Na batida do pancadão

No 1° Baile do Funk carioca em Salvador, reclamações por atraso, cenas explícitas de “calor humano” e seguranças em ponto de bala: tudo é comédia

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

A Ninja do Funk, o alter ego de uma jovem carioca chamada Amanda, de 1,62m de altura e grossura de pernas não

Brincadeira de adulto: contorcionismo erótico

registrada em nenhum cartório, está emocionada com o, digamos, “calor humano” dos baianos. Ela não conhecia Salvador e garante ter ficado encantada com a forma “espontânea e carinhosa” com que foi tratada pelos fãs. Há 12 minutos, ela estava sobre um palco com um short preto de látex, menor do que muitas lingeries que estão no mercado, um top e o inseparável véu cobrindo nariz e boca. Ao lado da Proibida, da Mercenária e da Loira da Galera, ela não simplesmente dançava – isso seria para uma funkeira qualquer. Elas escolheram quatro espectadores do show para participarem de uma sessão de contorcionismo sexual, cuja única diferença para uma aula prática de tantra seria o fato de permanecerem vestidos.Provocando os rapazes, naquele momento considerados felizardos por uma platéia de uns 100 impetuosos homens, elas foram tocadas, cheiradas, lambidas, e qualquer outra forma de expressar uma atividade táctil, enquanto seus “clientes” permaneciam deitados no chão. As quatro tinham o controle da situação com seus movimentos insinuantes de gueixas do pancadão a ponto de um observador neutro, de cima do tablado sentenciar: “esses caras vão gozar aí mesmo”. Isso tudo é no 1° Baile Funk do Rio de Janeiro realizado na Bahia.

Para entender a languidez da cena é melhor começar do começo. Se bem que o início é de imprecisa definição. Pode ficar marcado nas origens do soul americano, ou do movimento musical da periferia do Rio de Janeiro, onde nos shows a platéia feminina costuma ir “de minissaia e sem calcinha”, como explica a jovem Girlene Costa, de 17 anos, em tom de reprovação. Ela diz isso usando uma bermuda jeans de cinco dedos de largura e um top menor do que um biquíni, mas garante que está com calcinha.

O público “seleto” do pancadão

Para efeitos práticos, o início desse evento lúbrico-musical é 22h de sábado, como indicam os cartazes e ingressos, no Portual Portuário, ex-Codeba, um grande galpão ao lado do Terminal Marítimo de Salvador, em São Joaquim. Mas já são as primeiras horas da madrugada de domingo e nada de show, a não ser o som de cd irradiado por quatro modestas caixas de alto-falantes. A irritação é nítida e alguns grupos procuram “a reportagem” para registrar suas queixas, como o fato de já terem pagado R$27 de táxi para virem de Tancredo Neves, mais os R$12 do ingresso, mais R$7 de cerveja e acarajé e até agora nada de show. E o que é pior: “o nível de mulher está bem fraco”. Denílson dos Santos Andrade, por exemplo, jura que vai ao Procon, ao que é seguido por quatro amigos num grito de “propaganda enganosa”.

O organizador, o carioca radicado na Bahia há 17 anos, Maurício Brito, considera natural o atraso do grupo Funk Fest (“eles já tão ali na Avenida Contorno”), mas não demonstra o sorriso de um MC na hora de falar sobre a presença de público. No máximo 120 pessoas, sendo que uma parte delas já está partindo, um número admitido como baixo para um show com o apelo do pioneirismo e a divulgação em comerciais de televisão. “Amanhã (ontem), vai ter na Fashion Club e vai estar lotado”, consola-se o produtor da festa.

Martela o martelão

Finalmente a Van branca com o MC Claudinho, o DJ Inoxx e as quatro acompanhantes em trajes sumários chega. É o veículo da esperança coletiva de salvar a noite. Uma noite em que pequenos delitos são permitidos, como a entrada sem problemas de quatro estudantes vindas de Águas Claras, sendo que só Suelen Nascimento tem 19 anos, as três amigas são menores de idade. Antes mesmo de o show começar, elas já estão executando, com riqueza de movimentos, coreografias de músicas com refrões acrobáticos como “de ladinho, a gente gosta”, “vou aparar pela rabiola, vou sim” e “então martela, martela, martela o martelão”.

Fazendo justiça à sigla de Mestre de Cerimônias, o MC Claudinho começa o show sem se importar que a platéia reúna,

O mestre de cerimônias e as “artistas”

no máximo, 120 pessoas cansadas de horas de espera. A animação dele é como se estivesse gravando um DVD no Maracanã lotado. O público também responde com agitação logo que surgem, uma a uma, as vedetes do batidão. Com a aparição das musas, os mais afoitos – quase todos – se comprimem na frente do palco, que tem 1,50m de altura, como se fosse a última chamada para um emprego com carteira assinada no SIMM. A cena é linda: mais de 20 celulares são sacados simultaneamente e têm as câmeras apontadas para os mais íntimos talentos da Loira da Galera, da Mercenária, da Proibida e da Ninja do Funk. Elas respondem com mímicas de quem está gemendo e posições que fazem os aparelhos de filmagem parecerem apêndices do corpo, tamanha a aproximação.

Contratados para proteger o palco, os seguranças aderem às imposições hormonais e aproveitam da proximidade. A princípio, nenhum deles usa armas, mas a julgar pelos uivos de delírio todos estão em ponto de bala. O segurança identificado apenas como Marcos pretende descontar todo seu furor reprodutivo em uma inocente. “Agora eu tô nervoso. Êta que a nêga véia lá de casa vai tomar uma cipoada”, suspira.

Suor do trabalho

Num instante, um momento mágico de interação de artista e público. Uma camisa chega ao palco e a Ninja enxuga o suor e devolve para a platéia. Começam a voar camisas, bonés, lenços, toalhinhas e elas atendem a todos esfregando as peças por todo o corpo –  precisamente todo o corpo – e jogando de volta para os donos.

A apoteose da lascívia é com a escolha de quatro entre os mais empolgados como partners das divindades profanas em uma performance capaz de deixar encabulada qualquer discípula da modelo Daniela Cicarelli. Eles deitam no palco e viram servos imóveis de idiossincrasias sexuais, em poses que ficaram muito mais elegantes quando expressas como a união entre o côncavo e o convexo, na música de Roberto Carlos. Qualquer esforço descritivo se tornaria inútil, do mesmo jeito que ficaria incompatível relatar a gravação de uma pornochanchada usando o vocabulário do maternal.

Terminados os cinco minutos de visões asfixiantes, o cantor MC Claudinho fala em alto e bom som no microfone que está vendo pelo volume da bermuda que determinado participante da gincana do orgasmo está sexualmente excitado.

Mão na cabeça para homenagear o desempenho da Ninja

Só que num baile funk a expressão sexualmente excitado nunca é usada, ele fala sem usar esses eufemismos de médico. MC Claudinho usa o jargão popular sinônimo de pênis ereto. O jovem, envergonhado diante de uma platéia de cerca de 80 marmanjos furiosos, responde apenas que está com o celular no bolso.

Pouco mais de 50 minutos depois de chegarem na van branca, os cariocas já estão se preparando para voltar ao hotel. No camarim, MC Claudinho bebe uma água e afirma “estar de bobeira” com a animação da platéia. Vai voltar a Salvador em 2 de dezembro, com a mesma trupe e o ator pornô Alexandre Frota, para continuar a divulgação pelo nordeste do CD com o singelo título Te Banquei, mas Te Comi.

Só há mais um momento de tensão antes da despedida. O biombo feito para as artistas trocarem de roupa fica bem ao lado de um janelão de vidro. Logo que descobrem que as garotas estavam tirando a fantasia, os seguranças passam a subir nos ombros uns dos outros para dar aquela espiadinha. Não apenas um ou dois, mas dezenas deles. “Isso termina sempre acontecendo. Eles sempre confundem porque no palco é uma coisa, fora do palco é outra”, minimiza a Ninja, conhecedora profunda do tal “calor humano”. Ah, e para os curiosos, Amanda fica bem melhor com o véu do que sem ele.

A última subversão de Big Ben

Aos 66 anos, Waldir Serrão, o roqueiro mais longevo da Bahia, continua sua cruzada – quase solitária – contra pagode, axé e arrocha


Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

O mais gentil aposto que o roqueiro Big Ben costuma aplicar a qualquer iniciativa ligada a pagode é dizer que “não se trata de música de gente”. Sob

Com quase 70 anos, Big Ben continua roqueiro na ativa

re axé music, ele considera uma forma primitiva de fazer som em três acordes. Mais recentemente, Big Ben faz uma cara tão cinza como seus cabelos quando ouve falar de um negócio chamado arrocha. “É lixo sonoro da pior espécie. Prefiro ouvir uma serra elétrica em funcionamento”, dispara.

Com sua estatura diminuta, seus cabelos grisalhos e uma pinta escura na bochecha esquerda, tem aquela aparência de decano das artes plásticas, como se fosse um Calasans Neto à procura de marchand. Mas quando abre a boca, Waldir de Oliveira Serrão mostra que não fossilizou uma inquietude juvenil mesmo aos 66 anos de idade.

Meio século atrás, quando criou um fã-clube de Elvis Presley, junto com um menino de 12 anos chamado Raul Seixas, ele impôs o nome – e depois o apelido notório – na enciclopédia cultural da Bahia. Big Ben é uma tradição artística baiana, mesmo contra todos os estereótipos nagô para exportação.

Sabe que é odiado pelo grupo dominante do mainstream musical, produtores e empresário que podem chamá-lo de “ultrapassado” ou “maluco” com a mesma versatilidade com que mudam a banda protegida do pagode para o arrocha. “Eles me criticam, mas não sabem o que é uma banda como Eagles, Earth, Wind and Fire, nem conhecem a casa de Elvis, em Memphis, no Tenessee”, esnoba.

Os 66 anos de rebeldia de Waldir Serrão são regulados por medicamentos de tarja preta receitados por psiquiatra. Isso não é tanto segredo para alguém que incorpora o conceito de “maluco beleza”. O estigma de pioneiro é sustentado por ter sido o criador da primeira banda de rock que se tem notícia na Bahia, Waldir Serrão e seus Cometas, em 1957. Dois anos depois, comandava o programa Só Para Brotos, na rádio Cultura.

A transformação em Big Ben só ocorreu em 1967, uma paródia ao carioca Big Boy. O

Na juventude dourada, Waldir (à esquerda) ao lado de Raulzito

baiano era nada menos do que o lendário sino inglês acordando todos do marasmo musical.

Na década de 60, transformou o Cine Roma no quartel dos alternativos, o Templo da Juventude, fazendo as matinês de rock, ritmo proibido de dançar pelas garotas. De 1972 a 1984, comandou o Som do Big Ben, nas tardes de sábado da TV Itapoan. No tempo em que disputava com Chacrinha a preferência dos telespectadores nas tardes de sábado, Big Ben virou atração nacional. Chegou a ser jurado do show de calouros de Sílvio Santos, depois de se destacar como um dos maiores divulgadores do Baú da Felicidade. Na bancada, descobriu em pouco tempo que o fermento da polêmica quase sempre faz crescer o bolo da popularidade imediata. “Eu discuti com Pedro de Lara, dizendo que ele não entendia nada de música”.

Na época de seu sucesso televisivo, assediado e bajulado, recebia pedidos de artistas baianos e brasileiros. Lembra de um jovem chamado Luís Maurício, que chegou na porta da TV Itapoan com uma guitarra bem usada e uma aparência de andarilho e anos depois vestiria roupa de playboy e adotaria o nome de Lulu Santos.

Muitos candidatos a talento vindos do interior chegavam com cestas de coco, cacau, ou laranja para oferecer em troca de alguns segundos de fama. Big Ben preferia aceitar a oferta para ocupar cargos de assessoria de imprensa das prefeituras, serviço que, a rigor, não ocupava muito do seu tempo. Bastava viajar até a cidade, ficar dois ou três dias desfrutando da hospitalidade local e trazer consigo alguns bilhetes para ler durante sua atração de sábado. Estava bem pago o seu ordenado.

Baú de lembranças

Esse baú de lembranças é reaberto – e dele saem fotografias em preto e branco para exibir Big Ben e as bigbetes – justamente para mostrar como há uma certa ingratidão em ver o ícone sacolejando em ônibus coletivo, quando os seus rivais que não produzem cultura dirigem carros importados com ar condicionado e película solar nos vidros. Big Ben continua usando suas blusas florais e garantindo um sustento por causa de uma pensão pouco maior do que um salário mínimo, desde que, há uns oito anos, conseguiu “se encostar” por invalidez.

Quando ainda morava no bairro aprazível e poético de Stella Maris, colocou o transmissor à serviço de uma rádio comunitária no bairro. A Stella FM só tocava rock, como era de supor. Precisou mudar de endereço porque o senhorio tomou o prédio de volta. Seu ninho de recordações em vinis e fotografias sem cores agora fica à rua Professor Lustoza, em Itacaranha, no subúrbio ferroviário, a quase 30 quilômetros de Salvador.

Sua metralhadora giratória está parada em um alvo único. Decidiu que não vai deixar o chamado movimento arrocha tomar conta da Península Itapagipana. Nascido na Boa Viagem, Big Ben considera que o perigo musical é quase tão devastador como a pesca com bomba que aflige a região. Aliou-se ao parceiro Laudelino Celestino, o contrabaixista de sua banda há quase 40 anos, na ONG Pôr do Sol, na prática uma entidade cultural eminentemente roqueira.

O galpão onde fica a sede abriga a rádio comunitária Beira Mar FM (106,1), mas também é o centro cultural de shows quinzenais com guitarras distorcidas e cantores que fazem a voz tão potente quanto uma bateria. Big Ben é mestre de cerimônias e agitador das festas. “Ele é uma lenda viva, que abre portas”, justifica Lauzinho, como é chamado pelo amigo. O próximo plano é fazer um palco móvel em uma balsa e convidar artistas como Jerry Adriani, Ultraje a Rigor e Marcelo Nova para um show no mar. “Isso vai ter repercussão nacional e eu já falei até com Pitty, ela disse que vem”, alardeia Big, sobre a baiana que é o meteoro do rock no Brasil.

Os delírios de grandeza de Big Ben vão além do apelido, que não faz justiça aos seus 1,63m de altura. Ele planeja o lançamento de um DVD até o final do ano (embora não tenha um roteiro para isso) e até um canal de televisão, que ele diz ser no modelo da TV Assembléia, só voltado para as classes C e D. Tudo é projeto que depende de “Deus ajudar e a política no ano que vem também”.

Entra em beco

Há pouco mais de 10 anos, Big Ben investiu sua indignação contra ninguém menos que o hoje ministro Gilberto Gil. Este gravara, com grande repercussão, a música Madalena (entra em beco/ sai em beco/ há um refúgio Madalena) e registrara a letra como de domínio público. Waldir Serrão alegou que a canção era dele e de Isidoro Oliveira. Procurou a justiça para conseguir os direitos autorais. “Levei o compacto em que ela está gravada. É uma música que eu fiz como crítica social”. Até hoje, não conseguiu provar que é um dos autores da música. “Hoje, a viúva de meu parceiro recebe os direitos autorais”.

Aos pauteiros jornalísticos, uma recomendação direta. Não indiquem ele apenas como fonte de reportagens sobre o rock. Big Ben sabe quase tudo sobre cinema, mesmo sem ter uma formação além do segundo grau. É tudo acúmulo audiovisual de sessões intermináveis ao lado de Raulzito, quando entrava numa sala às 10h da manhã e podia sair mais de 10 horas depois.

Do primeiro casamento, teve dois filhos: Elvis (uma natural homenagem ao rei do rock) e Silvia (inspirada no nome de uma de suas músicas de maior sucesso). Não é que o primogênito também se interessou por esse negócio de música? Nos momentos em que não trabalha como gerente de uma unidade do Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAB), o Elvis Serrão é cantor gospel. Segundo o pai, tem a melhor voz da família, mas é capaz até de achar que esse negócio de rock é coisa do satanás.

E continua provendo suas necessidades com os shows, numa periodicidade tão casual que fica difícil acreditar no faturamento. Os mais recentes foram no Dia do Rock, 13 de julho, em Camaçari, e um pocket-show, na Saraiva Megastore do Shopping Salvador, em 21 de agosto. O próximo, ele não tem nenhuma previsão de quando será. Com um microfone nas mãos, Big Ben modula sua voz à altura de um estandarte cultural. Com sua carteira de passe livre às mãos, ele tem direito a uma entrada no ônibus e vai até onde quiser. Só não pode voltar ao ponto exato onde deixou de ser o grande Big Ben para virar uma excentricidade.