INDECISÃO

Ali, congelado por suas tristezas glaciais

Amordaçado por nós de garganta

A um passo de sempre ir

A uma indecisão de sempre ficar

 

Sorvia as belezas incultas da profanação da idade

Bebia as riquezas ocultas da complexidade

Estranhava ali tudo que era coleta e desuso

Estranhava o que era abuso

Fazia pouco caso do uso da vírgula, do trema

“Vida não é gramática pra ter esquema”

Qualquer dor é tema pra encerrar uma cena

 

E assim apertava as algemas

Alfazema borrifava, a ferida perfumava

Tudo que perdia e faltava

Aquela angústia que ardia

Aquela mulher que queria

Aquela dor que ansiava

 

E assim descartava

O que não desejava era o que mais procurava

Era falácia, era mentira, era suspeita

Esta lenta riqueza da graça

Tudo que via, tudo que passa

Ali adorava como seita

Comia, bebia, escarrava

Fez néctar daquilo q se aceita

Fez do amor a colheita

um mal que não esperava

 

Da brisa, a natureza, proeza do sofrimento: jornada

Era mais contemplado como castigo

Aquele bandido que andava ao lado

Fazia de tudo, fazia nada

Era doença, era deleite, era tortura, era pisada

Fazia de tudo, fazia nada

 

Por essas e aquelas; tormenta, me deixas

Onde estou nem é um lugar

A um passo de partir
A um peço de ficar

O homem que corre

corredor

Um homem corre no contrafluxo de carros e de ônibus. Ele tem a aparência esgotada, suor escorrendo pelo torso, os ombros retos e firmes. Os olhos visam o infinito, cabeça ereta. Fone branco no ouvido, ele tem uma aparência cansada.

Quais serão os pensamentos do homem que corre no contrafluxo de carros e de ônibus? Serão pensamentos enxutos, raros, caros, putos?

Quanto de fadiga aguenta o corpo suado e cansado do homem que corre no contrafluxo? Quanto de fadiga, me diga.

De quem ele corre? Quem ele quer encontrar?

O homem que corre no contrafluxo, sempre passa no mesmo horário, caindo a noite, depois que o sol se pôs e só lhe resta correr da escuridão.

Contradição atlética esse homem que corre no contrafluxo. O corpo está ali presente, mas a imagem de ausência é o que passa rápido, na direção oposta, ameaçando o sentido único dos veículos.

Os pés calçados vencendo o asfalto, a cabeça lá no alto mais alto que o céu.

Quais as canções acompanham e guiam o homem que corre no contrafluxo? Para correr, o que ele ouve, o que houve?

Corre sem relógio, sem marcação, nem destino. Vai até o corpo avisar que já pode parar. Corre e corre mesmo para depois de lá.

Visto à distância por alguns segundos. Carros passam. Ele tem direito a ficar doente, sente dores musculares? Benvindo seria em quantos lares? Como se comportaria esse homem em outros ares?

Ele passa rente a carros, parece imune a buzinadas, não se incomoda com o braço batendo em retrovisor com a violência de um xingamento, com um ferimento redentor. O homem corre e não se incomoda, seu tornozelo batendo alto nas nádegas é mais do que moda.

Não tente encarar o homem que corre no contrafluxo. Não tente alcançar o homem que corre. Não adianta identificar quem. Parado, ele não é mais ninguém.

Um homem corre, suor escorrendo, urgência que ocorre, amor socorrendo. Um homem corre.