

Nossas desesperanças viram coágulos de utopia. Na agonia, fazemos do tempo o maestro trêmulo de doloridos e lentos compassos. Ensaiamos passos, coreografias de poder e solidão, restos de ontem, cacos de então.

Somos tão tristes que isso vira uma indisfarçável matéria. Os garçons comentam nossa melancolia, os átomos de tungstênio percebem, o pároco nem disfarça mais, o presidente dos EUA colocou no discurso, está na cosmogonia, na Bíblia sagrada, no manual de ética, na Constituição Federal, o Alcorão e as músicas top10 da rádio já se tocaram, somos tristes demais. Tristeza, nada mais.

Somos tão tristes que chegamos a inventar Deus para nos autorizar o sofrimento – justo quando mais queremos nos libertar dele. Somos tão tristes que rimos. Somos tão tristes, meu Deus. Somos tão tristes, adeus.

*Publicado na revista portuguesa Lácio, em agosto de 2016. 

Senhor Conspiração

Deitado na rede, Marinheiro Milton decifra mistérios da espionagem internacional

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

“Mestre, esse livro aqui está bombardeado com raios de isótopos. Toda a literatura médica, científica e clássica é bombardeada com raios de isótopos em suas páginas para ser localizada em qualquer parte do planeta.” Deitado em sua rede, com um aparentemente trivial exemplar – desses que podem ser encontrados em qualquer sebo -, o marinheiro Milton relata um dos fundamentos tecnológicos em favor da espionagem internacional e discorre sobre o tema que mais aprecia e domina: conspiração. A vela é içada para mais uma viagem em direção à ilha de exótico saber do senhor de 72 anos e uma vitalidade que parece ter ancorado em alguma fase da adolescência. O vento que sopra é a voz rouca e rascante – sempre num timbre acima do usual – empenhada em desmascarar arapongas e estratégias.

Marinheiro Milton vai falar e, uma vez que você ouça suas descobertas, será impossível olhar com parcimônia até mesmo para uma inofensiva caneta esferográfica. “Quem inventou o grampo foi o russo, quem aperfeiçoou foi o alemão. Nos anos 30, a Alemanha mantinha todos os telefones da Europa grampeados. Nos anos 40, até o telefone de Getúlio (Vargas) já tinha escuta, e o de João Goulart, nos anos 60”, acusa. É certo que não basta ter ouvidos atentos para captar as histórias que mesclam a ficção de Júlio Verne e o cientificismo de Carl Sagan, a literatice de John Grisham e o New Journalism de Truman Capote. É preciso mente aberta para velejar no oceano de imprevisibilidades por onde singra a nau do mestre Milton.

Para dar entrevista, ele impôs duas condições. A primeira, de nobilíssimo altruísmo: “Desde que a reportagem não seja para exaltar minha pessoa, mas sim a própria imprensa, que continua me educando e reeducando”. A segunda, de ardilosa prevenção: “Tem que ser em uma quarta-feira ou no dia 5 de cada mês, pois são os dias de reunião da cúpula da CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA)”, avisou, acreditando ser este o melhor método para a nossa conversar passar despercebida.

Ritual investigativo

Manhã de quarta-feira e Milton de Andrade Moraes já iniciou o ritual cotidiano de acordar junto com os primeiros raios de sol, deitar na rede da varanda da casa simples no Cabula (uma espécie de sítio com residências de outros parentes) e ler vorazmente as páginas dos três jornais de Salvador. O trabalho solitário do ex-praça da Marinha é procurar os sinais ocultos nas entrelinhas, os vestígios nas notícias, as ligações subterrâneas entre fatos aparentemente distantes, como a inauguração de uma escola em Sri-Lanka e o lançamento de um satélite no Cabo Canaveral.

“Bin Laden trabalha para a CIA desde os 19 anos, vocês (imprensa) que disseram. Um artigo de fundo da revista Seleções afirma que a Al-Qaeda é uma organização patrocinada pela CIA. O Pentágono é a pátria das corporações, a catedral das empresas. O diretor da CIA é o homem mais poderoso do mundo”, torpedeia, ligando um assunto a outro e impedindo o interlocutor de acompanhar o raciocínio. Sem sair do conforto de sua rede, Milton, o marinheiro, revela, investiga e esquadrinha todas as grandes tramóias do planeta.

“Mestre, na hora que você toma remédio genérico ou transgênico, evidentemente tem um avião espião sobrevoando ou até um satélite para registrar. As notas de dólar e as revistas são criptografadas. Quando você anda na rua com este material, as torres e plataformas estão te seguindo, estamos sendo fotografados e escutados minuciosamente. Com o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), o Brasil já está dominando essa tecnologia, pois o computador central está em Brasília, decodificando tudo”, adverte, provocando na audiência a sensação de estar ouvindo uma revisão histórica do clássico “1984”, de George Orwell.

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Lavagem cerebral

Torneiro fresador formado pela escola de artífices da Marinha, Milton entrou para as Forças Armadas em 1946, levando uma carta de recomendação do major Cosme de Farias. A vida náutica durou dez anos até a aposentadoria. A bordo de navios, o marujo vivenciou histórias que poderiam render uma biografia aventureira. Fugir da polícia de Havana depois de um tripulante dar um calote em uma prostituta cubana foi uma delas. Mas a vocação para o realismo fantástico sublima suas próprias experiências. “O serviço mais inteligente é o de contra-informações, que usa muita psiquiatria para fazer lavagem cerebral. A antiga KGB (agência de espionagem russa) era useira e vezeira nisso. Às vezes eu penso que sofri uma lavagem cerebral, porque tomei 10 centímetros de insulina. Luís Carlos Prestes dizia que insulina também fazia o preso político falar. Tem insulina na cebola, cebolinha, mas tem mais no alho”, informa.

Filho de bicheiro e lavadeira, Milton saiu da pobreza absoluta e, seguindo o exemplo do pai (que só tinha dinheiro para comprar jornal aos sábados), criou um desejo incontrolável por informação. Além dos jornais, assina quatro revistas militares do Exército e da Marinha e tem uma biblioteca de 500 volumes que poderia virar referência curricular na formação do agente 007. Livros como Guerras secretas da CIA (do jornalista que investigou o escândalo de Watergate, Bob Woodward) e O FBI Por Dentro estão repletos de anotações de rodapé e até pregadores de roupa para indicar as páginas mais interessantes.

Há 42 anos, casou com Raquel, com quem teve cinco filhos e divide todas as descobertas. “Tudo que eu sei, ela sabe. Se algum araponga me pegar, vai ter que pegar ela também”, condiciona. Após uma consulta médica que seria uma prosaica revisão dentária, há uns três anos, dona Raquel ficou sabendo de uma novidade que poderia virar argumento para algum episódio da extinta série O Homem de Seis Milhões de Dólares. “Eu tenho um sensor de rastreamento em meu pré-molar do maxilar superior. Quem botou foi o capitão-tenente Washington, cirurgião-dentista. Ele disse que tinha recebido ordem superior para colocar em mim. Eu vi na hora que ele testou, o satélite deu um sinal em um computadorzinho”.

Charuto de Villa-Lobos

Os dias do marinheiro Milton são divididos entre as leituras dos jornais e releituras dos livros, em busca de alguma pista que possa ter passado despercebida. Esporadicamente vai à rua (“resolver questões de interesse”), mas prefere ficar na rede, ouvindo o cacarejar das galinhas e se enchendo de cultura. “O que eu faço no dia-a-dia? Penso no Villa-Lobos, que fez música para o cilindro da locomotiva, imitando a entrada e saída do vapor. E o som da bachiana que é da criança subindo o morro com a lata d’’água na cabeça?”, reflete o amante da dança de salão. “Era um gênio, mas aquele charuto Carbonara que ele gostava era de mafioso”, completa, voltando para seu tema favorito.

Capitão da fragata dos subtextos, Milton tem desconfianças sobre seu próprio passado. “Passei três anos dentro do navio-oficina Belmonte, que não tinha muito conforto. Então eu me recolhia em um porão abandonado, que depois fiquei sabendo que tinha armazenado material radioativo. Não sei se me afetou, mas os médicos devem saber”, admite. E, com a coragem de quem se lança ao mar revolto, revela suas próprias tormentas. “Tomo medicamento controlado e é justamente na hora da Voz do Brasil. É nesse momento que o avião do Sivam sobrevoa minha casa.”

 

*Publicado no Correio da Bahia, em 2005

 

 

Microcosmo de gente

A vida pulsa no universo eclético da multidão que diariamente transita pela passarela do Iguatemi

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com )

 

O filósofo clássico Heráclito definia, com beleza peculiar às frases simples, o princípio de constante mutabilidade humana dizendo que “não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio: Ou o homem não será o mesmo, ou o rio”, ensinava. Provavelmente, a inspiração para o axioma do pensador tenha surgido de um banho no curso do rio Caystre na cidade de Éfeso, onde Heráclito nasceu, na antiga Jônia, atual Turquia. Já o intelectual contemporâneo Jean Baudrillard traz a questão da modernidade e da dissolução do indivíduo na selva da civilização com uma imagem ainda mais banal: a da passante que atrai a atenção e em seguida perde-se tragada pela multidão. Possivelmente, Baudrillard construiu sua metáfora caminhando pela Champs-Elysées, a larga, arborizada e imponente avenida que liga a Praça Charles de Gaulle à monumental Praça da Concórdia, em Paris.

O aposentado, filósofo de botequim e anônimo Jaime Souza, 68 anos, versão mal-ajambrada de um Jece Valadão, com a boca banguela escancarada e um tanto de malícia no palavreado entrou na briga de conceitos. “É nesse vaivém, empurra-empurra que a vida fica mais gostosa”, decretou, usando um duplo sentido que só percebeu quem pôde ver a cara de satisfação do idoso no meio do esfrega-esfrega.

Para chegar à sua lapidar proposição, o senhor de cabelos brancos e pele enrugada, mas vicejando libidinagem, não ficou elucubrando conceitos, exercitando dialética ou teorizando sobre o sexo dos anjos. Foi criar seu próprio teorema onde a vida pulsa: a passarela do Iguatemi.

Mais movimentada passarela da Bahia, a via suspensa que une o shopping de maior freqüência do estado ao Terminal Rodoviário de Salvador é uma pequena cidade de uma só rua, sem edifícios, nem instituições. No diminuto trecho de 227 metros de comprimento por 2,5 metros de largura, uma Entre Rios caminha todo dia, uma São Sebastião do Passé anda ou uma Xique-Xique passeia. A média é de 40 mil pessoas transitando diariamente pelo local, estimativa da Secretarial de Transportes Urbanos. Tamanho fervilhar de vida foi prato cheio para a inspiração lúbrica de seu Jaime, em uma terça-feira, lá pelas 12h30. Poderia ser numa segunda, ou no início da noite de sexta, até mesmo num domingo ao meio-dia. Não coincidentemente, estes horários representam os momentos de término de cultos na vizinha edificação da Igreja Universal do Reino de Deus.

Do prédio monumental e imponente em uma das zonas mais nobres da cidade, sai uma leva de fiéis que toma conta das ruas em direção à Estação de Transbordo ou ao Terminal Rodoviário. Nessas horas, andar por aquela elevada estrada de concreto é como atravessar uma via-crúcis. Ou então a própria materialização do purgatório bíblico. “Isto aqui é um inferno”, batiza uma jovem, baixinho para não atrair a ira do círculo de fiéis e Deus não tomar conhecimento da blasfêmia. Não se sabe sequer como a garota arrumou fôlego para o sussurro, espremida entre centenas de outras. Nesse momento, a multidão que transita de forma vagarosa tem dois objetivos: o primeiro é chegar aos seus pontos de ônibus; o outro com certeza é invalidar o princípio da impenetrabilidadeda física. No espremido corredor ao ar livre, nas horas mais críticas, é possível que um pedestre menos apressado e fisicamente desprotegido demore uns 20 minutos para vencer a compacta massa humana, quase um amálgama de gente.

Indo e vindo ao sabor do fluxo de pessoas, o estudante Ricardo Oliveira, 16 anos, 1,64m e 56 quilos, já não tem mais livre arbítrio no meio do povo. “Meus pés não estão tocando no chão”, avisa. Os que conseguem preservar algum senso de humor são capazes de perceber situações engraçadíssimas. Um rapaz de 20 e poucos anos, camisa preta estampada com a palavra Kiss (não o carinhoso ato de beijar e sim o grupo de rock), muito impaciente com o tumulto, pisa o calcanhar da senhora à frente, descalçando o sapato simples e sem salto.

Vestida com uma saia longa e uma camisa de cambraia presa aos pulsos, a despeito do calor infernal, a fiel exclama: “Que …” O palavrão apropriado para uma situação tão irritante não chegou a sair da boca da crente que há pouco tinha embebido a alma com o bálsamo eclesiástico da fé. O jeito foi continuar andando com o calçado saindo do pé.

Um pouquinho mais à frente uma morena, enfiada em um top floral e numa calça branca colada às pernas e quadris bem cevados se intromete no bolo humano. É o suficiente para catalisar todos os esforços e hormônios de um mulato facilmente identificado como obreiro da igreja. Para ficar no horizonte da física, pode-se caracterizar a ação do benfeitor como um choque perfeitamente inelástico, um impulso traseiro para maximizar a quantidade de movimento. Afinal de contas, sabe-se que o nono mandamento prescreve: se o próximo não estiver tão próximo da mulher. Em cinco minutos, a multidão vai arrefecendo e, muitos chutes de calcanhares, empurrões e princípios de desmaios depois, toma seu curso normal. Normal não significa esterilidade de emoções e casos pitorescos. Eles estão sempre presentes na Passarela do Iguatemi.

Manancial

Exótico microcosmo de gente, pólis da essência humana, a passarela é um manancial rico em personagens. Na zona mais próximo ao shopping, sentada sobre um papelão, Maria da Conceição Silva, 43 anos, é vista como aberração por grande parte dos transeuntes. Com o corpo inflado em 130 quilos de gordura e a perna direita completamente deformada pelos males da elefantíase, a mulher sobrevive da conciliação de asco e piedade transformados em cédulas de pequeno valor e moedas arremessadas em direção ao corpo da enferma. “Não olhe pra essas coisas”, diz o irmão mais velho de um garoto, protegendo os olhos do menino da visão do granuloso membro inferior da doente. Uma mãe utiliza o exemplo para dar uma lição de educação sanitária à filha: “Veja aí o que acontece com quem não se cuida”, avisa, mostrando a perna da mulher tumorosa com a presença das filárias nos vasos linfáticos.

Por trás da aparência grotesca, esconde-se a alegria contagiante de Maria da Conceição. Fez três cirurgias sem sucesso na parte posterior do joelho e ouviu recentemente a previsão de um médico de que precisaria amputar. Antes teria que assinar um termo de responsabilidade reconhecendo o alto risco da cirurgia e a possibilidade de falecimento. Tenta há seis anos uma aposentadoria do INSS por invalidez, mas sempre ouve a resposta de que a enfermidade não permite a aposentadoria. A passarela é um sustento temporário, apenas aproveitando o filão das compras de fim de ano. Consegue, em média, R$20 por dia, saindo de casa às 7h e retornando meia-noite.

“Faltam R$300 para eu completar os R$5,3 mil para comprar a cadeira de rodas motorizada”, contabiliza, depois de praguejar contra os taxistas que não aceitam conduzi-la por causa da aparência. As pessoas passam e seus olhares de soslaio e repugnância não intimidam Maria da Conceição. “A perna não dói, mas quando fico nervosa ela rasga e mina um líquido”, revela, mostrando três cicatrizes de cirurgias. Alternando o ponto entre a passarela e a avenida Manoel Dias da Silva, Conceição faz elogios ao local. “Ninguém rouba ninguém, os pivetes não perseguem. Aqui é nota dez”, vibra. Como que para referendar a observação, Conceição recebe uma nota de R$1 da professora de artes marciais Elisângela Francisco, que não parece concordar com a comparação ao paraíso. “Não gosto muito de andar por aqui. Minha mãe já foi assaltada”, alega, imprimindo mais velocidade na caminhada. Mas logo ela, que dá aulas de defesa pessoal, com medo de roubo? “Na verdade, o medo maior é de andar nessa altura”, revela com inusitada acrofobia.

Praticamente pendurado em uma das barras, sentado, sem nenhuma forma de fixação a não ser o equilíbrio corporal, o ambulante Ricardo Araújo, 25 anos, sustenta discretamente uma coleção de bolsas de fabricação própria que tenta vender a R$5 cada. Tem cinco anos vendendo na passarela. Tenta fugir dos constantes assédios dos fiscais da Sesp, cuja função é não deixar ambulantes ocuparem o local para vendas. Aliás, “fiscais da Sesp” é uma expressão jamais usada por ambulantes, que preferem o sinônimo pejorativo para os profissionais: o rapa. “A gente até entende que eles estão fazendo o trabalho, mas têm que ver que precisamos sustentar a família”, condena Ricardo, pai de uma menina de 2 anos. Em cinco anos trabalhando na passarela, acompanhou um teatro a céu aberto. “Aqui acontece de tudo: gente tropeçando e caindo, marido dando tapa em mulher, até os caras roubando”, denuncia.

No meio do papo, a doméstica Gilvanete Barbosa, 19 anos, depois de mais um dia de serviço na “casa de família” no Caminho das Árvores, encanta-se com o modelo da bolsinha. Acertada a pechincha (R$4,50), a única questão é escolher a cor da peça. O vendedor, que em dias bons vende quatro bolsas e nos ruins nenhuma, sugere: “Leve essa marronzinha que combina com sua pele”, acrescenta, olhos gulosos nas coxas da moça apenas parcialmente cobertas por uma saia de crochê.

Em direção à rodoviária, onde vai pegar ônibus para Marechal Rondon, Gilvanete passa por Genivaldo de Jesus Souza, um deficiente físico que prega passagens bíblicas diuturnamente e recebe caridade. “Deus tem uma missão para você”, conclama, enquanto Gilvanete passa pelo local sem dar muita atenção. A frase tanto pode ter sido para ela como para as cinco ou seis pessoas que andam simultaneamente ao seu lado. Com uma deformidade no tronco e nos membros que o reduz a um tamanho não superior a um metro, Genivaldo recita parábolas bíblicas continuamente. Sem poder se locomover, chega ao local às 9h, carregado pelo irmão Ubirajara. “Desde que aceitei Jesus, em 99, na Igreja Batista de Plataforma, vi que Deus tem um plano para mim. Uma vez, um jovem ia se jogar dessa passarela e, ao ouvir minhas palavras, desistiu”, confia. O slogan do shopping é “nenhum é igual a você”. O rio de gente que corre diariamente pelo espaço faz com que a passarela seja sempre a mesma e sempre diferente.

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VIDA SUSPENSA

Passarelas projetadas por Lelé formam ecossistemas ricos em personagens

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

A passarela do Iguatemi é uma exacerbação do que acontece em outros equipamentos da cidade. Salvador tem 16 passarelas no modelo mais moderno, projetadas pelo arquiteto João Filgueiras e construídas pela Companhia de Desenvolvimento Urbano de Salvador (Desal), empresa de economia mista especializada na fabricação de mobiliário urbano de alta resistência e que também serve à iniciativa privada. Cada uma delas tem uma personalidade própria, a depender da espécie de transeunte que comporta. As quatro passarelas na Avenida Bonocô são gêmeas, abrigam três pontos de ônibus em ambas as pistas da avenida e na via exclusiva.

Não têm tanto movimento como outras mais trafegadas, mas possuem uma conotação clubística marcante. Principalmente em dias de Ba-Vi na Fonte Nova, são decoradas com bandeiras das equipes. A passarela do Detran é uma das mais antigas e foi decisiva para a diminuição do número de atropelamentos na região.

Na BR-324, algumas passarelas antigas e descobertas servem à população local. Uma delas, próximo à Brasilgás, bem conservada, recebe bom fluxo de passageiros carregando sacos, pacotes, malas e mochilas, que saem de São Caetano para pegar ônibus intermunicipais na parada. Mesmo sem ter um toldo de proteção, os transeuntes preferem usá-la até em dias de chuva a atravessar a rodovia. As passarelas da Avenida ACM viraram ponto preferencial de suporte de galhardetes e cartazes no período eleitoral.

Na Avenida Centenário, no Chame-Chame, uma passarela no Shopping Barra é a que mais se assemelha ao perfil da similar no Iguatemi. Com um fluxo de pessoas razoável, configura os jogos de poder e as implicações sociais observadas na principal expoente do fenômeno das passarelas. Logo de início, uma senhora, daquelas com aparência de que fazem passeios vespertinos em supermercados, reclama da ausência de iluminação artificial no local. O ambulante Antônio Barbosa, 55 anos, vendedor de bugigangas paraguaias, confirma a queixa, ressaltando que não é feita manutenção há quase dois anos. “Trabalho no escuro até a hora do shopping fechar”, afirma Antônio, salientando que a partir das 18h, “hora que o rapa vai embora”, trabalha mais livremente. A chuva começa a cair e ele rapidamente muda o nicho de mercado, estendendo sombrinhas.

A estratégia dá certo. Um senhora, roupa molhada, cabelo sarará escorrendo água e entrevendo calvície,questiona: “Quanto é?” “Cinco reais”. Escolhe uma estampada em rosa com motivos florais, a mais espalhafatosa das peças.

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Embate de classes

A reprodução do embate de classes não se esgota. Dois rapazes com estilo de geração shopping center (roupas de marca, tênis da moda, cabelos com gel) emendam: “Ô, véio, quanto é o guarda-chuva?” “Cinco reais”.

Ambos saem sem nem um agradecimento. Um senhor vestido com calça de linho e camisa social se aproxima e sequer pergunta o preço. Aponta para a sombrinha em tons marrons.”Aquela ali”. Só depois questiona o valor:”É cinco reais, não é?” E leva. Antônio aponta para um vendedor, poucos metros adiante, que se recusara a dar entrevista. “Aquele é safado, quer prejudicar chamando o rapa. Já tomou porrada porque é dedo-duro”. E vende mais uma sombrinha antes da chuva cessar.

Sentados em poses que poderiam ser confundidas com indolência, quatro hippies fazem artesanato em palha e bijouterias. Depois de passarem por Itubiara, Brasília, Juazeiro e Petrolina, a previsão é de retornar logo que arrecadarem o dinheiro para a passagem. Um deles, Gilberto Gonçalves, mostra uma sacola com uma muda de roupa puída, uma marmita e uma manta velha. Enquanto isso, dois vendedores de loja de marca, fardados, perguntam quanto custa um colar. Pela expressão de reprovação, não gostaram de ouvir R$10. Mais na frente, um casal branco de estrangeiros compra um cinto pretensamente de couro nas mãos de outro ambulante. Ao lado, o vendedor de doces oferece uma iguaria exótica ao paladar europeu: beijuzinho molhado de tapioca. “Faço por R$0,50”. E nessa, a integração étnica vai se desenrolando. A passarela não tem fronteiras.

Mais do que equipamentos facilitadores do trânsito, as passarelas de Salvador se transformaram em pequenos ecossistemas. A do Iguatemi é insuperável. A dupla de soldados da PM, Lacerda e Vieira, sabe muito bem disso. “Aqui dá de tudo. De estelionatário a viado ordenando o bofe a largar o outro”, avisa Vieira, óculos escuros no rosto e pinta de tira do antigo seriado Chips. Encostados nos peitoris de ferro ou fazendo uma ronda pelo local, os dois formam uma das três duplas de policiais que se revezam em turnos das 7h às 13h, 13h às 19h e 16h30 às 22h30. “Depois que o policiamento ficou constante aqui, o índice de ocorrências caiu muito”, assegura o orgulhoso Lacerda. “Antes, tinha muito pivetinho praticando pequenos furtos”, completa. Basta terminar de falar para dois menores passarem, tentando disfarçar a apreensão. “Aqueles dois ali são ladrõezinhos, mas como viram que estamos aqui vão procurar outro canal”.

Velhos tarados

Lacerda e Vieira já viram muita história na passarela. “Teve briga por causa de traição, flagrante de adultério, mas também tem muita gente que deixa o carro aí no estacionamento do shopping e se encontra por aqui”, entrega Lacerda, detetive particular nas horas vagas. “Ultimamente, tem aparecido muito velho tarado. Eles entram no bolo de gente para ficar roçando o braço nos seios e nas nádegas das mulheres. Ou então oferecem R$20 ou R$30 para as garotas mostrarem os seios. Alguns conseguem”, detalha. Um senhor de paletó, acima de qualquer suspeita, caminha rapidamente carregando uma pasta e, quando abordado pela reportagem do Correio da Bahia, dá de ombros: “Tô ocupado agora”. O soldado Vieira dá sua versão para o repúdio do idoso.

“Aquele mesmo é um dos velhos tarados”.

Em uma informal convenção para a viabilização do trânsito, as pessoas adotam, nas passarelas, o critério de fluxo semelhante ao dos automóveis em rodovias: duas filas caminhando em direções opostas com os pedestres à direita. Geralmente, esse tipo de escolha facilita o trabalho dos distribuidores de panfletos. Eles são facilmente encontrados oferecendo de limpeza de estofados a dedetização, de dinheiro fácil a consultas ao tarô.

Para Ana Lúcia Santos, 23 anos, o vaivém de gente vai ser transformado em um polpudo aumento nas comissões. Ela tenta cadastrar associados para o cartão de compras de um supermercado próximo. Por que escolheu o local? “Porque aqui tem muito movimento”, responde, sem querer perder tempo e mais um potencial cliente. Em 30 minutos, conseguiu 22 adesões, quase um recorde do marketing one-to- one. “O produto também é bom, a gente dá 40 dias para pagar e quatro vezes sem juros, sem taxa de anuidade”, completa como exercício de modéstia.

Quando menos se espera, a circulação é atravancada, as passagens são interrompidas. Na frente de uma fileira de pessoas, um deficiente físico, apoiado em muletas, não consegue manter a mesma cadência da maioria, provocando um engarrafamento humano parecido com o de carros que acontece na pista alguns metros abaixo.

Um pouco atrás, sem perceber as razões do congestionamento, um rapaz resmunga:  “Pôxa, até parece que tem aleijado na fila”. E na ala oposta, em outro momento, uma mulher reclama com a garota da frente: “Ih, essa aí está desfilando”. Desfilar, desfilar mesmo, a estudante Carolina Santana, 16 anos, só poderia nesse tipo de passarela. Baixotinha, um pouco acima do peso, cabelos desgrenhados e rosto com espinha, não tem nada do biótipo e do glamour das modelos que desfilam suas magrezas pouco ocultas em roupas chiques no Iguatemi Collection. Lá vai Carol no mesmo passo, sem dar bola às queixas, pisando em ovos e tendo um público um pouco mais hostil do que os dos desfiles de moda. A passarela popular é assim mesmo: dinâmica, plural, sem preconceitos.

*publicado em 12 de janeiro de 2003, no Correio Repórter 

LIVRE É NÃO SENTIR SAUDADE

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

As últimas lembranças que se dissipam são dos cheiros, mais velozes do que a razão, vão direto no corpo: perfumes que se transformam em grilhões. Livre é quem não tem saudade.

Fragrâncias acionam a memória por partes. A boca, clara e fina, esticada antes de expulsar uma voz rouca. O vinco descendo ao lado do nariz até encontrar a ponta dos lábios, uma forma quase masculina de fazer charme. Os olhos que, mesmo em um sorriso, tentam esconder um mergulho na aflição. Liberdade é não ter ninguém a quem oferecer saudade.

Que vários questionamentos atordoem sua cabeça como se estivesse na tempestade oceânica que é uma prova de matemática para a qual ainda não tinha estudado. E a única coisa que vai te ancorar nesse naufrágio de sensações, perdido como um peixinho, é o olhar fixo para os sinais naquele outro braço, as pintas que você lamentará não serem uma parte de ti para poder ter sempre tatuadas em sua pele. Pele, pétalas, telas podem fazer milagres. Livre é não ter gosto de saudade na boca.

Aquela expressão severa de nostalgia, como a descoberta – a primeira vez – de todos os instrumentos de uma música, o ouvido pousando em cada sonoridade e a maravilha de saber que estiveram sempre ali esperando ser notados. A polifonia inebriante que repete, palimpsesto de canais estéreos, como é urgente viver. Ouvir a dor em sua voz. Liberdade é não ter a quem dedicar saudade.

Translação das partidas, rotação da angústia, órbita da melancolia: a lua ficou grande e vermelha, inflamada, como o exagero de sentir falta do que nunca foi vivido. Vívido. Vida é como nomearam essa ciranda que é mais despedida do que encontro: quando você se vai deixa muitos fios do cabelo pelo piso, em cima de móveis, dentro de livros. E leva uma parte do meu coração que parece felicidade, mas é melhor ainda; costumam chamar de paz.

Sou livre porque a saudade pousa nos cinco sentidos e não fica. Vai por aí sobrevoar quem goste: saudade-passarinho.

Livre_Saudade

*Publicado na revista Lácio, de Setembro de 2015