Bala na Agulha

Ele já foi cobrador de ônibus, vendedor de picolé, garçom e até já foi Edvaldo; hoje é apenas Ed Bala e já planeja estrear como cantor de forró

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

A glória para Edvaldo foi ter o nome pronunciado como o quinto escolhido, entre cinco vagas para cobrador de ônibus. Depois de seis tentativas em recrutamentos de diversas empresas, enfim, ouviu o gerente dizendo o nome que parecia uma senha para a riqueza imediata: Edvaldo de Jesus Barreto. “Rapaz, fiquei feliz pra caramba. Todos os meus sonhos pareciam estar se concretizando”, enuncia o esfuziante cobrador, mais de 15 anos depois do episódio.

Ele não sabia, mas iria protagonizar o que seria o caso mais rápido de contratação e demissão da história do sistema de transporte público de Salvador. Dez minutos depois, o mesmo gerente o convocou para a sala, sozinho, pegou a pasta com todos os documentos necessários para a admissão, colocou tudo na mesa em frente, deu uma respirada de pêsames e disse de forma seca: “sinto muito, mas ficou decidido que você não vai fazer parte de nosso quadro”. Edvaldo primeiro engasgou, depois tossiu, começou a perder o fôlego, imaginou que nunca iria ter uma lanchonete, passou a mão na cabeça, sentiu o chão desaparecer sob os pés, percebeu que a sala estava toda rodando e teve a certeza de que aquele filme todo é o que acontece nos relatos de quem tem uma morte iminente. “Caiu tudo ali pra mim, negão”.

De vendedor de caldo de cana a artista multimídia: ralação recompensada

Como o chefe não queria ser depois acusado de um homicídio culposo, apenas esperou ele levantar com a aparência de zumbi operário e disse que tudo não passava de uma brincadeira. “Rapaz, eu pulava, me jogava no chão, comecei a gritar, chorei, puxei o cabelo do cara, fiquei maluco”, conta Ed Bala, uma espécie de agitador cultural multimídia, que de ex-cobrador nascido na periferia passou a garoto propaganda e debochado repórter de televisão em pouco mais de 10 anos, numa trajetória de obstinação e senso de humor. “Acho que naquela hora ele fez aquilo para eu perceber a verdadeira importância de um emprego”, minimiza o paciente de uma síncope da demissão prematura.

A pegadinha não foi a primeira e nem a única vez em que gozação e realidade se encontraram na vida desse exótico personagem de si mesmo. Apenas foi uma em que ele não era o ator, mas sim a vítima. Nascido em uma família simples do bairro de Pau da Lima, o irrequieto Ed não esconde que sempre quis morar no centro da cidade e, se possível, ficar no centro das atenções. Para chegar no palco eletrônico, vestiu primeiro os figurinos de vendedor de picolé, carregador de caminhão, garçom, animador de festa infantil e até mesmo mascote do Bahia, um boneco sorridente de cabeça grande com quem ele teve a idéia de dar cambalhotas na Fonte Nova.

O primeiro emprego formal foi aos 14 anos, como menor aprendiz no gabinete do secretário estadual de saúde. Ed chama o cargo de auxiliar administrativo, o que na prática significava levar correspondências pelo órgão, transportar documentos, receber processos e requisições dos contribuintes. Resumindo, era boy, que gostava de carimbar uns protocolos com a mulherada madura. “Na época, as coroas já conspiravam dizendo que eu seria galã de televisão. Acho que porque eu sempre fui branco dos olhos claros”, sugere, assumindo ares de galanteador da puberdade.

Estréia na TV

Ainda não tinha atingido a maioridade, quando estreou na tv de forma imprevisível em 1987. Estava no Campo Grande enciumado com a namorada, que foi abordada pelos diretores Ed e Pola Ribeiro, à procura de um rosto desconhecido para um comercial. Ela recusou por se achar sem perfil para a missão, mas recomendou o irreverente namorado. “Chamem que ele tem jeito para essas coisas”.

Assim, aos 17 anos, gravou o comercial para o cursinho Einstein. Era um texto que não exigia muito da incipiente capacidade cênica do jovem:

– E aí, passou no vestibular?, perguntava a atriz.

– Não, respondia ele.

– Por quê?

– Porque estudei.

– Como assim?

– Estudei em uma sala com mais de 400 alunos.

Aí entrava o texto explicativo sobre o Einstein – o cursinho genial – cujo máximo de ocupantes em cada sala seria de 80 estudantes. E Edvaldo, o suburbano ator, voltou para Pau da Lima divulgando a todos os vizinhos que iria aparecer na televisão. Passaram-se três meses para ganhar a fama de culhudeiro. Até que a propaganda começou a ser veiculada e ele se deu conta de como o acaso foi importante em seu destino. “Estava escrito nas estrelas. Eu nem costumava sair do meu bairro e no dia que fiz isso fui descoberto por Pola”, impressiona-se.

A história poderia terminar aí com a gênese de um grande sucesso juvenil das telas. Mas, aos 19 anos, terminou o contrato como funcionário público e passou mais dois anos desempregado. Só não ficava parado em casa. Vendia sonho e banana real na rua, se oferecia para descarregar caminhão de madeira, fazia trabalho de pintura de apartamentos, arrumou caixa de picolé para vender na praia, em uma hiperatividade de quem sabe desde cedo como é difícil se sustentar. Com 20 anos, percebeu que vender sanduíche natural dava dinheiro. Olhou para uma máquina de caldo de cana que um amigo tinha desativado e começou a imaginar aquelas engrenagens funcionando como moinhos de  sobrevivência financeira.

“Néu, você me empresta essa máquina, maluco?”

Néu emprestou e, junto com Mundinho e Jacobina, ainda deu o primeiro financiamento para que ele pudesse instalar um motor na geringonça. Assim surgiu a banquinha do Rango do Val, um apelido que o jovem Edvaldo não gostava, mas que achou de uma sonoridade boa para a freguesia.

Só que a vida não era doce como o líquido que escorria dos copos direto para as gargantas ávidas dos clientes. Precisava acordar de madrugada e tomar o primeiro ônibus para a Feira de São Joaquim, onde comprava cinco feixes de cana e ainda dava um trocado para um menino voltar correndo e levar para dentro do mesmo coletivo. Esse é o tipo de episódio de infância que muita gente que venceu na vida pode até relatar, mas contado por Ed Bala vira uma verdadeira odisséia de trapalhadas e dramas.

Faltava colocar em prática uma carga artística que tinha sido herdada do pai, o ex-animador de festas de largo em Pau da Lima. Para sustentar os seis filhos, seu Manoel Barreto, o Barretinho, transportava água no lombo de um jegue e distribuía nas casas das redondezas, uma espécie de vila primitiva. Durante o carnaval, ele conseguia uma verba na prefeitura para fazer a festa no subúrbio. O próprio Barretinho assumia o microfone na atividade que parecia ser uma realização pessoal. Até os 12 anos, o menino Edvaldo acompanhava aquele delírio mambembe, misto de cabo eleitoral e Chacrinha.

Sem energia

A falência do caldo de cana fora determinada pelo corte de energia do fornecedor informal do Rango do Val, que oferecia uma fiação em troca de alguns lanches de graça. Percebeu que deveria ter a sonhada carteira profissional assinada. “Fui procurar um trampo de cobrador de ônibus”, recorda. O resto de sua saga como rodoviário já foi relatado, menos a parte em que ele decide trocar a catraca pela coxia. Empolgado com o curso livre de teatro e a possibilidade de estrear na peça Noites Vadias, entrou numa roda viva em que largava os ensaios meia-noite e tinha que acordar às 4h da madrugada para entrar no primeiro ônibus que fazia a linha de Engomadeira. Depois de duas faltas, recebeu o conselho que largasse o teatro ou então iria ganhar um aviso prévio. Só que o desejo de estar no palco superava um contra-cheque de final de mês. Terminou demitido. E feliz.

Além do mundo cênico, começou outra empreitada no ramo da gastronomia. Inaugurou a lanchonete Ed Burguer – o império dos lanches -, segundo o próprio slogan que dominou os desejos dos moradores de Pau da Lima. Especializou-se na criação de sanduíches com nomes exóticos, como Ed Glú, Glú-Glú, X Có, Corococó. Interrompeu a ascensão como comerciante de delícias na periferia justamente porque a missão artística convocava. Em uma das apresentações, foi parar em Fortaleza com uma trupe que reunia até o hoje galã de telenovelas Vladimir Brichta, mostrado para o repórter em uma foto de recordação como um esquálido adolescente. Edvaldo decidiu que ficaria um tempo na capital cearense. Esse rápido encantamento durou não menos que um ano e três meses, período em que era uma espécie de guia turístico e humorístico de um show chamado Alegria Brasil.

Na volta para a Bahia, já não tinha mais apetite para tocar a Ed Burger e começou a ganhar dinheiro fazendo animações de todos os tipos. Em aniversário infantil, telegrama animado, feiras de convenções e apresentações em perna-de-pau, lá estava Ed, promovendo a festa. “Ganhei grana na época, consegui comprar uma moto CG, de 1987. Tudo na base da comunicação, né rei”, avalia o escrachado ator.

Amor de garçom

Só não faz gracejo nenhum quando fala da companheira Mabel, a quem teve de conquistar quando ainda era garçom e ela uma estudante universitária de classe média. Há uns 10 anos, ele servia as mesas na cachaçaria Alambique, no Pelourinho, e não se intimidou em procurar graça com aquela cliente vistosa. A morena hoje admite que não levou a conversa com muito bom humor e não estava nem um pouco interessada. Mas Edvaldo conseguiu uma brecha para mostrar algumas virtudes e terminou encantando a filha de um advogado, que não gostou nem um pouco do romance improvável.

Cantor de forró: carreira definitiva ou só experiência?

Ela, entretanto, usava o dinheiro da mesada para ajudar nos sonhos do parceiro e chegou a dar de presente de aniversário uma matrícula no curso para ator de propaganda ministrado por Rada Zaverutcha. “O que eu mais incentivei ele foi a ter um celular, porque percebi que estava perdendo trabalho pela dificuldade de ser contactado”, relembra ela. “Passei a admirá-lo. Um cara que saiu da pobreza em Pau da Lima e conseguiu vencer na vida como um batalhador”, elogia a mulher, que na semana passada, enfim, ganhou um cobiçado anel de noivado.

O casal mora junto no andar de baixo da casa dos pais dela, em Brotas, onde cuida dos “filhos” Jujuba e Pitu, um afável par de pitbulls. O sogro dele só deixou de torcer o nariz quando percebeu que o genro, aparecendo na televisão, deveria realmente ser bom no que faz. Para chegar a repórter de tv, fez uma fama relativa como garçom performático do restaurante mexicano Cien Fuegos, onde incorporava o personagem El Bigodon. Em uma psicodélica Festa em Quadrinhos, foi descoberto pela turma da incipiente TV Salvador e poucos meses depois já apresentava o programa Noite a Dentro. Em seguida, a atração mudou para De Ponta Cabeça e ele, enfim, consolidava o nome artístico que queimou pestanas para bolar. Era Edvaldo Barreto, depois Edvaldo de Barreto, pensou até em Ed Bach, mas só depois de um brainstorming de letras e conceitos chegou a Ed Bala. “Se encaixa perfeitamente comigo, porque sou um cara meio espoleta. Atingiu em cheio o alvo que eu queria”, explica.

Fora de programas de televisão desde 2004, tornou-se garoto-propaganda da Comercial Ramos. Recentemente, lançou um site pessoal (www.edbala.com) com fotos, músicas e um trecho da biografia, que pretende transformar em portal de humor e civismo. “Vou colocar notícias de iniciativas culturais das comunidades”, promete. Mais urgente é seu projeto de virar forrozeiro do gênero irreverente, prometendo não apelar para a baixaria. Ele é o líder da banda Bala N´agulha, que deve regravar sucessos de Genival Lacerda e outros nomes consagrados do ritmo, como Luiz Gonzaga, mas também lançando composições próprias.

A médio prazo, Ed Bala acha que tem um espaço no universo artístico do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Mas ainda este ano pretende executar dois projetos. O primeiro é ter um monólogo de humor, um estilo chamado nos EUA de comédia standup, em que vai emendando experiências pessoais com crônicas de costumes. O outro é iniciar uma série de palestras nos bairros periféricos contando toda essa história de superação, em uma espécie de lição de auto-ajuda ao vivo, em 60 minutos. “Talvez, minha trajetória sirva de exemplo para essa moçada. Acho que o conselho principal é que é preciso arriscar, não pode ficar naquela miguelagem”, ensina. É o tipo de ensinamento que, depois de tanta aventura, ele não precisaria passar por faculdade para dar. Mas agora é hora de dar ração para Jujuba e Pitu e o melhor é ir embora, que eles não estão achando graça nenhuma.

* reportagem produzida em maio de 2006