Terapeuta do riso

Ex-professor de educação física, Renato Piaba ganha a vida ensinando as pessoas a rirem dos próprios dilemas sexuais

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Renato Lacerda de Alcântara tem 49 anos, dois filhos e diploma de nível superior em Educação Física. Renato Piaba, que muitos confundem com a mesma pessoa, não tem uma idade definida (pode demonstrar a impetuosidade de um adolescente, dizer palavras sábias como um senil guru, ou reagir com a pilhéria típica de um garoto irreverente), não tem sexo e muito menos pudores para bradar alguma obscenidade. Ultimamente, esse lado B do ex-professor de academia ora é um pai-de-santo afetado, ora é um putão de São Caetano ou até mesmo uma cópia de Rita Cadilac, incorporando cada um com uma naturalidade de fazer inveja a qualquer médium.

Renato Lacerda: ex-professor de educação física

 

 

Tanta metamorfose tem um bom motivo. Há quatro semanas com um novo show em cartaz, Piaba garante que está fazendo sua parte para que homens e mulheres conheçam um pouco dos ardis alheios. Em outras palavras, ele utiliza tudo como pretexto para colocar em cena o binômio de maior aceitação por essas bandas: riso e sexo. Tem dado certo. A lotação esgotada nas três sessões semanais há um mês é o que faz o comediante rir à toa. “É minha resposta aos críticos e às pessoas da sociedade que diziam que ir em meu show era o mesmo que ficar ouvindo só putaria. Demorou para o povo compreender minha arte, mas hoje sinto o que é sucesso”, devolve.

Ao admitir que está no auge, Piaba mostra que não tem problemas com megalomania. “Quero atingir o máximo sempre, não tenho limite. E com esse show eu vou ganhar o Brasil inteiro e penso até em atingir o mercado internacional, fazendo apresentações para brasileiros em Miami”, planeja o bacharel em educação física que alega ter mudado de profissão justamente no melhor momento: quando tinha atingido o status de ser um dos 10 mais bem pagos professores da Bahia. “Minha vida é uma eterna mutação, mas agora acho que estou no ciclo mais verdadeiro, que é o de ator, porque tenho a alma pura”.

Também já foi velejador do Yacht Club da Bahia, com uma coleção de troféus e medalhas. Só que o pódio para ele tinha que ser em algo que o elevasse à categoria de artista. Com um timing peculiar para provocar gargalhadas coletivas e expressões tipicamente suburbanas, ele montou seu show batizado de intimidades.com. “É porque falo de assuntos que dizem respeito a todos, principalmente sobre a insatisfação das mulheres. Descobri muito sobre esse tema fazendo pesquisa na internet”, despista.

Ele incrementou sua criação baseada no gênero standup comedy (um monólogo inspirado nas produções dos grandes comediantes americanos) usando a interação com a mídia, principalmente as imagens bem disseminadas dos apresentadores Kátia Guzzo e Casemiro Neto, da TV Bahia. Eles fazem participações especiais gravadas, no papel deles mesmos como se estivessem consultando o especialista Piaba, um terapeuta sexual do riso.

Desventuras amorosas

Muitas vezes, usa como principal argumento as próprias desventuras amorosas, embora não admita. Apenas em uma situação, ele reconhece sua condição de protagonista desastrado. Era na época de vacas magras e clientes de pernas torneadas, quando dava aulas de aeróbica em uma academia, no papel de professor de educação física. Encantou-se por uma “criatura toda gos-to-sa” e arrumou um pretexto para convidar para o quarto-e-sala que tinha na Avenida Paulo VI (“sonho de pobre é morar na Pituba e depois no Taigara, pobre chama de Taigara”).

Fez o convite de uma maneira irrecusável: propôs um almoço cujo prato principal seria uma moqueca de camarão. “Se você convida para comer um macarrão, um feijão com arroz, mulher rejeita na hora. Mas basta falar em camarão que tudo fica certo”, ensina. E na trilha de conselhos infalíveis para se dar bem, ele recomenda um novo design de interiores para não correr riscos de ver as intenções abatedoras frustradas.  “Se a mulher resolver sentar no sofá da sala, vai ficar ali o tempo todo, dificilmente ela vai aceitar ir até o quarto. Então, a solução é colocar todos os móveis na suíte”, aposta.

 

Piaba, agora tirando onda com os dilemas sexuais alheios

A vítima em potencial perguntou logo se ele estava de mudança, mas Piaba apenas garantiu que era adepto de modelos exóticos de decoração e tinha colocado tudo dentro do quarto. Conseguiu leva-la para a cama (no bom sentido, apenas sentada) e a história que teria tudo para se encaminhar para um final, digamos, prazeroso, terminou resultando em mais um cômica deleite para seus fãs, que é bem melhor encenado no palco do que descrito em uma reportagem. Só em conversas privadas, ele confessa que a convidada terminou virando sua esposa.

 

Coisas holísticas

Na hora da cantada, por exemplo, Piaba entrega que o homem fica apenas arrumando assunto para tentar disfarçar o único desejo, que é o de conduzir a vítima para sua alcova. E nesse objetivo vale adotar qualquer estratégia. “Toda mulher gosta de ser chamada de ícone”, ensina, sem perder o jeito debochado. “Falar de coisas holísticas também é legal”, explica ele, dizendo que todo esse papo meloso não passa de uma forma de esconder um único pensamento masculino nesse jantar. “Vou te cortar toda, em 70 bandas”, é o que mentalizam os homens, e eles não estão necessariamente pensando em picar o conteúdo do prato de comida.

No meio do espetáculo, um pretexto para louvar a imagem de Nossa Senhora. Seria uma contradição para alguém tão dedicado a picardias e lascívia, mas Piaba é um devoto da santa. “Podem me criticar, mas vi que aquele era o momento para fazer uma homenagem por todas as coisas que tenho conquistado”.

São 12 anos de carreira de um artista prestes a virar um cinquentão. É daqueles que se destacavam fazendo graça ainda na juventude e depois resolveu investir na veia cômica nas aulas de academia e em festas de comissários de blocos de carnaval. Piaba já foi diretor de bloco (“consegui juntar Asa de Águia e Chiclete com Banana no mesmo bloco”), antes de começar o seu carnaval particular de Traumas e Risos (nome de uma de suas peças).

O diretor Fernando Guerreiro apostou pela primeira vez no ator, incluindo no elenco da peça Salve-se quem puder. Convencido de que seu lugar era o palco, Piaba também Traído, mas quem não é? Depois, inspirado pelo filme Forrest Gump, com Tom Hanks, estrelou O Contador de Estórias, valorizando as cenas do cotidiano. Lançou o personagem Doutor Piaba e também atacou de político quando, em setembro de 2002, colocou o cartaz Piaba para Presidente. Não era mais uma anedota, e sim o nome do show.

Uma inovação e tanto foi colocar um trio elétrico humorístico no carnaval de Salvador, o Piabão. Há quatro anos, insiste com a idéia e planeja montar no circuito Barra-Ondina um palco fixo, dedicado ao humor. “Vai ser específico para aquele cara que chega na festa e diz: hoje, tô a fim de encher a cara dando risada com aquele sacana”.

Minutos antes de começar uma aula de musculação (agora mais como aluno do que como professor), ele reflete sobre sua condição, como se faltasse pouco para atingir os maiores anseios profissionais. “Sucesso é o momento certo, na hora certa. E Deus abençoando toda essa orquestra”, define ele. Dois segundos depois, dá-se conta do que acabou de falar de uma forma bem inusitada. “PQP, que frase da porra. Isso dá uma música na mão de Caetano”, vibra. Consideração bem típica de Piaba. Ou será de Renato Lacerda de Alcântara, 49 anos, pai de dois filhos e dono de uma auto-estima que parece até piada?

*Reportagem produzida em 2007

Parnasiano centenário

Aos 103 anos, completados hoje, o poeta Bráulio de Abreu continua escrevendo sonetos e declamando poemas inteiros de cor

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

A partir de hoje, quando receber os amigos e admiradores na casa de nº 24 da ladeira do Custódio, no Porto do Bonfim, uma espécie de meca aconchegante para a prática dos versos, Bráulio Joaquim de Abreu começa uma nova estrofe de auto apresentação: “eu arrasto comigo 103 anos”. Não bastasse carregar com bom humor e vitalidade o fardo de uma existência mais que centenária, ele também traz consigo o baú de uma obra poética primorosa. Autor de seis livros de poemas, continua escrevendo os versos líricos e heráldicos e declamando com uma rapidez de raciocínio de fazer inveja a qualquer rapper adolescente.

É um tanto improvável que as vistas nubladas de seu Bráulio permitam que ele leia o próprio escrito em um de seus livros. Mas a leitura da memória condiciona ele a declamar qualquer coisa que tenha saído de sua pena, desde que alguém ajude entoando o primeiro verso. Assim, é quase automático que ao escutar “eis-me aqui, sob o céu – minha fronde é virente” (início do poema Sonho de Árvore), ele prossiga sem pigarrear: “para, no meu silêncio, abrigar quem procura/ o sossego feliz, na esplêndida frescura/ Desta sombra que espalho, acolhedoramente”.

Se já é impressionante reconhecer a aurora do intelecto superando o crepúsculo do organismo vetusto nesse homem de 103 esplêndidos marcos, mais ainda é descobrir que o “príncipe do soneto” (como era chamado pelos contemporâneos de rodas literárias nas décadas de 30 e 40) sentou nos bancos de escola apenas até o 3º ano primário. Nascido pobre ao meio-dia do sábado 7 de março de 1903, Bráulio Joaquim cursou escola apenas o suficiente para saber os rudimentos do português. Logo, virou arrimo de família, com a morte do pai, que ao contrário dele virou tema de lápide aos 36 anos. Abandonou os estudos para se dedicar ao trabalho como alfaiate, mas não sossegou uma ânsia de aprender.

Trabalhava até o horário do último bonde da Soledade, descia no ponto para comer uma feijoada noturna e fazia a digestão na caminhada até a casa na Estrada da Rainha. À noite, Bráulio desafiava as trevas da ignorância, puxando um candeeiro de parede e colocando na mesinha em que lia compulsivamente a gramática de Carneiro Ribeiro e romances. “Eu ensinava a mim mesmo”, reflete o auto-didata, repetindo a frase ocasionalmente como se as lembranças bruxuleassem por aquele tempo como a chama vacilante do candeeiro.

Paixão etérea

Herdeiro de um encontro literário chamado Grupo da Baixinha, uma roda de intelectuais reunida sempre no Café Progresso da Baixa dos Sapateiros, que resistiu entre sonetos e versos livres, de 1925 a 1930, Bráulio era chamado de Uirapuru, porque quando declamava todos se calavam diante da voz de barítono e da inspiração de clássico. Fã de Olavo Bilac, ele costuma se referir ao mais badalado dos parnasianos pelo nome inteiro, como se evocasse um fantasma alexandrino: Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac.

Mas a paixão etérea continua mesmo por Júlia. O casamento de 54 anos com a musa inspiradora, desfeito em 3 de março de 92 com a morte da amada, deixou mais do que saudade e os cinco filhos (Sônia, Veleda, Marisa, Bráulio Filho e Eliana). Produziu uma inspiração que parece não ter estagnado com os anos de convivência e regou a florada de declarações de amor versejadas, como Carta de Amor e Soneto de Júlia: “Quando eu a conheci, era Júlia uma estrela:/ iluminou-me a vida e iluminou-me o sonho/ Hoje, se eu celebro em versos que componho/ É que meu coração nunca pôde esquecê-la”.

As homenagens, Bráulio as tem recebido paulatinamente, feito goteiras de louvor ocasionais pingando de um teto de insensatez. Em 24 de novembro de 1999, recebeu diploma da Secretaria de Cultura e Turismo por ter feito parte do grupo da primeira publicação baiana moderna, a revista Samba. Em 2003, ano do centenário, os amigos e admiradores cuidaram das celebrações religiosas e das tertúlias literárias. Uma conferência no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, uma menção na Academia de Letras, uma comenda concedida pela Associação de Moradores e Amigos de Itapagipe (com o nome do médico benemérito da região Júlio Davi) foram algumas deferências. Teve também a placa de Honra ao Mérito aprovada pela Câmara dos Vereadores, a partir de requerimento do vereador Silvoney Salles. O poema Manhã de agosto, que é a Península Itapagipana da década de 50, ficou gravado em uma placa de metal no balcão de doçuras da Sorveteria da Ribeira.

Por fim, o lançamento do livro Pentágono, com 100 páginas, em uma edição da Fundação João Fernandes da Cunha, que vendeu 100 exemplares na tarde de autógrafos. Um livro representa o auge de um exímio sonetista. As cinco coroas de soneto foram uma prova pessoal de superação, mas estimulam os seguidores a uma tentativa de reconhecimento mundial. O Grupo de Ação Cultural da Bahia chegou a fazer um pedido oficial ao Guinness Book para inscrevê-lo como recordista mundial de coroas de sonetos.

Para Cid Mascarenhas, um bacharel em Direito e funcionário aposentado do Tribunal Regional do Trabalho, mas que prefere se apresentar como fã e amigo de Bráulio de Abreu, há registros de outro brasileiro que conseguiu fazer apenas duas coroas e é considerado um fenômeno. A coroa é considerada uma filigrana da arte poética. Com seus 15 sonetos alinhavados, constitui uma vitória da persistência da inspiração.

Bráulio pede para o entusiasta Cid começar a ler os poemas, mas aos poucos os versos desabrocham na memória do centenário poeta. Cid Mascarenhas vê o carimbo da genialidade no protocolo poético de Bráulio. “Ele bate em Drummond, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Tem um poema, Mareante, que lembra Camões, sem exagero”. Bráulio de Abreu, o longevo poeta, que compõe sonetos de cabeça e quando senta para escrever já tem a obra pronta, persiste como o último dos parnasianos mesmo que o mundo esteja a cada século menos romântico. Como ele mesmo diz em um dos versos, “a velhice virá, que ela é a noite da vida”. No caso dele, a velhice veio iluminada por uma inspiração de Cruzeiro do Sul, o nababesco brilho de uma mente, uma constelação de talento que fulgura como o arco de um luar crescente.

 

*Reportagem feita em março de 2006

O que é Leocrete?

O maior fenômeno da dança na música baiana atual não é mulher como Carla Perez, tampouco homem como Jacaré

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Logo depois de conseguir definir o gênero do pronome apropriado, a conversa com Leocrete é capaz de fluir com bastante humor. A personagem pede pra ser chamada de ela, embora sua certidão de nascimento recomende um tratamento por ele. O que é Leocrete, questionam-se, neste momento, leitores entre botões, assim como se perguntam os baianos que nunca ouviram o sonoro e impactante nome e nem viram a figura que o acompanha. “O povo pede minha presença/ Eu tenho que aparecer/ sou eu a única bronzeada com azeite de dendê”.

Leokret: "também não me vejo mais como homossexual"

 

 

É o mais excêntrico integrante do grupo de pagode Saiddy Bamba e provavelmente o ser vivo vertebrado que mais desafia as regras de maleabilidade impostas ao organismo. Quando dança – Leocrete adora essa palavra –, torna-se uma verdadeira “fechação”. A história recente da música popular baiana, que já obedeceu à evolução calipígia de musas do rebolado como Carla Perez, Rosiane Pinheiro e Scheila Carvalho, agora se rende a uma reviravolta de padrões e conceitos. A fase dos bumbuns bem torneados muda para a do pó compacto necessário a encobrir qualquer vestígio de barba. “Eu sou fruto do pecado, pois o sol que bronzeou/ essa é a beleza incomparável que a natureza modelou”.

Difícil é definir o que é Leocrete, se nem ela mesma consegue arrumar uma categoria para si própria assim de supetão. Rejeita travesti, sob o argumento de não ter colocado silicone, nem tomado hormônio, “ser toda natural”, resumindo. “Homossexual também não me vejo mais, porque eu já estou fechando muito, já estou ficando mulher, mulher…” Nessa indefinição entre os conceitos mais conhecidos, ela inaugura um gênero próprio. “Olhe, meu amor, eu sou uma bicha diferente/ agora estou aqui, pode vir que a chapa é quente”.

Mamãe-sacode capilar

Mas continua a indefinição. O que é Leocrete? Ela não demonstra vontade de revelar o nome de batismo nem sob sérias ameaças de devastar sua indômita cabeleira que tanto preza como mamãe-sacode capilar em suas danças, num frenético vai e vem de cabeça. É uma pessoa mais próxima que revela o nome de Alecsandro Souza, que a dançarina não sente mais nenhum prazer em utilizar. Desde os 16 anos, adotou o nome, digamos, artístico como identidade principal.

A inspiração não teve nada relacionado com o fenômeno Lacraia, a oxigenada dançarina de gosto duvidoso que fazia o funk da eguinha pocotó. Foi um colega de sala no Colégio Central, chamado Tim, que, há uns quatro anos, aproveitou o apelido de infância, Léo, e uniu ao melhor trecho de sonoridade da palavra cretina. “Se você não viu e ainda não descobriu/ sou eu, meu amor, Leocrete, a cretina do Brasil”.

O que é Leocrete, um tipo de adesivo plástico, um golpe de luta-livre, um ser humano com família? Até hoje, ela mora com os pais, na mesma casa em Pernambués, vizinha ao bar que o velho mantém. Francisco Assis é dono de um estabelecimento badalado no Alto do Cruzeiro, o bar do Chico Baiano. Ele já foi um dos maiores incentivadores dos atributos rebolativos do filho na infância. Até os 8 anos, demonstrava orgulho com o garotinho se requebrando, chamava amigos e parentes para assistir.

Só que, aos 13 anos, Léo começou a “ficar molinho demais”, palavras dele próprio, enquanto abre um sorriso largo. Aí já era muita fechação para um dono de bar suportar. O pai gostava de ver o filho dançando, mas aos poucos começou a ficar preocupado. “Fui crescendo, fui crescendo, e ele pensando, esse menino está dançando até demais”. Seu Chico passou a proibir as apresentações, mas o artista saía escondido para os shows. Os conhecidos não faziam por menos e começavam a comentar: “seu filho, sua filha” está dançando ali.

Apesar da marcação cerrada do pai, Léo percebeu que precisava deixar o cabelo crescer para se encontrar com a própria essência. Ganhava o dinheiro para dar uma passada no barbeiro, mas negligenciava o corte. Para não deixar o pai desconfiar, usava um creme que minimizasse o volume dos cachos. Hoje, não sofre mais esse tipo de repressão e tem toda a liberdade para pintar unhas, fazer uma maquiagem leve pelos olhos, passar batom, usar pulseiras e colares, blusinhas justas no torso magro e sandálias com saltos de fazer tremer qualquer ortopedista.

Garupa da fama

Há um ano e meio, Leocrete saiu do anonimato relativo para uma meteórica ascensão no mundo das celebridades que vão até embaixo. Entrou no Saiddy Bamba como uma participante assídua dos ensaios na marina da Penha. Foi justamente na época em que o conjunto lançou uma música chamada Bicha, considerada ofensiva pelo Grupo Gay da Bahia. O vocalista Alex valorizava a fechação convidando para um remelexo no palco um dos fãs que fosse, assim, mais pra chiclete do que pra tiete. Algumas figurinhas sempre eram carimbadas, mas quem levava o público a um delírio sem distinção de raça, sexo ou método de depilação da sobrancelha era mesmo a cretina.

Terminou sendo contratada como integrante da banda e estreitando os laços com o GGB. A entidade desistiu de abrir um processo judicial, deixou de tachar a música como preconceituosa e passou a considerar uma homenagem. “Anotem, a criatura está com um pé no pop e outro no cult”, escreveu o artista plástico e membro de honra do GGB, Marccelus Bragg, em artigo que propunha apresentar o fenômeno Leo Kret (escrito assim mesmo) a uma agência de notícias GLS, no final de setembro.

Recentemente, Leocrete resolveu incrementar sua participação nos shows, entrando no palco na garupa de um motociclista. “Eu adoro uma moto, porque dá para empinar bem o bumbum na carona”, explica. Ela também cria os versos debochados com que introduz sua participação no palco. “Gostosa e sarada/ linda e deslumbrante/ tenho o corpo de sereia e o olhar muito excitante”

 

O plenário da Câmara sob seus saltos

Falando nisso, o que é Leocrete, em termos de morfologia? Aos 20 anos (embora aparente um pouquinho mais), tem 1,75m por onde se distribuem uns 62 quilos de massa (“mas coloque aí que são 55 quilos”). Um capítulo à parte no gongorismo visual que é a figura leocretiana está em sua sempre visível marquinha de biquíni. É uma linha esbranquiçada que desenha uma parábola nas laterais da cintura até o cóccix, denunciando uma tanguinha mínima, popularmente conhecida como fio dental. “É a menor marca de biquíni que existe”, vangloria-se. “Para manter esse bronze, eu nem posso ir mais na praia porque o assédio é muito grande. Prefiro chamar minhas amigas e tomar um solzinho na laje mesmo”, ensina.

 

Assédio masculino

Um cabeleireiro assistindo à exibição de seus morenos dotes, sempre favorecidos por calças de cintura baixa, não agüenta o estupor de sensualidade: “isso tudo é seu?”. Leocrete sorri de felicidade com mais essa injeção de auto-estima e, generosa, divide com o povo tanta fechação. “É meu e da Bahia”.

Para manter a privacidade, ela prefere não comentar muito a vida sentimental. Só que os mais próximos garantem que seu coração com sangue cor-de-rosa bate mais forte por um policial, com quem mantém um romance de relativa estabilidade com direito até a buscá-la na porta de casa.

Toda essa discrição, entretanto, é desmascarada quando o cantor Alex passa a narrar o assédio dos homens nos bastidores dos shows. “Velho, os caras são boa pinta, tô lhe dizendo, tudo malhado, bonitão, com namorada”, impressiona-se o vocalista. “Já chegam agarrando ela, tentando dar um beijo”, entrega. Sem esconder uma ponta de orgulho, Leocrete confirma que já viu até homem apanhando de namorada por causa de um olhar mais lascivo para a saracoteadora artista. “Mas cansei disso porque me sentia um objeto sexual”, garante.

Ela não esperava a mídia, a fama e o sucesso tão repentinos. “Está tudo dando certo em minha vida”, confirma, acentuando, marotamente, a conjugação do verbo dar. Aceitaria posar para uma revista desde que fosse “com um morenão ao lado”. E mantém o sonho de infância de apresentar um programa infantil. “Seria o Leocrete para baixinhos”.

Mas, afinal, o que é Leocrete? Mesmo depois de tantas palavras é muito difícil chegar a uma conclusão. Leocrete é uma pulsão de liberdade, um vulcão de simpatia e um desejo de ser feliz sem precisar incomodar nem ser incomodado. Tudo isso com um gingado e uma escandalosa marca de biquíni que são uma fechação só.

 

*Reportagem feita em outubro de 2006, antes de todos saberem quem é Leocrete e, principalmente, antes de ela ter verba parlamentar para custear as calças de cintura baixa

Papai Noel existe

Ele se chama Hamilton Macedo, mora numa invasão em Pernambués e já perdeu a esperança de que toda criancinha ganhe uma bicicleta

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

A bem da verdade, por um pressuposto jornalístico chamado factualidade, esta reportagem ficaria melhor posicionada se publicada no domingo passado, antevéspera de Natal, portanto com todos os assuntos convergindo para temas natalinos. Mas quão injusto seria tirar o gorro do Papai Noel justamente antes de sua glória maior que é o 25 de dezembro.
Papai Noel existe, sim, e dá plantão de até cinco horas por dia distribuindo conselhos e sorrisos para fotografias, ouvindo pedidos de uma infância que está tão distante do presente sonhado como uma rena do nariz vermelho está longe de aparecer voando no Largo da Mariquita. Durante todo o final de ano, o velhinho faz seu trabalho e depois despe o conjunto escarlate bordejado com algodão branco, veste uma calça jeans surrada e vai para a casa simples de três cômodos, na invasão Paulo Afonso, em Pernambués.

É nesse período de 45 dias entre meados de novembro e a última semana de dezembro que Hamilton Macedo consegue ganhar o sustento do ano todo. Trabalhando como o bom velhinho de aluguel, ele arrecada R$6 mil entre amabilidades na praça principal do shopping e a apresentação com o coral das crianças da prefeitura de Salvador. No resto do ano, é aposentado de sacar salário mínimo no fim do mês.

Há 13 anos, ele realiza o trabalho cada vez menos confortável em alimentar certas ilusões, sua cota de fantasias foi ficando pelo caminho. Quando trabalhava num shopping do centro da cidade, ficava constrangido em ouvir crianças falando que não tinham recebido presentes no ano anterior. “Eu ia fazer o quê, pegar o celular e fingir que ligava para a minha fábrica de brinquedos e depois avisar que ela tinha pegado fogo?”

As cartas para o Papai Noel continuam chegando, e muitas rabiscadas em caligrafia torta de pré-escola e uma lógica cartesiana: “Eu, Duda me comportei muito bem esse ano e queria ganhar um foguete, um pônei e um palhacinho”; “querido Papai Noel, por favor, queria ganhar um vídeo game, por favor, realize meu sonho”. E os pedidos se sucedem, raros em envelopes lacrados, muitos escritos em folhas de caderno, por crianças que saíram de bairros periféricos para a metrópole de seus desejos, que é justamente a casa do velho e cada vez mais inconformado Noel. Uma residência cercada de pinheiros enfeitados com bolas e luzes no centro comercial climatizado.

De todos, o mais comovente pedido ouvido por Hamilton neste ano foi de uma criança que se dirigiu a ele no ouvido e disse que não queria nada material, “só um pouco de paz em casa, pelo menos na noite de Natal”.

Monólogo

Papai Noel filósofo rascunhou anotações sobre seus anos de trabalho e entregou o arrazoado para um teatrólogo, pedindo para escrever o monólogo O Diário de Papai Noel. A única exigência dele é que incluísse um personagem psicólogo, com uma voz em off, que explicasse o tipo de frustração de uma criança que se sente enganada quando não recebe presente.

Hamilton quer também uma explicação para si mesmo, para o motivo de que tanto adulto procure por ele para uma foto. Imagina que a criança dentro do ser humano teime em jamais ser calada.

Ele faz a pergunta-padrão sobre o desejo de presente e uma menina com aparência de curiosa responde, mas logo em seguida questiona o motivo de ele não ter pedido o endereço. “Papai Noel não precisa de endereço, eu tenho um radar comigo”. O radar que Hamilton desenvolveu foi para as classes sociais que visitam seu trenó feito em madeira, forrado com veludo vermelho. Ele treinou a sensibilidade para saber o rendimento de determinada família a partir do aspecto da máquina fotográfica.

Aqueles que apontam equipamentos digitais estão num patamar cujos filhos provavelmente vão ter a meia na lareira premiada com um mimo. Outros usam modelos considerados ultrapassados, as chamadas máquinas pretas, que funcionam com filmes fotográficos.

A todo momento, Hamilton relembra sua teoria, apontando as famílias por suas câmeras. “Olhe a máquina, olhe a máquina”, insiste ele, quando quer mostrar que aquela mãe com dois filhos vem de origem humilde. Essa percepção antecipada modela o discurso que o velhinho vai adotar com cada garoto que pede um carrinho a controle remoto ou a menina que sonha com a boneca que fala 800 palavras. Seu Hamilton virou um obstinado pesquisador de preços em lojas de brinquedos, porque seu trabalho exigiu. Quando um moleque revela no ouvido do Papai Noel que seu sonho é ter determinada bicicleta, ele já mentaliza o valor de R$130 e, em seu cálculo instantâneo, decreta: esse aí não vai ter um Natal feliz. “Mais de 80% querem uma bicicleta, e mais de 80% destes não vão ganhar uma bicicleta”, resume, mostrando uma voz lamuriosa que insinua como deve ser frustrante ganhar a vida como Papai Noel em um país de profundos contrastes sócio-econômicos.

Pai de seis filhos em dois casamentos, avô de oito netos, Hamilton fica bem arrumado no vermelho intenso e caprichado da fantasia providenciada pelo shopping center. Ele mesmo se diz fotogênico e simpático, qualidades que acha decisivas para sua longevidade na profissão. Ele inspira confiança também por não ter nada de postiço, é original em barbas e cabelos longos e alvos. Só que não é daqueles idosos que já congelaram a libido na frieza de um pólo norte de sentimentos. Ele é capaz de sutis galanteios como dizer àquela jovem morena, aparentando 21 anos, de sorriso destacado nos lábios grossos que daquele jeito seu trenó terminaria virando uma agência de modelos.

Missionário da fantasia

No retorno para seu camarim, em fim de expediente, ele vai atendendo as crianças, já terminou o turno, mas está convencido de que ser missionário da fantasia é profissão de tempo integral, ainda mais quando está paramentado em vermelho, com direito a cajado dourado e tudo mais. Papai Noel é torcedor do Vitória e faz piada com um pai que pede foto da filha, vestido com camisa do Bahia.

As vendedoras de loja se aglomeram implorando pela foto que será a última da temporada 2007. “É que eu não tive infância”, justifica-se Sueli Andrade, 28 anos, antes de dar um abraço na cintura de geometria inflada do Noel. Ele repete sua insistente versão sobre o assédio: “eu sei que meu charme é irresistível”.

A Mamãe Noel Cinara é só felicidade porque ganhou o presente que tanto pediu: o fim do expediente. Ela já testemunhou pais insensíveis dizendo aos filhos, que nem completaram cinco anos, que Papai Noel não existe, mesmo com as criancinhas diante de um legítimo, ao alcance das mãos que puxam a barba natural cultivada há mais de 10 anos.

O ator Hamilton, que teve a chance de estrear na Globo no fim da década de 60, a cada ano precisa encenar melhor a figura dócil e amável porque está a um passo da desilusão. Sai de cena para animar uma festa particular e só depois confraternizar com a mulher em casa, na invasão Paulo Afonso, em Pernambués.

Entre tantos momentos frustrantes, ele se sente gratificado quando ouve frases do tipo: “eu sei que não é você que dá o presente, mas mesmo assim eu te amo”. Ou então quando recebe a visita de uma criança de 103 anos, como o velhinho que fez questão de tirar uma fotografia e lembrar dos sonhos de infância. É um consolo saber que Papai Noel existe e que, no ano que vem, tem mais.

Cem metros com bandeja

Na impagável Corrida dos Garçons teve de tudo: campeão querendo folga e espectador aproveitando cerveja quente

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Velocidade nas pernas tem nome: é o jamaicano Asafa Powell, de 23 anos, atual recordista mundial da prova de 100 metros rasos, distância que já percorreu em meteóricos 9,77 segundos. Agora, para tentar fazer o mesmo levando uma bandeja nas mãos e sem derramar uma gota de alguns copos de cerveja até mesmo Asafa pediria auxílio a um especialista. Ele é Apolônio Pereira dos Santos, 49 anos, com pelo menos 29 deles dedicados à profissão de garçom. Veterano no ramo, Popó, como é conhecido pelos clientes do restaurante Jardim das Delícias, no Pelourinho, tem a elegância de um dançarino de valsa com a vitalidade de um atleta olímpico.

Pelo menos, era isso que ele queria provar ao se inscrever entre os 53 concorrentes da II Corrida dos Garçons, realizada ontem na Avenida Oceânica, na Barra. Com a gravatinha borboleta impecável, a calça escura de linho e uma camisa com o número de sua inscrição (28), ele era o decano entre os competidores, um atleta master que ainda não pensa em pendurar as chuteiras. “Estou aí tentando superar essa juventude toda”, declarou, humilde, apontando para os adversários, cuja maioria tem metade de sua idade.

A resposta foi dada ainda no período de aquecimento para a grande prova, que virou uma atração peculiar na chamada Rua do Lazer, a iniciativa que transforma aquela região da Barra em um recanto para pedestres aos domingos. A partir daí, o que vai se ver é um cardápio reunindo atletas do bem servir em pequenas disputas pela consagração e uma platéia atônita, alguns gargalhando com a surreal competição na orla.

A primeira etapa é explicar as regras. A árbitra Sinai Lopes simplifica ao máximo para não criar problemas: quem chegar em primeiro, segurando uma bandeja com cinco latas de cerveja em uma mão e mantendo a outra mão atrás das costas, é o vencedor. Serão três baterias e os melhores colocados de cada uma delas passam para a final. Compenetrado, José Alberto Gomes da Silveira, funcionário do refinado japonês Soho, lembra de todo o equilíbrio que precisa exercitar para levar um prato de tempura aos seus clientes. “É muito difícil porque é tipo um leque alto de camarão e legumes. Aí, se bate um vento, cai tudo no chão”, avalia ele, que não esquece o tropeço infame que tomou quando trabalhava na Casa Oriental e resultou em Yakissoba espalhado por todo salão e um constrangimento que não tinha como limpar.

200 couverts

Próximo a ele, Jardel Batista Braga quer esconder o cansaço de quem trabalhou até 4h30 e apenas quatro horas depois já tinha despertado para disputar um lugar no pódio. A madrugada foi trabalhosa no Trapiche Adelaide, só ele servira 200 couverts. “Mas dessa vez, eu não quis deixar de participar. No ano passado, me inscrevi, mas não pude competir, porque cheguei atrasado”, sustenta o infatigável Jardel.

A organização da prova define que o percurso vai ter pouco mais de 100 metros no sentido Farol-Cristo. Nessa hora, entra em cena Edinei Lima, 29 anos, há seis como garçom do restaurante Nacif, no Iguatemi. “É preciso inverter a direção da corrida, por causa do vento”, avisa ele, também compositor de músicas de axé, já prevendo as derrapagens e vôos de latinhas. Edinei é atendido e falta pouco para o início.

Ao contrário dos corredores profissionais, que não abdicam de alongamentos nos momentos que antecedem a largada, a turma da bandeja aproveita para ajeitar a gravatinha e verificar se o sapato social pode derrapar na pista de asfalto. Nesse momento, o presidente da seção baiana da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), José Ronaldo Teixeira, começa a distribuir as latas de cerveja entre os concorrentes. A competição foi uma idéia de encerramento lúdico para o festival gastronômico Brasil Sabor, evento promovido simultaneamente pela Abrasel em Salvador e mais 70 cidades, durante cinco semanas. “O garçom é um dos principais atores de nosso segmento e faz o sucesso de qualquer gastronomia. Nada mais justo do que prestarmos essa homenagem”, elogia Teixeira, que providenciou uma televisão de 29 polegadas, uma bicicleta de 18 marchas e um aparelho de DVD para premiar os três primeiros colocados.

É dada a largada para a primeira bateria. Um dos competidores chega a perder os calçados, outro tropeça e derruba uma bandeja, três chegam empatados aos trancos e barrancos e um deles atropela uma jovem na linha de chegada. Tudo isso em menos de 15 segundos. O comerciante Luciano Magno, de Feira de Santana, que assistia a tudo atento, dá um sermão no seu candidato favorito. “Rapaz, você vinha bem, mas se desesperou e jogou tudo para o alto”, critica, falando para Edvaldo de Jesus, garçom da Companhia da Pizza, que ouve resignado.

Cerveja quente

Um outro espectador mais ágil incorpora a filosofia do “quanto pior, melhor”. Paulo Ramos, 65 anos, aproveita Marcos se desequilibrando, Juca tropeçando, Laércio comemorando, ou qualquer outra ação que tenha como resultado uma lata de cerveja caída no chão. Não importa a temperatura, se o recipiente rola pela avenida, ele vai atrás, avidez em pessoa, buscando a saciedade etílica. Antes, dá uma esfregadinha na camisa para tirar o excesso de areia, destampa a lata e bebe em goles generosos. “Cerveja boa é aquela na temperatura ambiente, ao estilo alemão”, saboreia, deixando escorrer um pouco do líquido por lábios e camisa.

Depois da segunda bateria, Marcos Paulo Souza Ramos, do Caranguejo do Sergipe, cobra dos organizadores um tira-teima, um replay, qualquer coisa que lhe dê o primeiro lugar. Segundo ele, o vencedor da prova não estava o tempo todo com uma das mãos para trás. Além dos gritos dos vencedores parciais e das reclamações aos juízes, a sonoplastia da corrida maluca tem a participação de uma charanga de nove músicos, comandados pelo maestro Veléu Cerqueira. A trilha sonora faz recordar sucessos do ufanismo desportivo: “Vamos todos juntos/ pra frente Brasil, Brasil/ Salve a Seleção”.

“A iniciativa é boa para mostrar que os restaurantes também têm atletas. E não apenas praticantes de halterocopismo”, brinca o bem humorado Sérgio Bezerra, dono do não menos irreverente Habeas Copos, o tradicional ponto de encontro de boêmios na Barra. Já os competidores não se entendem quanto as condições climáticas. Francisco Ednar, da pizzaria Quattro Amici, reclama da dificuldade de se equilibrar por causa do vendo, mas Carlos Augusto da Fonseca, do Bahia Café, garante que o vento sopra a favor dos mais talentosos.

O motivado Paulo Ramos deixa o papel de espectador imparcial de lado epassar a torcer fervorosamente pela derrubada de latinhas de cerveja, em uma apropriação literal da expressão “entornar o caldo”. Ele usa toda a sua sabedoria fermentativa para meditar sobre o grau de pureza da cervejinha. Como se fora um alquimista de botequim, requisita aos organizadores uma taça, dá uma lavada com água e despeja o áureo líquido para fazer considerações sobre a densidade da espuma e a ausência de bolinhas. “Isso é que é uma fermentação perfeita. Puro malte”, suspira.

De tão concentrado em sua filosofia de beberrão, ele nem percebe que Laércio Reider já ganhou o título de campeão geral, depois de menos de 30 minutos de competição. Funcionário do restaurante Grande Sertão, ele vai logo cobrar do patrão, coincidentemente o mesmo José Ronaldo Teixeira, um prêmio tão valioso quanto a TV de 29 polegadas que levará para casa. “E aí, chefe, vão ser quantos dias de folga mesmo?”

Depois de subir ao pódio (sem direito a estouro de champanhe), ao lado Francisco de Sales (restaurante Pereira), Renato Silva (Cheiro de Pizza) e Carlos Augusto (aquele ajudado pelo vento), Laércio precisa atender a imprensa em uma coletiva de improviso. Manda um recado para seus fãs, Laércio: “Aos patrões, agradeço a oportunidade. A todos os garçons, desejo felicidades e que treinem mais para o próximo ano”. Isso mesmo, sem falsa modéstia. E, se na próxima edição, esses eternos coadjuvantes da gastronomia produzirem um menu tão divertido quanto o da corrida desse ano, vale até cobrar ingresso na forma do popular 10% de gorjeta.

Pensador sem lar

Morando na rua há quase dois anos, Carlos de Albuquerque se dedica a uma filosofia própria de aversão ao trabalho e aos banhos

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

De todos os escritores de Salvador, nenhum tem tanta dificuldade para tomar um banho. De todos os moradores de rua da capital, não se encontraria outro capaz de lidar tão bem com emails, ou citar algumas das principais teorias do papa americano da auto-ajuda, Dale Carnegie, no best seller mundial Como Evitar Preocupações e Começar a Viver. Para Carlos de Albuquerque, normal é dormir no Largo dos Aflitos todas as noites e vagar pela cidade, andando até seis horas por dia, com uma mochila de 20 quilos nas costas. Normal é uma parada cultural obrigatória para ler jornais na Biblioteca Pública dos Barris. Anormal é fazer o asseio corporal com água e sabonete ou então conseguir reunir, ao mesmo tempo, três cédulas de qualquer valor na carteira onde guarda seis canetas e documentos, jamais uma nota de 10 reais.

Carlos Alberto de Albuquerque, um moreno cabeludo de corpo esguio, com 34 anos e meio, gosta de se definir como um artista andarilho, mas está próximo de um filósofo nômade, uma espécie de ouvidor da escumalha, poeta dos sem-teto. Com uma confessada aversão a duas das principais instituições da sociedade ocidental (o emprego e o banho), ele garante que seu estilo de vida é uma opção pessoal. Mais do que isso: é uma resistência à opressão do sistema. “Não quero me render ao sistema e arrumar um trabalho. Quando eu quis, não achei, agora não quero”, rebela-se. Sobre a parte menos cheirosa de sua filosofia anti-capitalista, ele é ainda mais sucinto: “E quanto aos banhos, eu gosto é de facilidade, não quero complicação. Quando tinha água no Passeio Público, eu tomava de oito em oito (dias)”, revela Carlos, que pode ficar muito bem passando até 30 dias sem enxaguar os longos cabelos ou minimizar a murrinha das andanças cotidianas.

Só que Carlos de Albuquerque está além de um exótico indigente, pouco afeito às obrigações da carteira assinada e aos frescores de uma chuveirada. Primeiro, não gosta de ser chamado de mendigo, porque não vive por aí pedindo dinheiro, no máximo esmola um pouco de atenção para os seus escritos. Ele escreve com regularidade – e raros erros de português – mistos de ensaios e crônicas com o fundo de análise social. Os temas escolhidos vão desde a obsessão pela pontualidade (constantemente frustrada na Bahia) até o papel social das ligações a cobrar, passando pela banalização do aplauso (“eu mesmo já me senti constrangido, ao ter que aplaudir um evento que não tocou na minha emoção”) e desarmamento, corrupção e sonegação fiscal.

Críticas da construção

O conjunto da obra composta por 11 textos rendeu uma edição própria intitulada Críticas da Construção. O volume, editado com durex para colar as folhas e cópias xerocadas de páginas de computador impressas, tem preço de R$6, mas não serve para dar vida ao inexistente orçamento de Carlos. “Não saio por aí vendendo na rua. Apenas ofereço às pessoas mais chegadas, que sei que podem gostar”, desconversa.

O dia para Carlos de Albuquerque, um homem avesso a obrigações e a receber ordens, começa às 5h30, quando acorda no batente da sede da Delegacia do Ministério da Agricultura, no Largo dos Aflitos. Com a chegada dos primeiros funcionários, o sono dele é interrompido. A solução é mudar de cômodo para a pracinha, onde termina de repor as energias até umas 8h. Depois do repouso, carrega a sacola (antes eram duas mochilas com roupas e pertences) para o café da manhã, oferecido na ladeira de Santana pelos seguidores de Nair Saback, que fornecem refeições para moradores de rua. Em seguida, ruma para o setor de periódicos da Biblioteca dos Barris, onde se atualiza com os jornais do dia (“Adoro um noticiário”). Como hábito, checa emails em um dos três pontos favoritos: a Sala do Cidadão, no SAC do Shopping Barra, o projeto Tabuleiro Digital, da Faculdade de Educação da UFBa, ou a loja Sanchy Serviços de Informática, que ele considera uma espécie de mecenas. Dos três, opta mais pelo shopping, porque depois do compromisso intelectual pode usar o banheiro para atender aos apelos físicos digestivos. “Costumo dizer que sou patrocinado pelos shoppings Barra, Center Lapa e Piedade, pois eu só uso os banheiros deles”, brinca Carlos.

No Lapa, por exemplo, o trajeto dele já é conhecido pelos seguranças. Entra, folheia alguns volumes na livraria Civilização Brasileira e depois vai sempre ao banheiro do primeiro andar, porque morador de rua também tem direito a eleger o troninho preferido. Na hora do almoço, costuma aproveitar a caridade de alguma igreja ou simplesmente não come. À tarde, procura mais um lugar para ler ou então uma sessão cultural grátis, como a exibição de algum filme na sala Alexandre Robatto. “Assisti recentemente Cazuza e me identifiquei muito”, confessa. De noite, não abre mão da sopa servida no Saback. Mais tarde, vai em busca dos eventos sociais mais badalados, que previamente selecionara nas colunas sociais.

Entre celebridades

O desejo não é tanto pela oportunidade de uma boca-livre, mas para estar em contato com “as pessoas que produzem nesta terra”. Nesse circuito da elite, Carlos leva junto o mochilão e nenhuma solenidade. “Fui no lançamento do livro de Sidney Quintella e até pedi desculpas a ele por não poder comprar o livro. Mas já tomei um impeachment numa festa de Lícia Fábio. Também… era no Soho”, entrega o bem humorado sem-teto.

A vida de Carlos Alberto de Albuquerque nem sempre foi uma sucessão de travesseiros de pedra e refeições por caridade. Filho adotado de uma família em Brasília, ele levava rotina de classe média. Nunca foi bem nos estudos (repetiu algumas vezes a 3ª, 6ª e 8ª séries do ensino fundamental e o 1º ano do ensino médio), mas era considerado inteligente, apesar de desatento. Possivelmente a vocação errante tenha surgido aos sete anos, quando a primeira filha legítima do casal nasceu e ele começou a ser preterido.

Com o fracasso nos estudos interrompidos antes da conclusão do secundário, arrumou serviço na construção civil, depois se alistou no Exército e até chegou a virar um promissor vendedor. “Em três semanas, passei de 14º a 4º em vendas”, diz, sobre a temporada em uma loja de tecidos em Brasília. “Mas depois de 26 dias, pedi demissão. Meu negócio não era aquele”, reitera o antigo pretendente a uma vaga de promotor de vendas em consórcio de carros, por achar “que dava status”.

A chegada a Salvador teve ainda uma viagem para São Paulo com apenas R$3 no bolso e uma época como morador em Feira de Santana, na Feira do Rolo, local onde “só andava bicho solto”. A vinda para a capital fora motivada pela necessidade de cantar em um trio elétrico. Cantor profissional, com cadastro em entidade de classe e tudo, Carlos ainda pensa em realizar o sonho. Chegou a concorrer ao troféu Caymmi em 2003, época em que ainda morava em um albergue público. O auge da carreira artística ainda não chegou, mas ele vai se enturmando aos poucos com a fama. Já foi figurante em espetáculo no Vila Velha, fotógrafo amador e cantor de bandas sem repercussão.

Com sua inteligência sem CEP e a erudição sem endereço para correspondência, ele até antecipa a resposta para a pergunta sobre o que as pessoas vão pensar de sua vida. “Que eu sou um vagabundo, essa sempre é a primeira impressão. Mas não tenho medo do que podem falar, para mim o importante é o registro”, desafia. As dificuldades da rua são muitas, só que Carlos tem um ar profético em sua obstinação. “Estou agüentando firme, sem me corromper. Não bebo, não fumo, não uso drogas”. E como se encerrasse um de seus textos impressos artesanalmente, ele resume um pouco da experiência de vida que optou para si. “Sou ajudado, mas também ajudo. Não financeiramente, mas com palavras e conselhos. Virei um psicólogo autodidata”. Assim como os livros de auto-ajuda que ele gosta de ler, não há como negar: Carlos, com todo o trocadilho possível, propaga qualquer ramo da psicologia barata.

O Rei da pamonha

Genivaldo Santana Guerreiro faz arte tentando vender os bolinhos que fabrica com dois filhos

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Salvador tem pelo menos dois auto-intitulados reis da pamonha. O primeiro (não por critério de antiguidade de reinado, mas por ordem de divulgação institucional da marca) se expõe em placas de publicidade, dá nome aestabelecimento comercial e tem até filiais espalhadas por postos de gasolina na cidade. O outro vai tentando conquistar o título literalmente no grito. Com a ajuda de dois dos quatro filhos, Genivaldo Santana Guerreiro percorre a cidade em uma trilha diária de negócios mascatais e apresentações mambembes para vender, até o início de cada noite, 500 bolinhos de milhos ou carimã.

A parte comercial do seu trabalho é evidente. Com a ajuda de um megafone, ele divulga suas delícias itinerantes dispostas em dois panelões metálicos que não pesam menos de 20 quilos. Um deles vai na cabeça do próprio Genivaldo como coroa de esforço e superação. O outro é conduzido pelos pequenos em um carrinho de feira. A parte artística de sua estratégia é demonstrada sempre que pára em um local com muito potencial de clientes.

Monarca do gênero de marketing plebeu, Genivaldo adaptou a palavra pamonha para uma dúzia de letras de músicas as mais populares possíveis. O melo da Eguinha Pocotó, por exemplo, virou: “Vou levando uma pamonha/ Pra titia e pra vovó/ Só não posso esquecer/ Da pamonha da vovó”. E não se trata apenas da letra de uma versão cantada a lapela com o megafone, tem também o coro infantil, coreografado como se fossem lacraios da indústria de comidas típicas. “Pra vovó/ pra vovó/ pra vovó/ pra vovó”, repetem Lucas, 14, e Rogério Guerreiro, 10 anos, cavalgando na sela imaginária de um eqüino nervoso.

Com essa breve e pouco detalhada descrição já é possível imaginar o tipo de comoção pública provocada pelas intervenções do trio no meio da rua. No Parque São Brás, na Federação, os moradores acodem às janelas dos prédios de três e quatro andares, como se estivessem saudando a Família Real embalada em palha de bananeira. Em uma praça do bairro de Tancredo Neves, fazem um círculo para aplaudir e pedir um petisco (R$0,50 o de carimã, R$0,70 o de milho). No trecho do Terreiro de Jesus e Praça da Sé, os turistas tiram fotos, sorriem, mas dificilmente abrem a carteira, e os funcionários do Centro Histórico compram a pamonha como lanche, mas sempre pedem a cortesia de um show especial.

 

Repertório de sabor

Genivaldo e seu principado têm ensaiadas mais de 20 músicas, preferencialmente recriações de pagodes baianos e canções de arrocha. Uma delas foi inspirada na obra chamada Guitarra Chorona, uma campeã em pedidos de bis ao grupo Novo Ton. “Êta menina chorona/ Quer pamonha para merendar/ Mas quando tô aqui ele não quer/ Chora menina pra ela comprar”. Ou então o pagodão Uisminorfay, cujo refrão virou simplesmente: “E quem não vai? Você vai perder… E quem não for? Você vai comprar”.

Com essas composições coreografadas, mais do que clientes, o humilde rei da pamonha vai ganhando súditos. “Agora que eu comprei a pamonha, posso ouvir um arrocha?”, suplica o protético Vítor Campos da Silva, em plena Praça Municipal. Em frente à Cruz Caída, um grupo de paulistas não entende muita coisa daquele trio vestido com uniforme nas cores de uma espiga de milho. Só depois de ouvirem um dos hinos à pamonha, eles decidem experimentar. “É gostoso, mas acho que engorda”, preocupa-se a psicóloga paulistana Sônia Regina Silva, entregando o acepipe para a filha depois do segundo pedaço.

Para garantir o sabor do produto, a família real pamonhal trabalha muito unida. A fabricação é própria e os três costumam dividir as tarefas na linha produção da iguaria. Praticamente todos os dias, Genivaldo vai na feira de São Joaquim às 5h45 para garantir a compra da carimã fresca (“o milho eu até encontro fácil, mas carimã só de madrugada”). No retorno, os meninos já estão a postos para fazer a mistura que envolve cravo e açúcar mascavo. Enquanto isso, vão treinando o repertório, numa passagem de som de olho no fogão.

 

Olhares tristes

As crianças aprimoram os passos sinuosos das danças e os refrões que entremeiam as músicas. Ficam a tal ponto condicionados que mesmo quando o pai está recitando a letra para que seja copiada (e não propriamente cantando), eles reagem automaticamente (“Olha a pamonha tá quentinha… aiiii”), completando uma estrofe. Lucas e Rogério dizem gostar do que fazem e demonstram realmente um ímpeto de artista quando atuam. Mas não dá para explicar os olhares tristes de ambos, mesmo quando sorriem timidamente. O menor, Rogério, na simplicidade dos 10 anos, quando perguntado sobre o que planeja ser adulto, surpreende: “quero ser igual a meu pai, fazer o mesmo que ele”.

Genivaldo começou vendendo água gelada na Feira de São Joaquim com 15 anos. Para se destacar na babilônia de ambulantes, passou a abordar fregueses com frases inesperadas, ou até mesmo usando um nonsense para produtos tão baratos: “aceitamos vale-transporte, cartão de crédito e ainda parcelamos em 120 dias sem juros, sem consultar SPC nem Serasa”. O estilo inovador foi sendo adaptado para cada novo item comercial da sacola de Genivaldo. “A criatividade foi o único caminho que achei para sobreviver. E esse Jesus que indicou”, responde. Hoje, aos 36, precisa se mexer para conseguir a renda que sustenta os quatro filhos (além de Lucas e Rogério, Patricks e Jefferson) e mais os quatro da rainha com quem mora há cinco meses.

A casa própria no bairro de São Cristóvão, ele considera como um palácio. “Trabalhei seis meses com carteira assinada, em empresa de serviços gerais, e nunca consegui sair do aluguel”, relembra Genivaldo, “foram as pamonhas que deram minha casa”. Depois de conquistar o domicílio, falta muito pouco para a realização completa, já que o trabalho está dando para sustentar “as oito bocas e ainda pagar água e luz”. Ele não vê a hora de ser realmente protagonista de propagandas na televisão. Alguns convites até surgem, mas nada se concretizou. E o desejo mais forte é gravar um CD com as composições que estimulam apetites e sorrisos nas ruas por onde o trio passa, desde Cajazeiras até o Campo Grande.

As músicas já estão prontas falta só a verba para a gravação ou então a intervenção de um produtor artístico que queira sair da dieta dos talentos descartáveis. Quem sabe depois dessa Genivaldo e seus filhinhos amestrados não ganham um novo trono e passam conquistar súditos não mais pelo estômago e sim pelo ouvido?

Decifra-me

Adenilton Pereira Ramos não move um músculo para sobreviver e ainda tem que agüentar tapão na cabeça calado

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Aos nove anos, quando perdeu o pai que mantinha uma família com 10 filhos em Camacã, no sul da Bahia, Adenilton Pereira Ramos ouviu de muita gente que iria precisar se mexer para ajudar no sustento dos irmãos. Abandonou os estudos na 3ª série primária, tentou a carreira como lavrador mirim a exemplo dos irmãos, mas em pouco tempo percebeu que o talento estava justamente em não mover um músculo para conseguir trabalhar. Desde criança, Adenilton descobriu a habilidade para algo que não sabia nem o nome, mas que consistia em imitar uma estátua com o máximo de fidelidade pétrea.

A vocação aprimorada em festas infantis virou passaporte para um trabalho itinerante, desempenhado nas ruas de Recife, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e, desde o ano passado, Salvador. A inércia programada de Adenilton é muito bem recompensada. Para ficar imóvel durante sete ou oito horas por dia, ele ganha até R$700 por semana dos passantes que ora se espantam, ora se divertem, com sua performance minimalista em frente à Santa Casa de Misericórdia, na Praça da Sé.

Vem Adenilton andando do Pelourinho na companhia de outro artista de rua, o palhaço Pitombinha. Caminha em trajes que lembram uma espécie de andróide de ficção dos anos 50, totalmente pintado de prata e com a pele coberta por purpurina do mesmo tom. Para compor o personagem, gasta um frasco do pó metálico a cada três dias, um investimento de R$7, que vira R$70 no final do mês. A conversa sobre amenidades, típica de quem tem 24 anos, dura só o suficiente para ele montar o palco de seu show solitário.

Um cartaz no chão pede a cumplicidade de transeuntes para a chamada Arte Estática. Um cilindro de metal induz às contribuições. Quando Adenilton coloca os óculos esportivos com lentes totalmente espelhadas que não permitem saber para qual lado olha ou se está piscando, ele emudece e trava. Uma interpretação de mármore, em que até a respiração é uma coadjuvante indesejável.

“Olha a estáuta”

Geralmente, pode ficar intervalos de até 20 minutos sem mover os dedos da mão esquerda sempre apoiados em nada ou sem nem mesmo aparentar que usa o diafragma para inspirar e expirar. Aproveitando a sombra vespertina oferecida pelo prédio da Santa Casa de Misericórdia, ele aguarda a passagem de algum curioso. O menino Gabriel, de cinco anos, aponta: “mãe, olhe a estáuta (sic)”. A doméstica Selma Santos Figueira sorri e aposta com o filho que aquela “estáuta” se move. Coloca uma moeda de 10 centavos no cilindro e o som da nica parece despertar o artista de sua imutabilidade de quem olhou para medusa.

Adenilton realiza uma coreografia robotizada com os passos de Moonwalker, imortalizados por Michael Jackson, para o êxtase infantil do menino Gabriel. Depois de 10 segundos de movimento e o conseqüente recolhimento à posição estática, o garoto oferece à mãe todas as moedinhas guardadas no bolso da bermuda para que o espetáculo seja repetido.

A desempregada Tereza Viana dos Santos, na dúvida dos 62 anos, também paga pra ver se está diante de carne e osso ou de matéria inanimada. “Do mesmo tempo, parecia uma pessoa. Do mesmo tempo, parecia uma estátua. Fiquei em dúvida”, admite, ainda com a expressão incrédula de quem testemunha a aparição de um óvni ou a redução nas taxas de impostos. “Ai, ai, a gente andando é que vê as coisas”, completa.

Com seu ofício que é o oposto de andar, Adenilton também tem descoberto novos horizontes. Já conheceu as principais capitais do país e recebeu convite de uma turista para se apresentar na Itália. Também foi sondado por uma loja de eletrodomésticos da Avenida Sete de Setembro para trabalhar em frente da vitrine. Mas a oferta não teve nada de tentadora. “Trabalhar o dia todo para ganhar R$15? Às vezes, eu consigo R$50 só em uma tarde aqui”, confidencia ele, que envia para a família em Camacã até R$500 por mês.

Solidariedade de baiano

De todos os lugares que já visitou, Salvador é considerada a cidade mais acolhedora. “Não são os turistas que me prestigiam mais, são os baianos. Tem gente humilde que não tem o que comer e tira da boca para me ajudar”, reconhece. E mesmo com essa comovente identificação, ele pensa em mudar para Brasília depois do carnaval. Planeja passar lá o último ano de trabalho até a aposentadoria anunciada. Adenilton tinha decidido largar o ofício aos 25, em grande parte por causa dos problemas de pele provocados pela constante cobertura da purpurina. Os danos foram até minimizados depois que descobriu um creme protetor que usa antes de se banhar de brilho.

Só que ele permanece com o plano de mudar de vida. Acha que daqui a 12 meses terá juntado dinheiro suficiente para montar uma lojinha de confecções e óculos, comprar um terreno e fazer uma casa para a família em uma zona mais afastada do centro de Salvador. Por enquanto, ele aluga um quarto de pensão no Taboão, por R$10 a diária. Quando tem companhia feminina, o valor dobra.

Aliás, é digno de curiosidade saber como é o flerte de quem passa metade do dia útil estacionado em uma mudez solene. Adenilton não se queixa da falta de parceiras, avisa que o exótico desperta um fetiche feminino, mesmo sem dizer exatamente com essas palavras. Durante sua performance, é fácil comprovar. Uma jovem toca na mão esquerda do mímico de um coma, como se estivesse em sintonia com o “decifra-me ou devoro-te” da Esfinge. Faz duas carícias para se certificar de que é humano e depois sorri, antes de ir embora. O repórter comenta para o artista: “é assim que começa, não é, pai?” E ele agüenta o sorriso de orgulho e balança um milímetro da cabeça para responder afirmativamente.

Mordida de formiga

Do outro lado da rua, o segurança Dil Edson Santos de Jesus, que trabalha há um mês no The Dubliner´s Irish Pub, vê cenas parecidas todos os dias. “Tem sempre umas turistas que gostam de ficar imitando ele, ou crianças que se assustam quando ele se mexe”, relata Dil, que é um dos principais parceiros de conversa de Adenilton, quando este pára de trabalhar, depois das 18h.

Só que nem tudo é paquera e controle respiratório no cotidiano deste intérprete da impassibilidade. Às vezes, o calor é muito forte e com o suor escorre metade da maquiagem do rosto. Às vezes, uma formiga dessas da cabeça grande e preta, sobe pelo tênis, entra pela calça e dá uma ferroada que exige resistir sem dar um tapinha na perna ou um gemido de dor. Às vezes, tem também algum espírito de porco que passa, dá um cachação na nuca e sai correndo, sem que a “estátua” esboce uma reação para não comprometer o profissionalismo. Mas o pior mesmo foi quando um rapaz aparentemente interessado no trabalho, aproveitou um momento de total concentração e levou todo o dinheiro e documentos de Adenilton, que nem se mexeu – nesse caso, mais pela surpresa do que por sua tendência a incorporar o espírito de soldado da Guarda Real do Palácio de Buckingham.

Estes fazem parte de uma exceção. A maioria dos que conhecem o trabalho reage com admiração e respeito. Como os operários da montagem de andaimes do carnaval, que toda vez que passam com uma kombi pela Praça da Sé costumam dar uma parada para depositar uns trocados. “Ele é gente boa e faz um trabalho decente”, justifica José Bispo, depois de saltar rapidamente da Kombi. Adenilton, velho conhecido do pessoal, não responde com palavras. Faz apenas uma mímica especial andando até o grupo, ou concedendo um aperto de mão mecanicizado.

Sem esboçar ressentimento, o gari Roberto Rodrigo Santos, conduzindo uma lixeira com rodinhas, constata: “ele ganha dinheiro parado, eu tenho que correr atrás”. Está claro que Adenilton só concede entrevista antes de iniciar o trabalho. Por último, ele quer saber se o jornal circula no estado todo. Se chega, por exemplo, até a região de Porto Seguro, onde moram os parentes. Chega, sim, e com o exemplar vai a história de paralisia e silêncio de Adenilton. Sem sair do lugar, esse artista vai é longe.

Ensaio sobre a lucidez

Edmundo Roberval Leite, 101 anos, toma cervejinha, trabalha normalmente e parece que tem a metade da idade sem entregar a fórmula da juventude

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

No mundo perfeito, Edmundo Roberval Leite e seu mais de século deimperturbável profissionalismo mereceriam uma manchete de jornal a cada ano, uma página impressa com foto e um laudatório da sua trajetória, apenas para reverenciar a vitória do bom humor de uma existência sobre a carrancuda face daqueles que têm a alma envelhecida, um espírito juvenil que é recheio etéreo da pele a cada dia mais enrugada e do corpo que se dobra em si mesmo, oprimido pela gravidade do tempo. Com uma disciplina de estagiário que tenta segurar o primeiro emprego, seu Edmundo inicia o dia no metódico café da manhã seguido das obrigações de escritório, que são organizar as carteiras de seguro de quase 70 clientes, verificando pendências, vencimentos e fazendo contatos com a filial para checar dados, um trabalho todo realizado no primeiro turno do dia, no próprio apartamento no Garcia, lendo e conferindo os dados de cada um anotados por seu próprio punho em uma caderneta com caligrafia detalhista. Há quase 40 anos, ele se dedica à venda do chamado seguro de ramos elementares, aqueles que envolvem incêndios, automóveis, transportes e acidentes pessoais, já que, como veterano na atividade, não mais lhe interessa os seguros de vida, estes sempre “muito chatos e trabalhosos”, que exigem o convencimento do cliente com tal e qual vantagem, este ou aquele benefício e, numa idade dessa, já não valeria mais a pena ficar gastando o latim ou qualquer outro idioma para depois não ter o sucesso de mais uma apólice assinada, porque as estatísticas estão aí para mostrar que a maioria recusa implacavelmente, não importa se o vendedor cheira a leite ou se já tem os vincos da sabedoria estampados na cara. Por isso que o decano desse segmento de fregueses precavidos resolveu apostar nos bens duráveis como produtos que merecem cuidado especial dos donos e assim tem clientes que fazem o carminho inverso ao natural e o procuram para renovar ou fazer pedidos de orçamento. Há mais de 60 anos, dedica-se a esse ramo da corretagem e, com 101 anos de idade, que vão se transformar em 102 em agosto, ele é o mais antigo profissional da área no Brasil, provavelmente um dos mais antigos profissionais de qualquer área em atividade na Bahia. Virou aposentado, mas não vagabundo como dizia um ex-presidente da República, em 1968, quando migrou para outra empresa e tem recebido homenagens pela carreira de maratonista laborativo, enquanto a maioria das pessoas planeja uma trajetória profissional de velocista, finalizada com a linha de chegada de uma aposentadoria aos 50 e poucos, a corrida oposta ao do obstinado Edmundo e seu fôlego de quem está disputando um decatlo dos corretores. Na comemoração dos 100 anos, em 2005, ele recebeu um coquetel de presente da empresa, a multinacional AGF, que alugou um salão do luxuoso hotel Blue Tree Towers para reverenciar a dedicação sem prazo de validade do funcionário que, para efeitos de reconhecimento sem o pejorativo de terceira idade, foi chamado de mais experiente pelo próprio presidente nacional da companhia, que levou seu exemplo para além fronteiras. Quando precisa, o centenário trabalhador sobe num ônibus pela porta dianteira, direito adquirido pela idade, e desembarca na rua mais próxima da filial da firma em Salvador, no bairro da Pituba, menos por obrigação de cartão de ponto e mais para tarefas que exijam sua presença ou, por que não admitir, rever colegas, ouvir histórias recentes e  render um novo capítulo para seu dia.

Amor de insistência

Estas visitas no escritório só não são mais freqüentes por causa da influência da companheira de Edmundo, dona Edite Chaves de Jesus, hoje com 56 anos, 18 destes convivendo com o personagem secular desta narrativa, que acha por bem ele levar um cotidiano mais doméstico sem se expor aos males e desventuras desta urbanidade que está aí cheia de riscos e insegurança. Ela faz questão de dizer que não proíbe o marido de sair de casa e nem regula sua programação diária, mas garante ficar muito mais à vontade quando está por perto ou sai acompanhado de alguém, na maioria das vezes, ela mesma a pajear as andanças, porque seu Edmundo gosta mesmo é de estar em contato com o mundo, de preferência, caminhando. Só que esse anseio de estar na efervescência da vida mundana é cada dia mais frustrado pela violência que o colocou como vítima de quatro assaltos nos anos mais recentes, situações em que os bandidos sempre levam alguns trocados e deixam um saldo de susto, arranhões, quedas e ameaças, e é isso que preocupa dona Edite e que frustra seu Edmundo, impossibilitado de um passeio até o Comércio, reduto principal das velhas amizades (no melhor sentido da palavra velhas).  Com sua calça de sarja ajustada um pouco mais alto do que a cintura, a aparência tranqüila e simpática de um senhor que passaria por septuagenário ativo em qualquer retiro de idosos, a dicção sem falhas de magistrado da vida, o diálogo sem presunção que combina com aqueles que colheram sabedoria, os cabelos ralos da maturidade, ele troca as experiências com a mulher que tem quase a metade da idade e foi conquistada na melhor fórmula de romance do velho Edmundo: “a insistência sempre vence a resistência”. Ela, uma funcionária da loja de calçados onde o patrão contratava o seguro do corretor, este cada dia mais presente e afetuoso, cheio de frases de galanteador e convites para jantar, que permaneceram estéreis durante pelo menos oito anos, uma das mais longas histórias de sedução que se tem notícia fora da literatura clássica. No início, o relacionamento com uma mulher tão mais jovem foi contestado pelos parentes dele (a filha mais velha de Edmundo nasceu mais de 15 anos antes do que a madrasta), só que agora dona Edite já está de tal forma agregada à família que é capaz de desdobrar toda a árvore genealógica do patriarca: são seis filhos vivos, 15 netos, 24 bisnetos e dois tataranetos. A primeira esposa tinha 16 anos e ele, 26, quando casaram para um matrimônio de mais de 40 anos, interrompido pela morte dela, vítima de um atropelamento fatal. Bem antes do embarque definitivo no trem da saudade, ela já tinha passado por um drama médico, em que fora desenganada pelos especialistas aferrados a um diagnóstico de mais alguns meses de vida em função de uma cirrose hepática, e o marido nunca admitira a possibilidade de perda sem esgotar todos os esforços, porque é justamente desse tipo de insistência, muitas vezes considerada desmedida, que se nutre o verdadeiro amor. E Edmundo, antes um ortodoxo em termos de religião, aceitou a idéia de procurar uma senhora analfabeta que diziam incorporar o espírito de um médico muito famoso em vida, e a dita senhora mandou logo que cortassem o antibiótico da mulher porque estava fazendo mal, sem ao menos conhecer a paciente ou o caso. No dia seguinte, o médico desconfiou que o medicamento recém-lançado estreptomicina estava desencadeando um processo alérgico, pediu a suspensão e, para encurtar a conversa, o melhor é dizer que a esposa ficou totalmente curada depois de umas sessões com a tal entidade que usava o corpo da analfabeta para cometer suas cientificamente inexplicáveis proezas. A partir daí, Edmundo trilhou o caminho do espiritualismo, procurando a descoberta do oculto, a crença na imortalidade da alma e na reencarnação como forma de purificação e melhoria do espírito, uma vereda rumo ao inacessível que levou até a maçonaria, a sociedade guardiã de segredos por excelência. Dona Edite, declaradamente “católica apostólica romana”, sempre que tem uma oportunidade questiona os mistérios da maçonaria, mas não ouve respostas do marido, um atento observador de memória prodigiosa, capaz de recordar os nomes de navios bombardeados na Bahia durante a II Guerra Mundial, os locais alvejados por tiroteios em Salvador durante a Revolução de 1930, as baixas no bombardeio à capital em 1912. Em seu século de acúmulo de conhecimento, aprendeu muita coisa, menos a dirigir, porque sentiu uma tremedeira na primeira vez ao volante, estréia tardia como motorista, depois dos 70 anos, ele que sempre utilizou meios de transporte tradicionais, como o bonde em que pongava na mocidade para ir lá e acolá. A memória intacta e a lucidez admirável são contrates para a surdez que uma cegueira branca e leitosa do ouvido (como a moléstia visual dos personagens de Ensaio sobre a Cegueira, do romancista português José Saramago), minimamente compensada por um aparelho auditivo que não recupera totalmente as capacidades de ouvir e por isso temos que falar num volume um pouco mais alto que o tradicional para o diálogo acontecer em seu fluxo de perguntas, respostas e comentários que não são nem um nem outro. O certo é que Edmundo assinou mesmo a apólice da longevidade, mas desconversa sobre os segredos da bem aventurança, diz que “a fórmula é ser feliz”, tomar uma cervejinha de vez em quando, e integrar partidas intermináveis de baralho durante mais de 10 horas ininterruptas no fim de semana, enquanto dona Edite completa que um eletricista que trabalha no apartamento já pediu para ser convidado no aniversário de 125 anos. Todo mundo quer participar das próximas páginas de existência do corretor de vitalidade, parágrafos escritos em dignidade de uma longa vida, parágrafos de longa sabedoria de uma vida jovem.

O fantasma vivo de Ondina

Samuca, o indigente sem identidade, sem passado e sem futuro, está há tanto tempo vagando que ninguém mais o enxerga

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Samuca é um senhor negro de aparência cansada e um olhar orbitando entre o nada e o lugar nenhum, que jamais foi visto sem um paletó puído e encardido, sempre transitando pelas vielas de Ondina, no máximo andando até a Barra. Samuca não mais se comunica pelos métodos tradicionais, parece ter desistido de falar e a maioria das pessoas desistiu também de perguntar a ele. Não se sabe sobre a origem e o passado dele. Sem nome nem sobrenome, Samuca é um fantasma a quem se referem com certo carinho e um pouco de compaixão, do mesmo jeito que Gasparzinho (também sem nome e sobrenome, só com um apelido) também é um etéreo camarada.

Samuca perambula envergando seu paletó esfarrapado que algum dia foi bege. Sempre desconfiado, não aceita a aproximação despretensiosa de ninguém, mas também não costuma reclamar com palavras. Simplesmente, muda de local, sai do ponto demonstrando uma insatisfação por ser seguido. Está quase sempre fumando um cigarro que alguém lhe deu no outro turno, ou que ele mesmo comprou com algumas moedas dadas em gratidão.

De manhã bem cedo, ele bate ponto numa delicatessen da Avenida Ademar de Barros para tomar café. À noite, ele volta e os funcionários já sabem que ele quer um pão e uma xícara de café quente. Muitas vezes, alguém oferece um sanduíche e ele recusa. Outras vezes, apenas aquiesce com a cabeça e emite um grunhido para dizer que aceita o favor.

O leitor mais atento vai sentir falta das aspas com declarações de Samuca, tudo reflexo da mudez irredutível de nosso personagem. Falar é até desnecessário com tanto recado que ele consegue dar em seu idioma peculiar de escapista. Em mais de 40 anos a girar mesma região, Samuca é um espectro de boatos. Uns juram que já foi muito rico e se revoltou com a vida burguesa, outros garantem que ele era um dedicado estudante de medicina que perdeu o equilíbrio de tanto decorar anatomia e diagnósticos de doenças. Samuca não dá respostas, apenas continua andando.

Cão sem dono

Errante mas disciplinado, como se fosse um doberman sem dono, ele anda muito e sempre. E quando não está caminhando, fica agachado, recolhido em uma introspecção muda. São inúmeras as lendas urbanas que rodeiam essa entidade. “Cada um conta sua própria história”, confirma Andréia Araújo dos Santos, caixa há um ano e três meses em um dos estabelecimentos em que ele dá o ar da graça. Alguns afirmam existir parentes seus em São Lázaro, outros dizem ter visto familiares dele na Boca do Rio. Um vendedor de caldo de cana divulga que ele viu a mãe sendo estuprada e ficou traumatizado. Já Álvaro Barbosa, o dono de um carrinho de cachorro-quente, garante que ele era um secundarista aplicado que chegava da escola por volta do meio-dia, quando testemunhou o assassinato dos pais por um carro em alta velocidade. Daquele dia, virou um nômade na paisagem.

É o esmolé que tem o orgulho para rejeitar caridade. “Se ele já estiver com uma carteira de cigarro e alguém oferecer mais um, nega na mesma hora”, jura Álvaro Barbosa, 54 anos. Só que às vezes tem uma necessidade orgânica que o impede de manter a fleuma. “Se ele estiver sem nada, aceita até a guimba do cigarro”, completa Carmelito Souza, 50 anos, dono da banca de revistas onde o surrado Samuca às vezes chega com duas ou três moedas para trocar por algo para fumar.

A vida de Samuca é também um passeio por Ondina, bairro residencial com o fluxo contínuo de estudantes. Acompanhar seus descaminhos é uma descoberta da geografia do bairro. É invadir a rua Baependi e depois trilhar pela orla dos hotéis de luxo, passando por restaurantes e agências bancárias. É ficar tranqüilo sob uma arvore na rua Macapá, ouvindo os pneus de carros chacoalhando no calçamento de pedra. A avenida Ademar de Barros é seu lar e uma amendoeira é seu teto. Em outros momentos, prefere dormir na Sabino Silva, não se sabe o que o faz mudar de um dia para o outro.

É capaz de ficar uma hora fitando o movimento de veículos no rush do fim de tarde. Samuca caminha vagaroso, a passos de quem não tem destino. O paletó de ombreiras largas dá ao corpo a geometria de um quadrilátero. Recorta uma caixa de papelão e recolhe um papel laminado do prato de marmita sujo. Com aquele, vai fazer um colchão fino e inútil. Com este, produz uma espécie de relógio sem ponteiros mas brilhante, ou uma coroa. Por essas e outras, já foi eleito por alguns fãs como pioneiro na reciclagem.

Fãs virtuais

No site de relacionamentos Orkut, a comunidade Todo Mundo Conhece Samuca contava com 960 usuários na última semana de abril, todos fãs do “mendigo mais chique do Brasil”, alguns com oito anos de idade, outros com mais de 50. Os tópicos são diversos como A idade de Samuca, Onde Samuca passa o carnaval, Quase Atropelei Samuca, Samuca Campeão Corredor. Só que o mais comentado, com quase 80 opiniões, é O Passado de Samuca.

Cada um consegue uma interpretação mais incrementada para essa incógnita que se revela tão incômoda como o assassinato de John Kennedy. O estudante Eduardo Pontes, 19 anos, criador da comunidade: “Eu sei que cada prédio tem sua teoria do passado de Samuca que é passada para frente pelos moradores mais antigos, ou pelos porteiros e zeladores. A mais famosa do meu prédio conta que Samuca era um garoto rico que deu uma festa enquanto os seus pais viajavam. Após fazer o uso de drogas nessa festa, ficou totalmente sem noção e acabou indo para as ruas, mais tarde ficando maluco.”

Lá na frente, outro diz que ele era excelente professor de matemática que ficou maluco depois de corrigir tanta prova. Um mais ufanista garante que ele foi combatente na Guerra do Vietnam e que não agüentou ver tanta carnificina.

O universitário Marcelo Kubli Vieira, de 21 anos: “O motorista da minha vó disse que conhece Samuca faz anos. A história que ele me contou é que Samuca trabalhava como cobrador de ônibus e era um homem direito e trabalhador. Mas aí ele teve um caso com a mulher do chefe dele, que resolveu espancar o pobre Samuca até ele ficar doidão do jeito que ele é.” Cada qual faz a aposta mais absurda para o evento que transformou para sempre a vida deste anônimo em um passado de sombras e um presente de migalhas.

Funcionário padrão

Seu Ângelo, um espanhol que era o antigo dono da delicatessen, uma das pessoas mais próximas a Samuca, certa vez contou para uma funcionária que ele era caixa de uma padaria no Chame-Chame. O estabelecimento faliu e “de uma hora para a outra, ele fundiu a cabeça”. Já dona Maria José, que está pagando o pacote de pães cacetinhos, discorda. Ela ouviu dizer que o problema dele foi de uma paixão fulminante por uma antiga moradora da região. Como não foi correspondido, resolveu largar os parâmetros de vida comum para algo sem juízo e sem razão.

O porteiro Manuel Borges dos Santos trabalha há 18 anos no mesmo local, tempo suficiente para ter a convicção de que estamos falando de gênio incompreendido. Argumenta que ele é bom de cálculo e tem a noção exata dos dias da semana, dos feriados, principalmente. “Se você perguntar o que significa o dia de hoje (21 de abril), ele te dá uma aula sobre Tiradentes”, garante Manuel, na certa esquecendo que Samuca dificilmente articula um diálogo. A empregada doméstica Nuzinéia Santos há 16 anos serve um café para Samuca, a pedido da patroa, que mora no condomínio Costa Cavalcanti. Dele, nada ouve, mas também não diz nada.

Um tempo atrás, segundo os poucos que ainda se interessam pelo enigma que é a vida de Samuca, ele foi atropelado. Ficou quase dois anos em tratamento no Hospital Juliano Moreira. Quando se recuperou, indicou como endereço para o motorista da kombi a rua onde sempre fica, hóspede do relento. O carro parou ali, em frente da padaria, Samuca saltou sem dizer adeus e lá ficou. A versão para essa história muda de acordo com o narrador. Para uns, não foi o Juliano Moreira, mas sim o HGE. Para outros, não foram dois anos, mas alguns meses. Por fim, tem aqueles que dizem que Samuca nunca foi atropelado, apenas é recolhido de tempos em tempos para uma assepsia geral. “Nessas horas, ele volta novinho, com aparência boa e cheiroso”, jura Fernando Silva, gerente da delicatessen onde ele é assíduo beneficiário.

A enfermeira Moni Melo deu o depoimento mais lúcido da comunidade do orkut. Ela garante que conhece Samuca desde 1970, quando começou a estudar no Instituto Social da Bahia, ainda criança, e via sempre aquele senhor de cara amarrada, mas vestido numa elegância de dar gosto. Quando ela começou a fazer estágio no antigo Hospital Geral, no Canela, terminou atendendo aquele que sempre foi tema de suas especulações juvenis. “Ele sofre de esquizofrenia, doença que afeta as funções cerebrais e desconecta o paciente da realidade. Ele ia sempre para o HGE por conta de bronquite, piorada pelo cigarro. Nunca deu trabalho para as equipes medicas ou de enfermagem quando ficava internado. E como sempre, de repente, ele sumia…”, narra.

Sem passado e sem futuro, seu perímetro é um território onde os estudantes passam fazendo chacota. Várias gerações se acostumaram a fazer dele o alvo preferencial de sua falta de limites: Samuuuuuca, gritam. Enfezado, ele reage com algum palavrão, num dos poucos episódios em que é capaz de falar. Um balconista confirma que ele nada diz, nada esclarece. A esse incomum personagem juntou-se um estudante universitário que, semanalmente, aparece com uma máquina digital para, também solitário, registrar fotografias do indigente, sem que ele perceba.

Samuca está ali na frente do mercadinho, sentado e roto, como se fosse um vira-latas sempre acuado. Dona Fifi passa por ele e cumprimenta: “Samuca, meu amigo, boa noite”. Ele não responde, parece não ligar. Continua a mexer em um pedaço de papel velho, como se sua vida dependesse exclusivamente do fato ficar despercebido aos olhos do mundo.

*No dia 17/08/10, a seguinte atualização sobre a vida de Samuca, por email:

cara, é o seguinte…eu vi seu texto sobre samuca e resolvi deixar esse recado aqui..vi samuca 1 hora da madruga, de terça feira, dia 17 de agosto sozinho(como sempre) no meio da avenida oceanica (totalmente deserta) andando debaixo de chuva…cara, samuca precisa de ajuda de todos os moradores da ondina! deixei um recado na unica comunidade que achei sobre ele
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=80047697 (pode clicar não é virus não)
 
to te mandando esse e-mail pq realmente fiquei bastante sensibilizado com a cena, e acho que nessa época em particurlar, ele deve ta precisando mais ainda de ajuda…com roupas, sei la…e resolvi te mandar esse e-mail pq ao colocar o nome de Samuca no google, apareceu a sua materia,e como eu achei muito completa, inclusive com contatos de pessoas que estao no dia a dia dele… acho que  assim podemos ajudar o velho Samuca ne?
 
abraços
Kadu Veiga
Ator