Maluco pelo Bahia

Binha de São Caetano detesta ser chamado de doido pelos rivais, mas quando fala do Bahia perde a razão *

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

O Esporte Clube Bahia, instituição fundada em 1931, clube duas vezes campeão brasileiro e recordista baiano (mais de 40 taças), time com seguidores que se denominam integrantes de uma nação própria e que veneram um escudo e uma bandeira pintados de azul, vermelho e branco, se fosse uma espécie animal seria um elefante africano, um gigante ameaçado de extinção. No âmbito nacional, ocupa o limbo dos campeonatos, um torneio chamado de terceira divisão, mas que na falta de uma quarta é o mais baixo degrau em uma escada de competitividade. No âmbito estadual, não é mais respeitado nem pelo mais humilde dos times do interior (daqueles que remuneram o artilheiro com vale-alimentação semanal no mercadinho). O cadafalso é tão iminente que um dos cronistas mais bem informados sobre os bastidores da equipe, o radialista Márcio Martins, acostumado a registrar as glórias de um time cujo slogan é “nasceu pra vencer”, resolveu chamá-lo de “ex-grande clube em atividade”.

Binha: ele se preocupa em saber se passa imagem de maluco… pelo Bahia

Agora tente relatar todo esse parágrafo de desilusões para o aposentado Flávio Alexandre da Silva Filho, conhecido nas arquibancadas da Fonte Nova e nas principais resenhas esportivas do rádio baiano como Binha de São Caetano. Tente e aguarde a resposta.  “Todo mundo me informa que o Bahia está na pior, mas eu não enxergo assim”, admite Binha, vítima de um explícito caso de adultério esportivo. “Não consigo aceitar que o Bahia está mal”, completa, ao ouvir que ele deve ser o inaugurador do gênero do corno de arquibancada, aquele que é o último a saber quando o time está caindo pelas tabelas.

Pai de quatro filhos (Vítor, Leonardo, Vinícius e Danilo) com duas esposas diferentes, Binha é monogâmico em suas paixões. “Posso até largar minha mulher, mas não largo o Bahia”. A conversa cheia de exageros sentimentais por um time que os adversários insistem em chamar de moribundo pode até parecer resultado de profunda temeridade mental. Só que é mesmo difícil acreditar na integridade psicológica de tão extravagante torcedor. Sempre que o assunto é futebol, ele costuma começar cada diálogo com uma saudação tão inverossímil como dizer alea jacta est toda vez que se inicia um encontro romântico: “O Bahia vai ser campeão da Copa do Brasil, campeão da Série C e da Série B, campeão baiano e campeão da Libertadores em 2007”, dispara.

Mesmo com o time na Série C, ele nunca demonstrou abatimento

Sonho de conselheiro

Em situações normais, Binha consegue manter uma conversa equilibrada e comentários de quem anda bem informado sobre as notícias gerais. Só parece perder o juízo mesmo é quando fala do clube que toca seu íntimo. “Eu não fico doido, fico radiante pelo Bahia”, corrige ele, cujo maior sonho atual é conseguir o título de conselheiro do clube. Para tentar a honraria, concedida de acordo com o prestígio do torcedor, Binha já foi para a televisão e participa regularmente de resenhas no rádio, onde sempre implora ao influente conselheiro Paulo Maracajá, chamado por muitos como eterno presidente do clube. O controvertido dirigente, criticado de goleada e idolatrado por alguns, é venerado por Binha. “É o melhor do mundo, mas todo mundo gosta de meter o pau nele do mesmo jeito que tentam derrubar a laranja madura”.

Ele mesmo tem o sonho de ocupar o lugar que já foi de Maracajá por décadas. “Se eu ganhar na loteria, vou ser presidente do Bahia. Separo R$ 10 milhões para minha família e dou R$20 milhões para o Bahia”, calcula, mostrando na aritmética como anda a balança comercial de seu coração. Flávio Alexandre da Silva Filho recebeu o apelido de Binha do avô e é de São Caetano mesmo tendo nascido no Curuzu, na Liberdade. Aposentado por um grave acidente de trabalho há cinco anos, quando prestava serviço como instrumentista de uma empresa petroquímica no Rio de Janeiro, ele precisou de cuidados médicos e um longo período de convalescença para recuperar a vida normal. Na explosão, sofreu ferimentos nos braços, pernas e na cabeça, mas não gosta de falar sobre o assunto e muito menos informar se houve seqüelas.

Continua na ativa em um trabalho anônimo que o faz passar o dia inteiro percorrendo lojas e repartições do centro da cidade, mas ele não revela o teor do serviço. Passou 22 anos como empregado no mercado formal e também complementava a renda vendendo linhas de telefone, na época eu isso era um grande negócio. Desde o final da década de 70, ele resolveu que seria o talismã do Bahia e passou a viajar para qualquer lugar do Brasil onde houvesse um estádio para abrigar o time. Enrolado em uma bandeira como se fosse um beduíno percorrendo os desertos da paixão futebolística, ele é um andarilho em busca dos oásis da vitória. Tornou-se personagem singular e solitário. É independente, não abraça a causa de torcidas organizadas e mesmo quando a maioria tricolor protesta, ele permanece na cegueira do amor inconseqüente. “Só que também acho que quem está na terceira divisão não pode estar bem”.

No momento seguinte, ele mostra que não está mais para churumelas. “A meta do Bahia tem que ser campeão brasileiro, nada de boa participação no campeonato”, exige ele, que associa o registro como torcedor à própria certidão de nascimento. É Bahia desde que nasceu, há 45 anos, como faz questão de alardear.

Binha aproveitou a notoriedade para buscar uma vaga na Câmara de Salvador

Viagens do fanatismo

As viagens para jogos em qualquer parte do Brasil são um capítulo à parte na trajetória de emoção e sofrimento do abnegado torcedor. Todo mundo quer saber como ele consegue bancar essa turnê boleira pelo país, com passagens de ônibus e avião. Binha não faz questão nenhuma de revelar o segredo. Ora garante que o Bahia oferece vaga junto com a delegação, ora sugere que amigos fanáticos como ele, mas cheios da grana, convidam para acompanha-los com as despesas pagas. No mapa do fanatismo, já viajou oito dias de barco, em 1979, depois de quase o mesmo tempo de viagem de ônibus até Belém, capital paraense, para assistir ao confronto entre Bahia e Nacional. Desbravar o rio Amazonas valeu a pena para ele, já que Fito garantiu a vitória por um a zero na ocasião.

Outro momento sintomático foi um jogo no ano passado, contra o Remo, também no Pará. Faltando duas horas para o início da partida, o assessor de imprensa do Bahia, o jornalista Darino Sena, procurou aquela figura vestida de tricolor dos pés a cabeça na arquibancada e não encontrou. Ficou preocupado porque seria um fato inédito a ausência dele em uma partida. A menos de 10 minutos para o apito inicial, um grito pelo estádio: “Darinooooooo…” Era Binha, exasperado, porque não iria conseguir fazer o ritual de pedidos divinos por um bom resultado. “Poxa, Darino, eu não cheguei a tempo. Eu tinha cronometrado tudo direitinho, mas o ônibus atrasou duas horas”, reclamou sobre a viagem que durara nada menos do que três dias e, portanto, poderia muito bem ter uma margem de atraso como essa.

“E agora, Darino? Eu não fiz minhas orações, o Bahia vai perder…” Só que o time terminou vencendo por 1×0 desconcertando todas as superstições dele.

Queixas

Ao final de um dos principais coletivos do Bahia, no crepúsculo de uma sexta-feira, Binha chega vestido à caráter (short e camisa oficiais, tênis e bandeira do clube no corpo) para abordar jogador por jogador. Ao jovem meio-de-campo Ancelmo, promovido recentemente ao time profissional, ele dá um estímulo. “Queria ver você jogando como titular. Vou falar com (o técnico) Charles. Você ama o Bahia e eu amo você. Quero te ver na Seleção”, empolga Binha, diante de um assustado Ancelmo, que na fase atual está mais acostumado a receber os apupos indignados do que palavras de incentivo.

Em seguida, na subida de outro atleta, ele pergunta: “você é lateral direito, não é?” depois da resposta positiva, ele inicia um rosário de elogios dignos de um craque que estivesse com o nome estampado nas revistas especializadas. “Você é o melhor do norte-nordeste, o melhor da Bahia e do Brasil”, vibra, mas sem dar nenhuma pista de saber quem na verdade se trata.

Ao meio-de-campo Emerson, Binha se dirige com uma reprimenda por um passe errado em um jogo contra o Fluminense, em Feira de Santana. “Quase que naquela bola o Bahia toma um gol e sai desclassificado”, relembra, sobre o lance de um jogo em que o time da capital ganhou e a torcida inteira já tinha esquecido na saída do estádio. Depois, dá uma rápida aula de historiografia oficial do clube fundado por dissidências de atletas do Bahiano de Tênis e que, na voz do torcedor-símbolo, colocou 400 mil pessoas no estádio em apenas quatro partidas do Brasileiro de 88.

“Josemar, você é o melhor jogador do Bahia”, “Guilherme, você é o melhor que tem no Bahia”, “Como é seu nome? Rafael Bastos? Você é o melhor jogador que o Bahia tem” são frases que demonstram a mudança de opinião a depender do interlocutor. Ao emergente Danilo Rios, um atacante júnior que estreou na equipe principal fazendo gol, um aviso em prol da modéstia: “você é um grande jogador, mas não fique pensando que é grande jogador porque senão não progride. E cuidado com os empresários”.

Se nos incentivos aos jovens do time ele é fluente, sobre o principal rival, o Vitória, ele não comenta nada. “Você perguntou sobre o outro clube de futebol que tem em Salvador, mas se você ficar pensando em seu vizinho, termina não indo a lugar nenhum”. Em seguida, filosofa: “Amo o Bahia de coração, não importa a divisão. Para mim, o Bahia está acima de tudo, menos de Deus. Em primeiro lugar, minha mãe, junto com o Bahia”.

Na despedida, Binha questiona. “Você teve um contato comigo de algumas horas. Qual a análise que você faz? Você acha que sou maluco?” Excêntrico talvez, Binha, exagerado, certamente. Mas, maluco… loucura mesmo é desprezar tanta gente que fica do outro lado dando a vida por esse tipo de amor não-correspondido.

* Esta reportagem foi produzida em março de 2006, quando o Bahia amargava a série C do Campeonato Brasileiro. Em 2012, o clube avança na série A e o personagem aproveitou a notoriedade para se lançar candidato a vereador em Salvador pelo PRP: Binha do Bahia