Capítulo 38

Em algum momento imperceptível, aquele encontro tinha deixado de ser previsível e ansiado para algo caótico, melancólico, assustador. Como um eclipse da lua que, de evento para entreter e confraternizar, durasse muito mais do que o previsto e se tornasse uma ameaça à própria civilização. “É preciso uma boa dose de decepção para entender como é a vida”. Ele deu uma tosse, como se essa frase fosse longa demais para alguém terminar em um fôlego só. “Só depois de passar pelo mínimo de sofrimento é que você consegue se permitir aproveitar.”

O olhar do velho voltou a percorrer a sala mal iluminada, como se estivesse procurando um daqueles troféus de caça pregados em uma parede. Era envolvente a postura noturna que adotara desde quando o diálogo começou a tratar sobre as lacunas de biografia evitadas como um fosso entre a sua existência atual e aquela que todos afirmavam ter vivido. Uma sombra se apoderava do rosto, a voz ficava como coberta por uma manta densa e escura.

Do lado de fora, pela janela, dava para perceber que os morcegos, agora, eram dois. Faziam uma trajetória de voo sinuosa, com eletrizantes encontros esparsos no ar no ponto mais longo da circunferência. Eles deveriam ser um casal. Bruno achou improvável que morcegos também pudessem amar.

O velho tossiu novamente. Foi mais um pigarro na garganta do que uma manifestação pulmonar: suficiente para desviar a atenção sobre aquele balé dos ratos alados. “Você é uma pessoa que não demonstra inveja de ninguém”. Ele nunca tinha percebido isso, mas parecia ser verdade, embora o tom usado na frase fosse mais de acusação do que elogio. O que invejaria, afinal? As pessoas viviam em uma insanidade medicada, cheias de problemas aleatórios, cujas soluções não existiam, não precisavam ou não tinham disciplina para adotar. Estavam mergulhadas em uma gosma esponjosa de mediocridade e falta de talento, tudo misturado com uma empáfia. Quem tinha dinheiro, não conseguia aparentar sabedoria, quem tinha inteligência, estava bem longe de serenidade, quem tinha beleza, era imaturo ou superficial.

Não havia como invejar ninguém em um mundo de filtros de fotografia, oscilando de um sépia opaco a um brilho estourado, sem gradações. Tudo era exagero e vazio nas pessoas, por isso a falta de vocação para buscar nelas o que, ocasionalmente, não estivesse nele, ali, naquela hora. Desprovido de qualquer interesse pela insignificância alheia, continuava sua saga de inapetência social, raquitismo interativo, frieza, isolamento e compaixão.

Se o velho estivesse mesmo com a visão naquele espaço só captaria um papel decorativo colado anos atrás, com uns motivos que pareciam toalhas de renda, um abajur carmim com a base que lembrava patas de tigre, a prateleira com seis livros em pé e dois deitados, o encosto do sofá de veludo verde musgo. Mas a atenção não estava por ali. Começou a falar que a mais secreta das vidas não é a que fica dissimulada para os outros, mas a que escondemos de nós mesmos, no porão das nossas covardias disfarçadas de destino. Achava que percorrer o mundo sempre era uma busca desesperada pelo atalho que levasse ao local mais inacessível de si mesmo. “Isso é o que os mais antigos abreviavam com o nome de Deus”.

Bruno não mais sabia se tinha perdido alguma parte do monólogo ou se era apenas o epílogo de uma digressão. Os morcegos já pareciam sem qualquer interesse de testemunhar aquele sepultamento de conversa.

*do livro Um Veneno Pequeno no Sorriso (no prelo)

INDECISÃO

Ali, congelado por suas tristezas glaciais

Amordaçado por nós de garganta

A um passo de sempre ir

A uma indecisão de sempre ficar

 

Sorvia as belezas incultas da profanação da idade

Bebia as riquezas ocultas da complexidade

Estranhava ali tudo que era coleta e desuso

Estranhava o que era abuso

Fazia pouco caso do uso da vírgula, do trema

“Vida não é gramática pra ter esquema”

Qualquer dor é tema pra encerrar uma cena

 

E assim apertava as algemas

Alfazema borrifava, a ferida perfumava

Tudo que perdia e faltava

Aquela angústia que ardia

Aquela mulher que queria

Aquela dor que ansiava

 

E assim descartava

O que não desejava era o que mais procurava

Era falácia, era mentira, era suspeita

Esta lenta riqueza da graça

Tudo que via, tudo que passa

Ali adorava como seita

Comia, bebia, escarrava

Fez néctar daquilo q se aceita

Fez do amor a colheita

um mal que não esperava

 

Da brisa, a natureza, proeza do sofrimento: jornada

Era mais contemplado como castigo

Aquele bandido que andava ao lado

Fazia de tudo, fazia nada

Era doença, era deleite, era tortura, era pisada

Fazia de tudo, fazia nada

 

Por essas e aquelas; tormenta, me deixas

Onde estou nem é um lugar

A um passo de partir
A um peço de ficar