Voltas que um sapato cansado precisa dar

A saga de Roque Nilson dos Santos, 52 maltratados anos de vida e um objetivo: voltar a trabalhar para reconstruir o lar

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Seu Roque, na obstinação dos famintos, chegou até uma lan house em espasmos de ansiedade para fazer o currículo. Ditou as referências e experiência profissional e saiu de lá com uma folha de A4 impressa, arrumadinha, é bem verdade, e com 12 reais a menos no minguado patrimônio. Até aqui, ele é mais um desempregado na região metropolitana de Salvador, mas até o final da história de dramas, tragédias e gargalhadas involuntárias, seu Roque vai ganhar sobrenome, empatia, um rascunho de biografia com rápidos capítulos, até algumas explicações. E talvez você se sinta mal por um dia ter dado um não a seu Roque ou alguém que se assemelhe.

Seu Roque, o próprio: entre o subúrbio e a cidade

Seu portifólio é uma apresentação padronizada como a de milhares de Roques e Marias, que saem levando em envelopes pardos, todos os dias, do subúrbio em direção ao centro da metrópole, o Eldorado das carteiras assinadas. No cabeçalho, ao lado de onde se lê Roque Nilson dos Santos, a foto 3×4 dele, um candidato a vigilante, zelador, no máximo porteiro de prédio, que apresenta como objetivo de emprego uma ementa que bem poderia estar na proposta de um concorrente no reality show O Aprendiz, de Roberto Justus (que se seu Roque conhecesse certamente diria que é um dotô de cabelo arrumado mesmo achando o contrário): “Contribuir com as empresas que busquem um profissional dinâmico e dedicado à prática de produzir soluções ágeis e seguras e que esteja apto a cumprir metas e objetivos, enfrentando e vencendo novos desafios”.

Fora da estatística

Apesar das notícias divulgadas no final de 2009 de redução histórica no nível de desemprego da Região Metropolitana de Salvador, seu Roque continua à margem. Pouco importa se a pesquisa da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia indica que desde 1996 nunca tanta gente esteve empregada na capital. Ainda assim, 17,8% da população sofrem pela falta de oportunidade. Significa que a cada seis pessoas em idade economicamente ativa uma não tem serviço, nem mesmo temporário, ou biscate, ou algo que garanta o mínimo de renda. Seu Roque está ali na frente, bem mais palpável que uma estatística, precisando de uma ocupação de meio turno que pague o transporte e a comida do dia seguinte, já que o almoço foi garantido na casa de uma patroa. Mais por misericórdia do que necessidade, ele ganha um lugar para fazer uma faxina que tentou em seu próprio aspecto.

Há quase 18 horas, não sabe o que é banho, desde quando ontem pagou dois reais pelo corte de cabelo e para fazer a barba de forma impecável. Colocou uma calça surrada, mas de modelo tradicional, e uma camisa de botão. Saiu com uma mala pouco maior do que uma pochete decidido a trazer dentro dela o crachá de funcionário ainda com o nome PROVISÓRIO. Mais de outras 20 vinte vezes partiu da casa de número 5, na rua da Camboja, em Ilha Amarela, um bairro suburbano na divisa de Salvador com Simões Filho, com a mesma determinação. Voltou à noite, cheio de avisos para aguardar uns 15 dias.

Todo dia sempre igual

Desta vez, percorreu a Pituba inteira, desceu até o Rio Vermelho e Amaralina e ainda teve fôlego para chegar na Avenida Vasco da Gama em apenas uma manhã, sem direito a almoço. O mais próximo de um sim que ouviu foi: “contratamos um no último dia 7, mas pode deixar seu currículo aí”. E pela 14ª vez em uma manhã, depositou o currículo feito na Lan House. “Pensei em ir na prefeitura também, mas dizem que esse negócio de carta de vereador ninguém está mesmo olhando nas empresas”, resume, com a voz trêmula de quem se envergonha de incomodar o outro com a própria fala. Chegar ao nível de um pedido é um esforço que franze a testa, encolhe a caixa torácica e vai expulso como uma tosse: ufa, ainda bem que saiu de mim esse desejo e agora cabe a você se envergonhar de dizer não.

Seu Roque não sabe o que é twitter e nem esta revista gostaria de fazer qualquer pegadinha a respeito. Provavelmente, na primeira vez em que alguém lhe perguntar o que seja, ele vai responder com o ar magnânimo de um guru acostumado a lavar carro duas ou três vezes por semana: ô meu patrão, é aquela caixinha de som que fica na táubua do porta-malas.

Seu Roque também não imagina o que seja uma balada, desconhece o significado de aquecimento global, nunca ouviu falar de camada Pré-Sal e não lembra em quem votou nas últimas eleições para deputado. Nessas questões políticas, ele torce muito pelo presidente dos Estados Unidos, negão como a gente, seu Barata Obama.

Certa vez, fingiu muito mal gostar de uma quesadilla mexicana, recheada com o melhor queijo brie, peito de peru e salada. Mastigou um pouco, disfarçou a saída e cuspiu toda a garfada antes de voltar ao bom, velho e de sabor seguro feijão com farinha. Enquanto o fígado de seu Roque aceita velhas e novas experiências, o estômago parece não muito confortável com inovações.

E para que tudo não fique concentrado apenas no sentido do paladar, tem a questão da audição de seu Roque, que não é das melhores assim como o olfato. Ou ele não ouve perfeitamente ou é possuidor de uma capacidade invejável de sublimar experiências auditivas constrangedoras. Qualquer pessoa que se dirija a ele com uma pergunta, ele responde com o sorriso sem vida e o constante: sim, meu patrão. Do mesmo jeito que se atacarem com um xingamento, ele reage da mesma forma, ou se avisarem que ele é vítima de um sequestro, ou que o Bahia foi campeão, ou que o bolsa-família foi cortado, ou que seu tataravô era embaixador da Namíbia, ou que ele ganhou na mega-sena. Tudo vem acompanhado do mesmo riso desprovido de substância e o “sim, meu patrão’.

Dor de amor

Seu Roque ultimamente padece de uma desilusão amorosa, mas é quase certo que este termo se aplique melhor ao sentimento da ex-mulher dele, que resolveu sair de casa depois de tentar, sem sucesso, ser mais que a outra. Por um bom tempo, ela até aguentou a humilhação de estar em segundo plano, de ver o pai de seus filhos entregue às perturbações de uma destruidora de lares. A esposa suportou uns bons anos, mas há seis meses deixou a casa e de sua boca praticamente saiu um “ou ela, ou eu”. A decisão ficou pra seu Roque, que até o momento está mais para o “ela”.

O matrimônio, é bem verdade, não foi abalado por alguma mulata vaporosa da Ilha Amarela, ou aquele tipo de Lolita em trajes mínimos de sugerir marca de biquíni que se transforma na paixão para a vida toda durante 90 dias. “Ela” é o modo de se referir à bebida, a companheira que se tornou a traição na vida de seu Roque, com sua sedução a goladas e aquela saudade implacável que bate de tempos em tempo.

Contado desse jeito, até parece que seu Roque fez uma escolha, optou pela boemia contra os deveres de provedor da casa. Mas conversando com ele dá para perceber que não foi bem uma decisão, mas uma imposição psicológica e orgânica. “Meu patrão, eu te digo, semana que vem vou chegar aqui normal, dizendo ao senhor, estou em ordem para trabalhar”, promete, com uma voz meio vacilante, meio tiririca. E a promessa vale apenas até a semana que vem quando ele encontrar com algum porteiro de prédio, zelador, que ignorando ser uma má influência vá convidá-lo para dividir duas cervejas ou comprar um par de cigarros (“um meu e um seu”).

Enquanto isso, vai ficando mais distante o retorno da esposa, que deixou claro que uma casa com cheiro de refluxo azedo de aguardente em estômago vazio (apesar de ser um estado gasoso) não tem espaço para ela. “Não é que eu seja apaixonado, mas é que desde que ela foi embora eu já não sou o mesmo”, resmunga, para depois ouvir que ele precisa dar a volta por cima e se recuperar antes de qualquer tentativa de reconciliação.

Paralisia social

Seu Roque é um cidadão sem voz na selva de pedra. E muitas vezes essa constatação obedece a critérios literais. Como outro dia em que entrou na área de serviço da casa de uma cliente apenas para pegar alguns baldes, esponjas e flanelas para lavar o carro da vítima e em poucos minutos de solidão, distração e gafes, conseguiu soltar a pedra de granito que servia como estante da mulher e ficar um tempo maior do que a ação de um lava-jato segurando a peça de 20 quilos, imóvel, impassível e – o que é pior – totalmente aterrorizado. E ali ficaria pelas horas derradeiras da tarde, entraria a noite e amanheceria na mesma posição até que desmaiasse de desnutrição, ou que deixasse a pedra cair em função do delirium tremens – o que acontecesse primeiro. Só que uns 20 minutos depois a dona ficou incomodada com o silêncio e a aparente calmaria e resolveu checar a situação, encontrando a seguinte cena: um homem de perfil, gotejando suor pela testa, olho fixo em um suporte de metal entortado, se tremendo do crânio até os metatarsos, passando por pescoço, omoplata, úmero e mãos, tentando equilibrar dois baldes de roupa suja, uma máquina de costura relíquia da família, um pacote de 15 quilos de ração pra cachorro e um estojo com alguns pregadores de roupa e com a aparência aflita de quem pensa: Meu Deus do céu, por que eu fui sair de casa hoje? “Ô, dona Lídis, o negócio desmontou sozinho”. “Seu ROQUEEEEE, que inferno é esse… você vai destruir minha máquina de costura”.

Esse seria o retorno profissional de seu Roque, depois de três dias internado no Hospital Santo Antônio, das Obras Sociais Irmã Dulce. Ele se recusou a entrar em detalhes sobre o motivo da baixa médica, mas os convivas sugerem que o corpo de nenhum ser humano resistiria mais tempo apenas movido a combustível de alta octanagem. Resumindo, se seu Roque fosse um carro, seria um modelo popular de carroceria bem maltratada, precisando fazer uma revisão periódica e, assim, como no automóvel, do filtro de óleo arrasado, o fígado dele precisando de uma limpeza, uma descarbonização, uma purificação ou qualquer outro procedimento revitalizador.

Fala, Roque

Na reincidência de paciente de uma moléstia indeterminada – um mal que não ousa dizer o nome -, retornou do PAM de Roma ontem para receber o celular pedido como recompensa pela cessão de direitos de imagem. A figura de seu Roque em uma revista de circulação mínima vale um telefone doado pelo terapeuta Moacir Alberto Oliveira, quando muito 20 reais em créditos e um novo chip.

Toma, seu Roque, o instrumento de conexão com o mundo civilizado. Receba, com os votos de que ali vai chegar o sinal para a inserção no mercado de trabalho. Quando o 9118-7844 tocar pode não ser engano, pode ser uma chamada para a nova vida. Pode ser o chamado. E se isso ainda não aconteceu, ele vai seguindo diariamente do subúrbio para a cidade, driblando “a outra”, em busca de uma ocupação. Assim como o tempo, seu Roque não pára.

* Manchete da prestigiada revista Seu Roque, a publicação mais influente do Norte-Nordeste de Amaralina (www.revistaseuroque.blogspot.com)

Seu Roque, na obstinação dos famintos,
chegou até uma lan house em espasmos de
ansiedade para fazer o currículo. Ditou as
referências e experiência profissional e
saiu de lá com uma folha de A4 impressa,
arrumadinha, é bem verdade, e com 12
reais a menos no minguado patrimônio. Até
aqui, ele é mais um desempregado na
região metropolitana de Salvador, mas até
o final da história de dramas, tragédias e
gargalhadas involuntárias, seu Roque vai
ganhar sobrenome, empatia, um rascunho
de biografia com rápidos capítulos, até
algumas explicações. E talvez você se sinta
mal por um dia ter dado um não a seu
Roque ou alguém que se assemelhe.
Seu portifólio é uma apresentação
padronizada como a de milhares de Roques
e Marias, que saem levando em envelopes
pardos, todos os dias, do subúrbio em
direção ao centro da metrópole, o
Eldorado das carteiras assinadas. No
cabeçalho, ao lado de onde se lê Roque
Nilson dos Santos, a foto 3×4 dele, um
candidato a vigilante, zelador, no
máximo porteiro de prédio, que
apresenta como objetivo de emprego
uma ementa que bem poderia estar na
proposta de um concorrente no reality
show O Aprendiz, de Roberto Justus (que
se seu Roque conhecesse certamente
diria que é um dotô de cabelo arrumado
mesmo achando o cont rár io) :
“Contribuir com as empresas que
busquem um profissional dinâmico e
dedicado à prática de produzir soluções
ágeis e seguras e que esteja apto a
cumprir metas e objetivos, enfrentando
e vencendo novos desafios”.
Fora da estatística – Apesar das notícias
divulgadas no final de 2009 de redução
histórica no nível de desemprego da
Região Metropolitana de Salvador, seu
Roque continua à margem. Pouco importa se a
pesquisa da Superintendência de Estudos
Econômicos e Sociais da Bahia indica que
desde 1996 nunca tanta gente esteve
empregada na capital. Ainda assim, 17,8% da
população sofrem pela falta de oportunidade.
Significa que a cada seis pessoas em idade
economicamente ativa uma não tem serviço,
nem mesmo temporário, ou biscate, ou algo
que garanta o mínimo de renda. Seu Roque
está ali na frente, bem mais palpável que uma
estatística, precisando de uma ocupação de
meio turno que pague o transporte e a comida
do dia seguinte, já que o almoço foi garantido
na casa de uma patroa. Mais por misericórdia
do que necessidade, ele ganha um lugar para
fazer uma faxina que tentou em seu próprio
aspecto.
Há quase 18 horas, não sabe o que é banho,
desde quando ontem pagou dois reais pelo
corte de cabelo e para fazer a barba de forma
impecável. Colocou uma calça surrada, mas
de modelo tradicional, e uma camisa de
botão. Saiu com uma mala pouco maior do que
uma pochete decidido a trazer dentro dela o
crachá de funcionário ainda com o nome
PROVISÓRIO. Mais de outras 20 vinte vezes
partiu da casa de número 5, na rua da
Camboja, em Ilha Amarela, um bairro
suburbano na divisa de Salvador com Simões
Filho, com a mesma determinação. Voltou à
noite, cheio de avisos para aguardar uns 15
dias.
Todo dia sempre igual – Desta vez, percorreu
a Pituba inteira, desceu até o Rio Vermelho e
Amaralina e ainda teve fôlego para chegar na
Avenida Vasco da Gama em apenas uma
manhã, sem direito a almoço. O mais próximo
de um sim que ouviu foi: “contratamos um no
último dia 7, mas pode deixar seu currículo
aí”. E pela 14ª vez em uma manhã, depositou o
currículo feito na Lan House. “Pensei em ir na
prefeitura também, mas dizem que esse
negócio de carta de vereador ninguém está
mesmo olhando nas empresas”, resume, com
a voz trêmula de quem se envergonha de
incomodar o outro com a própria fala. Chegar
ao nível de um pedido é um esforço que franze
a testa, encolhe a caixa torácica e vai expulso
como uma tosse: ufa, ainda bem que saiu de
mim esse desejo e agora cabe a você se
envergonhar de dizer não.
Seu Roque não sabe o que é twitter e nem
esta revista gostaria de fazer qualquer
pegadinha a respeito. Provavelmente, na
primeira vez em que alguém lhe perguntar o
que seja, ele vai responder com o ar
magnânimo de um guru acostumado a lavar
carro duas ou três vezes por semana: ô meu
patrão, é aquela caixinha de som que fica na
táubua do porta-malas.
Seu Roque também não imagina o que seja
uma balada, desconhece o significado de
aquecimento global, nunca ouviu falar de
camada Pré-Sal e não lembra em quem
votou nas últimas eleições para deputado.
Nessas questões políticas, ele torce muito
pelo presidente dos Estados Unidos, negão
como a gente, seu Barata Obama.
Certa vez, fingiu muito mal gostar de uma
quesadilla mexicana, recheada com o
melhor queijo brie, peito de peru e salada.
Mastigou um pouco, disfarçou a saída e
cuspiu toda a garfada antes de voltar ao
bom, velho e de sabor seguro feijão com
farinha. Enquanto o fígado de seu Roque
aceita velhas e novas experiências, o
estômago parece não muito confortável com
inovações.
E para que tudo não fique concentrado
apenas no sentido do paladar, tem a questão
da audição de seu Roque, que não é das
melhores assim como o olfato. Ou ele não
ouve perfeitamente ou é possuidor de uma
capacidade invejável de sublimar
experiências auditivas constrangedoras.
Qualquer pessoa que se dirija a ele com uma
pergunta, ele responde com o sorriso sem
vida e o constante: sim, meu patrão. Do
mesmo jeito que se atacarem com um
xingamento, ele reage da mesma forma, ou
se avisarem que ele é vítima de um
sequestro, ou que o Bahia foi campeão, ou
que o bolsa-família foi cortado, ou que seu
tataravô era embaixador da Namíbia, ou que
ele ganhou na mega-sena. Tudo vem
acompanhado do mesmo riso desprovido de
substância e o “sim, meu patrão’.