Centenárias de Santo Amaro

Não se sabe se são os mariscos, o samba de roda ou o café coado no pano, mas alguma receita faz as pessoas viverem mais de um século no Recôncavo Baiano. E isto não é -apenas- dona Canô

Pablo Reis

pabloreis@gmail.com

Santo Amaro da Purificação amanhece em um sábado e nem tudo é dona Canô nas últimas notícias, dez dias após ela completar 101 anos. Falta uma semana para as eleições municipais e os carros de som fazem barulho falando de candidatos, enquanto nas rodas de conversa comentam-se sobre preconceito racial a um postulante a vice-prefeito ou comportamentos hipócritas de evangélicos com dissimulações partidárias.
Nesta madrugada, um crime na feira também mobilizou as atenções. Alguém tentou roubar um comerciante e terminou recebendo uma facada. Ou foi o inverso e a vítima que terminou esfaqueada. Todos ficam tão preocupados com a presença de duas policiais civis com cadernetas riscadas de pistas em esferográfica que ninguém sabe dizer exatamente como tudo aconteceu. Ou então, há um receio de se comprometer com depoimentos que sejam precisos demais.
Pois esse burburinho na feira – que terminou comprometendo até as vendas e diminuindo o volume dos gritos dos camelôs de sandálias de borracha, ou de folhas de louro e tangerinas – abafa um pouco a onipresença de dona Canô na cidade. Uma liderança consolidada há pouco mais de 35 anos, desde que os filhos começaram a cantá-la pelo Brasil, mas que parece tão forte que se imagina secular, como a idade dela. Parece que sempre foi assim e pronto.
De alguma forma, Canô é uma associação visual imediata ao município de aparência tristonha, a 75 quilômetros de Salvador, cortado pelo rio Subaé. É como lembrar das caras e bocas do ator Carlos Moreno ao falar de Bombril, ou da imagem loira da mulher da caixa de palitos de dente, que com certeza não se chama Gina e provavelmente só tenha dentes postiços atualmente. Fala-se em Santo Amaro e logo saltam à memória os passos miúdos e o andar encurvado que diminue um pouco mais o metro e meio de altura da matriarca dos Velloso.

Miúda e encurvada, dona Canô é diva centenária na cidade

Dona Canô, o nome artístico de Claudionor Viana Teles Velloso, lança logo o seu sorriso meio envergonhado de velhinha, movido a flash. Caminha vagarosamente os seis passos de calçada antes de entrar no Ford Fusion, cujo motorista particular estacionara na porta 10 minutos antes, logo que o secretário ligou avisando que ela já tinha terminado o banho. Vai ser conduzida até um almoço com oficiais da polícia militar, mas não deve ficar até o final.

Abuso da (autor)idade
Neste momento, Maria Francisca de Assis Góes, 103 anos, está irritada por causa de uma falta de apetite que não combina com a voracidade com que costuma atacar um prato de mocotó. Dona Chica não é nem um pouco benevolente com a análise sobre o próprio humor: “tô abusada hoje”. E logo emenda a observação sobre o ânimo arrasado com um diagnóstico visual dos menos empolgantes (“não enxergo direito, é uma nuvem horrorosa, hoje mesmo amanheci nervosa”).
Apresentar Dona Chica nesses termos de quem só vê uma vida nublada é a melhor maneira de mostrar uma senhora amarga, rabugenta, a metáfora de uma velha; ou seja, uma grande injustiça. Com todos os abusos e nervosismos atribuídos pela neta a um resfriado recente, ela faz uma recepção encantadora na sala adornada com os móveis da modéstia e umas cadeiras de quem não está planejando visita pelo menos até o 104° aniversário.  Passa um pouco do meio-dia e a centenária anfitriã está mais do que disposta a fazer a segunda coisa que mais gosta, além de completar um samba de roda: contar a própria vida. Diferente de dona Canô, que mesmo sorrindo para as fotos não tem tempo de “fazer a sala” porque está atrasada para o almoço de alto escalão.

Dona Chica, mais de 100 anos: "estou meio abusada hoje"

Sorridente senhora
No alto do São Francisco, Maria Domingas Nepomucena, sentada na varanda da casa, parece se entreter com um movimento entediante de homens lavando carros e motos com registro de IPVA de pelo menos 20 anos de comprados. Mas ela olha mesmo é para dentro de si, coisa de 80 anos atrás, quando pegava uma estrovenga nas mãos e uma moringa d´água, com uma lata de carne seca e farinha para passar o dia na roça, capinando um terreno que nunca parecia ficar completamente liso, o que era sinônimo de trabalho pesado por um bom tempo.
Época boa, de suar durante toda a manhã e dar uma cochilada debaixo da mangueira naquele meio-dia de sol a pino para depois continuar até ficar escuro. Hoje, estas meninas não me deixam pegar nem em uma vassoura. O pensamento de dona Domingas, reprovando o próprio descanso compulsório imposto pelas filhas não é nem um pouco comum para quem tem 103 anos. (Aliás, são tão raros aqueles que a gente pode apontar com mais de século de vida, que fica até difícil destacar qual o pensamento comum nesta idade).
O certo é que dona Domingas não está conformada em ficar ali sentada, com aquela expressão cândida de senhorinha, e logo à chegada de um estranho aparentando interesse ela responde com uma gargalhada e uma reação felina. Para levantar da cadeira, não faz a atitude canônica de esperar o ombro dos netos como apoio e ficar resmungando de dores nas costas e de pressão baixa. Simplesmente se ergue com o impulso ejetor de um impeachment e a velocidade de explosão de um air-bag. A descrição parece tão exagerada que é necessário pedir que ela repita tudo para uma filmagem. E ela repete, sem fazer cara de que o pedido é uma sentença de maus-tratos. Sim, agora está confirmado: dona Domingas é um air-bag, com algumas rugas.

Embaixatriz vitalícia
Enquanto isso, dona Canô está adequadamente acomodada em uma cabeceira de mesa, pajeada por tenentes e majores, distribuindo sorrisos e negando excessos de sobremesa, de acordo com a recomendação diligente do filho Rodrigo. Para o alto comando da PM na região, qualquer tentativa de agradar a embaixatriz, ora primeira-dama vitalícia, ainda é pouca.
Dona Canô realmente contabiliza sucessos como uma voluntária social das causas de Santo Amaro. Um dos mais recentes foi a bandeira pela instalação de um campus da Universidade Federal do Recôncavo, até mesmo exortando o engajamento dos mais jovens.  Só que subir ao panteão de liderança comunitária teve o impulso do sucesso dos filhos mais notórios. Caetano e Bethânia amplificaram nacionalmente o nome da mãe, que seria eleita num plebiscito do inconsciente coletivo como representante municipal. Um perfil publicado no jornal O Estado de São Paulo no ano passado , por conta do centenário, insiste que dona Canô é muito mais do mãe de Caetano e Bethânia. Mas já no título dá pra ver a sombra do filho em um verso de canção: Essa voz tamanha.
Dona Chica e dona Domingas não tiveram entre os Valdomiros, Ednas, Sílvias e Carmelitas que pariram nenhum artista ou celebridade, por isso ficam com a fama restrita, de velhinhas nascidas e criadas na roça. Um recorte de jornal concede a Chica o certificado que ela precisa para exibir um instante de importância além do rio Subaé – impresso em papel de má qualidade. É uma reportagem que relembra a visita do presidente Lula, em que ele deu um abraço na anciã, recomendou ao prefeito que cuidasse dela e deixou duas lágrimas propositadamente escorrerem dos olhos marejados.  Mesmo assim, daquele dia em diante, o prefeito João Mello nunca mais encontrou com ela.
O grande desejo da vida é apenas conhecer a repórter Wanda Chase, da TV Bahia. Enquanto o dia que considera grandioso não chega, vai se ocupando das lembranças mais remotas da infância, como quando tinha pouco mais de oito anos e viu a irmã frente a frente com uma cobra na roça, que ia e vinha mostrando a língua e serpenteando à espera de um bote mortal.
Esses flashbacks de longo alcance são explicados pela ciência. “Em uma idade avançada, o cérebro começa a perder a capacidade de reter memórias recentes e passa a recuperar lembranças cada vez mais antigas”, observa o estudante de neurociências, Sandro Iego. A sorridente Domingas também se reencontra em cenas remotas. Credita a boa saúde ao fato de ter sido “criada em casa de branco, comendo do bom e do melhor”. Irrita-se sempre que algum dos nove filhos tenta regular o desejo de comer mocotó, buchada e outras iguarias de valor calórico tão alto quanto a satisfação gastronômica que proporcionam.

Dona Domingas recebe com interesse qualquer estranho porta de casa

Mal do século
Em Santo Amaro, passar dos 100 anos não é velhice, é tendência. Voinha já ultrapassara os 100 quando morreu no ano passado. E Zezinho Belmont chegou a 104 anos de idade. Há uma espécie de contradição nessa longevidade compartilhada, justamente poque a cidade a 75 quilômetros de Salvador ainda convalesce da contaminação pelo chumbo, acumulada nos 33 anos de atividade da Cobrac, até 1993, décadas produzindo quase 500 mil toneladas de uma escória composta cádmio, chumbo e outros metais pesados.
Uma herança maldita que chega a ameaçar até a pequena Alícia, a bisneta de dona Chica que nem completou um ano de idade ainda. Se não tem uma notoriedade nacional, dona Chica não pode se queixar de popularidade local, que faz dela uma pitonisa em Santo Amaro. “O povo gosta de mim. Quando chego em qualquer lugar, parece que sou uma boneca”.  Chica não sabe ler, nem escrever e sob critérios meramente formais de educação poderia mesmo ser comparada a uma boneca, sem vida, sem intelecto. Mas a agilidade mental e a maturidade secular sugerem uma sabedoria invejável. “A juventude está se acabando na faca, na bala e nas drogas”, reflete ela, sob os cabelos grisalhos que só admitem o enxague com sabão de coco.
Do ponto de vista físico, mantém um alongamento exuberante, alvo de inveja das “garotas” de 70 anos do grupo Envelheça com Saúde, onde dona Chica é uma das raras que consegue tocar os pés. Mantém uma rotina de banho frio independentemente de estação do ano. Desse jeito, recebeu um carimbo de vida longa na mais recente bateria de testes no ano passado. Não toma nenhum remédio, apesar da recomendação de um médico para que ela administrasse umas pílulas para pressão alta. Só que nem ele mesmo pode cobrar nada, porque faleceu no ano passado, aos 60 e poucos, enquanto dona Chica continua aí, desafiando qualquer prescrição de limite de vitalidade.
As três senhoras do destino da cidade pouco aparecem juntas, a não ser em um porta-retratos exposto na sala de uma das filhas de Domingas, no bairro Trapiche de Baixo. Já está um pouco antigo, o vidro rachado, uma prova de que a imagem gastou no tempo.

Chica, Canô e Domingas em rara foto de fama e anonimato

É a filha de Chica, Edna, quem dá uma deixa sobre como as centenárias de Santo Amaro, embora ligadas em longevidade, estão a gerações de distância pelo tipo de tratamento dedicado a cada uma. “No aniversário dela (Chica), dona Canô vem. No de Dona Canô nunca chamam ela. Todo mundo só fala de Canô, Canô…” É porque todo mundo só canta Canô, Canô.

*reportagem publicada em outubro de 2008, na extinta Revista da Metrópole