O homem que corre

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Um homem corre no contrafluxo de carros e de ônibus. Ele tem a aparência esgotada, suor escorrendo pelo torso, os ombros retos e firmes. Os olhos visam o infinito, cabeça ereta. Fone branco no ouvido, ele tem uma aparência cansada.

Quais serão os pensamentos do homem que corre no contrafluxo de carros e de ônibus? Serão pensamentos enxutos, raros, caros, putos?

Quanto de fadiga aguenta o corpo suado e cansado do homem que corre no contrafluxo? Quanto de fadiga, me diga.

De quem ele corre? Quem ele quer encontrar?

O homem que corre no contrafluxo, sempre passa no mesmo horário, caindo a noite, depois que o sol se pôs e só lhe resta correr da escuridão.

Contradição atlética esse homem que corre no contrafluxo. O corpo está ali presente, mas a imagem de ausência é o que passa rápido, na direção oposta, ameaçando o sentido único dos veículos.

Os pés calçados vencendo o asfalto, a cabeça lá no alto mais alto que o céu.

Quais as canções acompanham e guiam o homem que corre no contrafluxo? Para correr, o que ele ouve, o que houve?

Corre sem relógio, sem marcação, nem destino. Vai até o corpo avisar que já pode parar. Corre e corre mesmo para depois de lá.

Visto à distância por alguns segundos. Carros passam. Ele tem direito a ficar doente, sente dores musculares? Benvindo seria em quantos lares? Como se comportaria esse homem em outros ares?

Ele passa rente a carros, parece imune a buzinadas, não se incomoda com o braço batendo em retrovisor com a violência de um xingamento, com um ferimento redentor. O homem corre e não se incomoda, seu tornozelo batendo alto nas nádegas é mais do que moda.

Não tente encarar o homem que corre no contrafluxo. Não tente alcançar o homem que corre. Não adianta identificar quem. Parado, ele não é mais ninguém.

Um homem corre, suor escorrendo, urgência que ocorre, amor socorrendo. Um homem corre.

OS BAIANOS: Aline, sempre a um passo apenas do paraíso

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Será de manhã quando você se deparar com a jovem que corre de muletas na orla. Será uma nova manhã. Ela, que se locomove em um balé cibernético, onde os braços ganham extensões até o chão, vigas móveis, apoiando e impulsionando adiante. Será manhã naquele trecho entre Itapuã e Piatã e você será mais um na plateia informal impressionada, pode interromper a própria corrida em homenagem, ou dar uma buzinada de incentivo. aline_sorri

Como se Aline Melo, 21 anos, precisasse de algum estímulo externo. Seu ritmo é apoiado em duas muletas cor de rosa chumbo e em obstinação. E você aí, pela metade, reclamando que hoje não dá, que os músculos estão cansados, que está frio demais ou calor demais. Aline é daquelas miragens desconcertantes, como seu Arioste, que surgem na orla de Salvador, essa cidade que tem sabor de pão dormido molhado em azeite de poesia.

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– Posso fazer uma entrevista?

– Não sei muito falar.

Mas aí mesmo, com certo sorriso, já vai contando que mora no Jardim das Margaridas, um bairro próximo ao aeroporto de Salvador, dividindo a casa com uma tia. Saiu de Paulo Afonso, um ano atrás, atraída pela proposta de trabalho em um escritório de material de construção. “Estou muito feliz, me sinto em casa”. Encantou-se com a praia, com o Farol da Barra, com o Elevador Lacerda, com o Mercado Modelo. Aos fins de semana, encanta-se também com o shopping center.

Não é atleta, não visa paralimpíadas, é apenas prodígio da força de vontade, lição da natureza. Ela não pode conjugar para si mesmo membros inferiores no plural, mas vai caminhando, em passos únicos, numa altivez superior. Fone no ouvido, roupa de academia, cabelo preso, nada falta no visual de Aline Melo. O que sobra é sua exaltação diante do mar. “Essa orla é linda demais”, exclama, sábado sim, sábado não, ou feriados, quando não precisa trabalhar. É de fazer pensar se uma jovem assim, tão real quanto improvável, chegaria a musa inspiradora de Chico Buarque.

– Você se considera um exemplo?

– É o que as pessoas costumam dizer, responde, em um tom quase envergonhado de quem não quer assumir fantasia de heroína.

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Nessa Salvador, a capital exuberante, que mais impressiona do que choca, não há políticas públicas para nada e para nada, ela passa por cima, aos saltos, de uma calçada desnivelada, esburacada, torta, como a vida costuma ser. Olhares oblíquos vão fitando a jovem, são olhos que pertencem a corpos com potencial amputado pela mediocridade, vidas pererês que vão errando bípedes por aí sem direção. No caso dela, seguir adiante é também uma questão de equilíbrio.

Desnecessário é detalhar como ela teve a perna direita arrancada aos dois anos de idade em um acidente com ônibus cujos detalhes ela nem precisou de muito esforço para esquecer. Isso está no passado. No futuro, o sonho dela, que terminou o ensino médio, é passar em um concurso, qualquer que seja. Sem ser Alice, Aline considera que o país das maravilhas seria aquele em que fosse servidora pública da área administrativa de alguma estatal ou autarquia.

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– Posso tirar umas fotos?

– Só se ficar bonita, responde com um sorriso.

Mesmo em feriado, o mundo passa com pressa por Aline, em duas pernas, em duas ou quatro rodas. Mas vá procurar naqueles céleres o mesmo riso fino e perene no canto de boca. A satisfação suave de ver a praia pela primeira vez, mesmo que já seja a centésima.

Aline Melo é inteira em felicidade e encantamento pela orla, pelo mar, que é esse inconsciente coletivo em forma líquida. E você aí, reclamando que hoje acordou cansado, que está atrasado demais para coisa alguma, fazendo um glossário de “mas” e “se” só com o objetivo de se boicotar. E eu aqui, procurando o que falta, um sentimento que sirva, qualquer coisa que se sinta.

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OS BAIANOS – Arioste, o atleta gentileza

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Quem vê na manhã da orla de Salvador, Arioste Jorge Fér Farias acenando a esmo, ao largo de um engarrafamento insalubre, atravessando com sorrisos a animosidade dentro do ar condicionado veicular, sente primeiro uma surpresa. A surpresa vem primeiro e é seguida –“sim ele está mesmo fazendo aquilo e, não, ele não é maluco” -, seguida por um sentimento de que as coisas vão dar certo.

Ele acena a esmo: gentileza em ação
Ele acena a esmo: gentileza em ação

Arioste, o atleta gentileza, oferece pílulas da vitamina da cordialidade contra a acidez da metrópole. Lá vai ele praticando a ginástica da bem aventurança, esta que exige mais do coração do que qualquer combinação de halteres, destes muito caros nas academias dos duros como pedra. Esportista da amabilidade, dispõe de séries capazes de dissolver os reumatismos dos rancores, amenizar as hipertensões emocionais, suavizar as isquemias de testas franzidas e aquecer as expressões faciais hipotérmicas.

A viatura da Rondesp, com quatro temidos militares da tropa de choque da polícia baiana, passa e dá duas buzinadas marotas. Arioste fica o mais ereto possível, estende perpendicularmente a mão direita na testa e presta uma continência solene de quase um minuto que só um cidadão de bem poderia imitar. Os agentes da lei seguem sorrindo. A cena pode ocorrer 3 ou 4 vezes numa mesma manhã e em todas elas Arioste irá repetir o gesto de almirante da boa vizinhança. Com um aceno, um sorriso proteticamente branco, uma saudação de meu sobrinho, ele vai oxigenando espíritos do mesmo jeito que as artérias fazem com os tecidos.

Arioste Jorge Fér Farias, 66 anos, engenheiro mecânico, há 13 anos aposentado pela Petrobrás, com uma receita de bem viver. Desde jovem, achou que fazer exercício diariamente seria um dogma, “como se fosse algo acachapante, quer dizer, indiscutível”. Para ele dogma é dogma, princípio inquestionável. Tá com febre, tá gripado, tá achando que de tão fraco vai morrer hoje, então aproveite e se exercite antes de bater as botas. Assim é o pensamento dogmático do Arioste de sorriso generoso.Arioste7Arioste6Arioste5

Ao longo do trajeto, entre Jardim de Alá e Aeroclube, que ele cumpre sem pressa (o caminho vale mais que a chegada), vai recebendo um “saudade” por ali, um “bom te ver” por cá. Esteve afastado uns dias, fez falta, mas nem sempre foi assim.

Ele chegou às caminhadas na orla disposto a conduzir uma aposentadoria produtiva e saudável. Diz que encontrou no semblante das pessoas a “fisionomia compungida”, os “rostos pesarosos de quem pecou”. Logo ele, que acredita que os “beneplácitos” da caminhada devem ser feitos “com júbilo”, para que se torne uma pessoa virtuosa e feliz. As pessoas passavam e não se cumprimentavam. Logo ele que gostava de “espargir alegria”.

Passou a acenar, chamar a todos de sobrinhos, sorrir sempre. Não foi simples e redentor como um filme de Woody Allen. Andava com passinhos de marcha atlética, alongando panturrilhas, quase nas pontas dos pés para estimular o “coração periférico” que fica na batata da perna. Convenhamos que não é uma forma de locomoção das mais másculas. Só que ele encontrou três jovens fortões, altos, que passaram olhando para baixo e falando para ele só falta um sutiã para completar o personagem. Ele reagiu da forma que convém reagir quando se trata de uma provocação por três fortões altos de academia: com uma frase de Pablo Neruda. “Não há de ser nada, até as flores mais delicadas, resistem aos ventos mais agressivos”. Eles continuaram nesta zombaria de macho alfa, mas 48 horas depois retornaram. E desta vez para pedir desculpas.

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Arioste acena para a saúde. Gosta de ter uma boa alimentação, que seria uma alimentação “comezinha, simples”. (“Não é que eu goste de usar as palavras difíceis, mas é que são as palavras certeiras”). O marido de dona Valquíria há 45 anos, com quem teve duas filhas e duas netas, resolveu fazer um check-up no dia 6 de novembro de 2012. Foi ao Hospital Espanhol achando que faria um exame e sairia dali direto para um chopinho no Shopping Barra.

Já tinha feito exames anteriores, cujo teste de esforço, ele traduziu como um recado do coração: “Arioste, eu tô bem, mas você está mandando pouco sangue e oxigênio para mim. Posso não aguentar”.

Era próximo do Natal e pensava em festividades, vinho tinto, canapés. Por isso não quis logo fazer a intervenção cirúrgica. Só que naquele dia não teve mais como sair. Operou no dia 22 de novembro, pontes de mamária, safena e revascularização cardíaca.

Enquanto isso, uma pequena comoção ocorria neste ambiente em que cliques são confundidos com doações quando uma campanha foi iniciada na internet para formar uma boa reserva de sangue que garantisse segurança cirúrgica. Dos milhares prometidos, chegou às dezenas de doadores.

Nada contra o atleta gentileza, mas é que as pessoas são hábeis e rápidas a se comprometer com o virtual sem se dar conta que é preciso uma contrapartida real. Assim, por exemplo, talvez se submetendo a uma seringada.

Operou dia 22, recebeu alta 29 de novembro, três meses depois de uma cirurgia invasiva, já estava de volta ao calçadão. Retomou os exercícios em um domingo anterior ao carnaval 2013, recebido com festa, homenagens e camisas comemorativas.

Foram 13 anos para se tornar uma unanimidade no calçadão. Se antes ele tentava romper a indiferença com golpes de ternura, hoje recebe tudo de volta em acenos, abraços, afagos, apertos de mão e meneios de cabeça pelos mais reservados. Derrotou a indiferença que parecia inatingível no pódio dos corredores da orla. Você olha Arioste, o atleta gentileza, em ação e tem aquela surpresa. Imediatamente depois, você já sabe que tudo vai dar certo.

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