Os Baianos – Nelson de fogo e de ar

Se com o litro de gasolina a R$3 já não está fácil para os privilegiados que andam em seus carros climatizados pelas ruas em Salvador, imagine para quem usa o combustível como forma de subsistência, justamente nesses semáforos gélidos de ingratidão.

Um isqueiro na mão, uma ideia na cabeça

Nestas encruzilhadas da vida, é possível topar com Nelson, seus pinos de fogo e um galão de 5 litros de gasolina, geralmente consumido em 3 ou 4 horas de trabalho. Os 30, 45 segundos de sinal fechado que para um motorista são eternidade significam o mini expediente dele com seus bastões flamejantes.

Diante da frieza glacial de muitos motoristas que não enxergam ali uma forma de arte, mas coisa de vagabundo, ele responde dizendo que é divorciado, tem dois filhos e precisa de qualquer jeito contribuir com a pensão das crianças e aliviar a cara fechada das ex-mulheres.

Não tem sido fácil. Calcula que ganha entre R$8 a R$10 por hora de apresentação, quando consegue reunir aquelas moedinhas muitas vezes oferecidas entre centímetros de vidro abaixado. Cédulas são tão raras quanto hidrantes com a adequada pressão de água na Av. Manoel Dias da Silva, na Pituba, onde faz ponto.

Os bastões flamejantes de Nelson
Os bastões flamejantes de Nelson

Gosta de fazer a barba para causar boa aparência e não se queimar com os clientes. “Quando eu fico mais novo, eles não me vêem como um cara de 30 anos e podem até ajudar mais”. Mesmo assim, alguns merecem até arder no inferno da avareza. “Tem criança que é empolgada e fica pedindo para dar o dinheiro, mas de nada adianta se o pai é pão duro”.

A cada apresentação rápida como relâmpago ele finge ser desajeitado e deixar cair um bastão apenas para mostrar que tem a habilidade de jogar para o alto com um pé. Enquanto os pinos riscam o ar em uma geometria faiscante, a cabeça dele voa para uma filha de 12 anos e um filho de 8 anos em Manaus.

Inalar o gás, dedos carbonizados, pretos por fuligem e pelo roçar constante com o acendedor do isqueiro, tudo isso com um comportamento agradável, respeitoso e gentil. Nelson José Ferreira dos Santos é mais ar do que fogo. Há 8 anos, desde o nascimento do segundo filho, não consegue comprar uma camisa ou uma calça próprias, literalmente está vestido com roupas e armas de doações. “Se você tiver alguma roupinha, pode me dar. Não é vergonha pedir”.nelson1

Em Feira de Santana, onde nasceu, deixou saudades que vêm e que vão. Como essa namorada, que bateu na porta de sua casa em Itapuã, ontem mesmo de manhã. Chegou assim, sem avisar mesmo, o que para Nelson, mais do que surpresa, é incômodo. Não gosta muito de trabalhar aos domingos (muito menos um domingo chuvoso como este), mas “agora tive que vir pra rua pra fazer um dinheiro que ela possa comprar a passagem de volta para Feira”. “Eu já disse a ela que espere eu ir para Feira que é melhor”.

"Como garantir a passagem da namorada?"
“Como garantir a passagem da namorada?”

Há isso e um problema adicional. Quando a mãe da filha mais velha de Nelson fica sabendo que ele está com mulher ou recebeu alguma visita, começam cobranças por dinheiro desproporcionais. “Acho que ela sente ciúmes, mas não tem como voltar. Não existe ex-mulher, é pra sempre. A gente apenas deixa de ´pegar´, mas ela continua lá, aporrinhando”. Para Nelson, esse negócio de ex-mulher é fogo.

A encruzilhada do artista de rua
A encruzilhada do artista de rua

Nelson trabalha em eventos e aceita convites para apresentações. O contato é (71)9669-4235

Amendoim Torrado

A saga de um jovem, e seu paletó, para vender petiscos sob o calor e a indiferença do trânsito de Salvador

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Torrando no asfalto quente, Uélton garante que está satisfeito

No calor de meio dia do verão de Salvador, a visão de Uélton Júnior Silva dos Santos é como uma miragem às avessas. No irritante trânsito em brasas, ele surge entre carros com uma bandeja pesada de amendoins e uma farda que lembra estagiário de Direito. Você vê aquele rapaz de terno escuro, gravata apertando o pescoço, esfrega os olhos desacreditando e  – ao contrário de uma ilusão de ótica com um coqueiro e uma lagoa no deserto – você não quer estar no lugar dele.

Uélton, 23 anos, apelidado como Cinho, parece se sentir em um oásis particular dentro desta indumentária abafada, oferecendo petiscos a motoristas enquanto eles esperam os 80 segundos de um semáforo nervoso. “Não sinto esse calor todo. Uso o traje completo porque eu acho assim, muitas das vezes, usando bermuda, quer dizer, não me sinto bem, tenho sempre que ter apresentação diferente”, explica Uélton, ainda gaguejando por não acreditar que seu método de trabalho possa interessar a uma reportagem.

Paletó, gravata, calça de brim: impexável vendedor gentil
Paletó, gravata, calça de brim: impecável vendedor gentil

Os totens com termômetros nas proximidades da Pituba discordam entre si sobre a temperatura exata do momento. Alguns apontam 34°, outros, 36°, um mais exagerado, na Avenida Magalhães Neto, chega a 38°. O certo é que a chamada sensação térmica parece dizer: saia de casa com camiseta, short e sandálias e mesmo assim se prepare para uma possível desidratação. Só que o jovem vendedor não dá muita bola para esses imperativos da natureza quando a ideia é provocar uma boa impressão na clientela. “Desde 15 anos, trabalho de paletó e gravata. Comecei com a camisa social. Botei gravata, deu certo. Botei paletó, deu mais certo ainda”, recorda, mostrando que uma ascensão profissional também pode estar ligada ao guarda roupas.

A empolgação com o impacto de marketing provocado por traje incoerente com a meteorologia não disfarça as espessas gotas de suor que escorrem pelo rosto magro e moreno do ambulante elegante. No momento, 15h30, usa casaco preto, camisa vermelha, gravata de listras diagonais coloridas, calça azul marinho, sapato marrom. É provável que quando retornar para casa em Fazenda Coutos, a camisa interna esteja encharcada, mas a alma lavada com a venda de todo lote de 150 saquinhos de amendoim.

Ele também comercializa balas de café ou gengibre, jujubas, paçoca, pé de moça. A escolha da mercadoria para trabalhar depende do intricado cruzamento de dados sobre estação do ano, lucratividade do momento, demandas de cliente. Para vender doce, não pode sair de casa depois de 7h e alcançar os clientes chegando nas escolas. Quando o produto é amendoim, ele digitaria o #PartiuTrabalho (caso tivesse tempo e dinheiro sobrando para essas amenidades chamadas redes sociais) às 10h. A depender do movimento, esgota a carga de sua bandeja (saquinhos por R$1) às 18h, ou 20h30, se estiver ruim.

Uelton faz parte de um exército de batalhadores com números imprecisos em Salvador: os guerreiros do trabalho informal que podem chegar até a dezenas de milhares saindo a campo pela sobrevivência diária. Diz morar com irmão de 18 anos, outro de 8, e duas irmãs de 14 e outra de 5. A mãe é falecida. Mas nenhuma das informações dada por ele foi checada in loco pela reportagem. “Eu sou o cabeça da casa. Tenho que passar responsabilidade. Devemos instruir nossos filhos no caminho que têm que andar. Não podemos perder eles pra essa droga maldita que aí está, o crack. Dando boa educação, sendo discreto, sendo passível”, ensina o engravatado de esquina, mostrando que sabe como “dar um calor” nos irmãos mais novos.

Ele diz que é pai de uma menina de apenas um ano, Maria Vitória Nascimento da Silva, que mora com a mãe no distrito de Cachoeira dos Prazeres, na cidade de Jiquiriçá, a 250 quilômetros de Salvador. Mesmo com essa descrição, ele tem uma forma inusitada de se declarar “pai solteiro”. Parece que a situação ficou quente para o casal e o relacionamento, encerrado, segundo ele, por uma decisão própria, já que não gosta de brigar, xingar e isso estava ocorrendo. Ele garante que é melhor pensar bem, como se fosse uma coisa consensual, mas logo depois avisa que está aguardando uma decisão do juiz para entrar em acordo. Há algo impreciso na história, então é melhor voltar para a alta temperatura do momento.

Ação rápida: em alguns segundos Uélton precisa convencer motoristas apressados
Ação rápida: em alguns segundos Uélton precisa convencer motoristas apressados

Com um sotaque meio acariocado na voz, desses que se ouvem em locutores de FM populares e em todo mundo que pensa em atalhos para a fama, ele vai oferecendo “é um real o pacotinho” para Toyota Corolla, Honda Civic, taxista no Meriva. Andando, desviando de carro e de caras de espanto, suando. “Aqui é calor, mas não me incomodo muito vendendo de terno e gravata. Já sou acostumado, também não discrimino quem vende de bermuda ou de camiseta. Eu digo a eles não para se espelhar em mim. Mas na limpeza, ser cheiroso, cabelo cortado, pra as pessoas falarem bem da gente. Bote sua beleza sempre em prática para chegar em algum lugar”, ensina.

Só que Uélton não é um rapaz apenas de aparências. Ele carrega uma garrafa de água mineral de 1,5 litros e diz que é preciso pensar na “hidratação da pele, não esquecer da água, usar protetor solar. A indicação é beber pelo menos 2 litros de água por dia e cuidar da saúde para não pegar o tal câncer de pele”. Por trás daquele montinho de amendoins bege há um pequeno arquivo mental com todas as informações básicas de sobrevivência sob o sol a pino, disponíveis também para quem tem acesso ao google.

Um motorista baixa o vidro fumê do Hyundai Tucson e Uelton já saboreia o real da venda, ou quem sabe se 2 ou 3, a depender do apetite do cliente. O sopro suave do ar climatizado massageia seu rosto e junto com ele a pergunta, uma ducha de água fria: “Pra que lado fica a Praça Nossa Senhora da Luz?” O vendedor aponta o dedo pra esquerda, depois do semáforo: “É por ali”, mas não se dá por derrotado assim tão fácil. “Vai um amendoinzinho aê?” “Não mesmo, fera, estou com pressa”. E decola com sua barca deixando no rastro do verdadeiro motivo da pergunta, que está na placa de São José dos Campos-SP.

Nesse mundo de quente/frio das ruas, ele recorda da violência física no ano passado. Era uma manhã de sábado, por volta das 10h. Ele diz que um menino de rua estava bagunçando na farmácia da esquina. Foi proteger o segurança e terminou atacado por três rapazes, recebendo uma paulada na cabeça, por trás, quando segurava o adolescente. “Foi um ato de covardia”. Não tomou pontos, mas usou folha de aroeira seca e benzetacil, porque gosta de remédios naturais.

Tão dolorosa quanto a pancada é a violência psicológica dos clientes, algo que hoje deram para alertar como bullying. “Já me chamaram de maluco, de doido, perguntando se já usei remédio por causa dessa roupa. É meu jeito de trabalhar. Não discrimino ninguém. Mas eu digo pra eles que estão no ar condicionado, no escritório, que enquanto eles estão com gelinho no rosto estou dando meu duro. Podia dar pra coisa ruim, pra ladrão, mas estou aqui dizendo que é pra não discriminar que é pra ter amor no coração de quem está próximo”, reflete ele, enquanto bem ao lado trafega toda essa insanidade medicada que se chama a vida na cidade grande.

Quando todos os sinais pareciam fechados a um avanço, ele pensa em prosseguir. Pretende sair desse trabalho correndo atrás de carteira de trabalho, título de eleitor e CPF, para arrumar emprego fixo. Lá na frente ele entrega que acha bonito seguranças de terno e gravata em shoppings ou lojas. “Meu negócio é quem tá na estica, ou ser auxiliar de gerente”.

Uma miragem às avessas: engravatado sob o sol de 38°
Uma miragem às avessas: engravatado sob o sol de 38°

O trânsito, esse ecossistema predatório com armas sonoras em forma de buzinadas, xingamentos, freadas bruscas, ou faróis indevidamente altos, fechadas. Território em que Uélton se auto condicionou a pensar que só com terno e gravata para ficar à altura do aposentado que vem com sandália japonesa e camisa de botão aberta até embaixo do peito, ou a moça com roupa de academia e transpiração pelo rosto, ou dois surfistas que chegam em sungas defumadas de curtição. “Meu plano é ir trabalhar em São Paulo vendendo meu amendoim. É o local que dá pra ganhar dinheiro. Se eu for pra lá, vou me dar bem. Tem um exemplo de um cara que vende de paletó. Hoje ele continua de paletó, mas tem os funcionários todos de camisa de botão”.

Os três encontros com Uélton foram todos eles vespertinos no semáforo do cruzamento entre a Avenida Paulo VI e a Rua Almirante Carlos Paraguassu de Sá, com esquinas ocupadas por farmácias. Mas ele também pode ser acionado por algum cliente itinerante nas proximidades da Praça Nossa Senhora da Luz, perto das muitas escolas do bairro, em qualquer ponto com pouca concorrência e uma sinaleira que ofereça um intervalo útil para ele mostrar as qualidades do produto. “Olha o amendoim, é só um real”.

Na hora da despedida, Uélton é daquelas gentilezas que não pensam em lucro imediato. “Por favor, leve um amendoim para comprovar a qualidade”, oferece ao repórter. “Obrigado, mas acabei de almoçar agora”, recusa, apontando para um relógio que marca mais de 14h. É mentira, o repórter ali naquele momento tem fome. Rejeita a oferta, não se sabe se por uma questionável ética jornalística ou por ética ao próprio sistema digestivo. É que naquele calor até o saquinho de amendoim aparecia meio suado. Só que mesmo sem provar, garante-se, estava uma delícia.

O trânsito, esse ecossistema predatório, passa aos olhos do vendedor elegante
O trânsito, esse ecossistema predatório, passa aos olhos do vendedor elegante