O berço da civilização encara a crise: Paris continua uma festa

Vista do Trocadero, a torre Eiffel e sua imponência
Vista do Trocadero, a torre Eiffel e sua imponência

Mendigos pedindo esmolas em três idiomas, garçons com o sutil mau humor contra o sotaque dos turistas, frio e imponência no topo da Catedral de Notre Dame: o que é novidade e o que continua clássico nas ruas da França

 

Pablo Reis* (pabloreis@gmail.com)

Paris, final de outono, garrafas de vinho discretamente compradas em supermercados por brasileiros ficam ao ponto de servir simplesmente colocadas na sacada do hotel. Parisienses nos balcões continuam impacientes, sempre atrasados para o cliente seguinte, sempre apressados para atender o próximo com um falso sorriso inicial de bonjour, seguido de uma cara decepcionada se você não responder em francês fluente. Parisienses são orgulhosos, sim, mas quem não seria tendo uma legítima cidadania francesa?

Franceses são caricatos. Todas as manhãs e fins de tarde saem de boulangeries com uma baguete de 1 Euro sob o braço. Franceses são inesperados. Cantam em grupos musicais solfetos ucranianos na estação do metrô. O coral é envolvente com sete senhores bigodudos que não descansam a voz, emendando um repertório que encanta japoneses, londrinos, americanos, indianos e… brasileiros. Sim, brasileiros, eles são muitos – como turistas, ou como trabalhadores, entrando no metrô, reclamando alto sobre patrões exigentes que moram em Montparnasse e nunca parecem satisfeitos com a forma com que cozinha e banheiros são arrumados.

Paris, a pequena capital com 104km2 (basta saber que caberiam sete delas em Salvador), se agiganta em atrações, em uma grandiosidade secular, no Arco do Triunfo majestático, no Obelisco brilhante, em seus monumentos de bronze que douram rotatórias como se fossem cerejas de bolo no meio de um trânsito nervoso. O trânsito, ele que logo na chegada ao Aeroporto de Orly é apresentado por um taxista na tela de um aplicativo para iPhone, como vários pontos vermelhos entre um mapa da cidade. “Terrific”, alerta o motorista no fim da tarde cinzenta e fria, para depois justificar o motivo dos 70 euros até um hotel perto da Champs-Elysées. O caos no tráfego apontado por ele é quase nada diante do congelamento de veículos em Salvador em toda manhã e início de noite de qualquer dia.

Transporte e arte

Qualquer turista de primeira viagem seria seduzido pela carona inflacionada do taxista, justamente por não conhecer o sistema de metrô

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O mendigo e o Rio Sena: contraste adornado por um cãozinho protegido pelo frio

mais eficiente e bem servido da Europa. Na França, a malha subterrânea de trens e estações é o equivalente em perfeição logística ao que um croissant equivale em perfeição gastronômica. Uma folheada nos mapas oferecidos no aeroporto em pelo menos oito idiomas (português incluído) é como um supletivo sobre como se movimentar pela Cidade-Luz. Sem atrasos, sem esperas e, provavelmente, com algumas surpresas artísticas. São 350 licenças disponíveis para apresentações no metrô e a seleção dos melhores certamente não faria feio na série TCA.

Só que não apenas apresentações de música, mímica e artes plásticas são os benefícios extra transporte das galerias de metrô. Atualmente, elas também servem como o refúgio um pouco mais aquecido para os novos desvalidos de Paris. Uma pobreza que não está apenas escondida nos subterrâneos, mas também espalhada por ruas como parmesão polvilhado em uma baguete. Os mendigos acompanham turistas em dois ou três idiomas ou até mesmo em uma mudez e imobilidade só explicada pelo frio que paralisa em final de outubro. Eles podem estar em algum ponto turístico ou protegidos das intempéries em vagões de metrô, de onde nunca saem para enfrentar o frio e as calçadas menos confortáveis do que uma poltrona. Eles quase sempre estão acompanhados de um cachorrinho de estimação, protegendo-se mutuamente do vento gelado, migalhas de solidariedade compartilhadas.

Les miserables

Victor Hugo, o vibrante ícone da literatura francesa, vivo estivesse, não ficaria nem um pouco orgulhoso da versão moderna e quase onipresente de “les miserables”. O dado mais recente, de 2008, alerta que 8,5 milhões vivem na pobreza na França, mas a estatística sequer alcança a recente crise econômica da Europa. A taxa de desemprego no país de De Gaulle subiu um ponto percentual em 2012, de 9,6 para 10,6, o que dá quase 7 milhões de pessoas. No Brasil, em 2012, o desemprego teve uma taxa de 5,4% da população ativa.

Turistas na Champs-Elysée: a redenção para os franceses
Turistas na Champs-Elysée: a redenção para os franceses

O desafio para o presidente socialista François Hollande, considerado um defensor da austeridade, é melhorar a empregabilidade, sem acirrar a xenofobia. Os desempregados franceses representam 8,7% do total, enquanto os estrangeiros somam 15,10%. Economia, seus altos e baixos, as propostas do parlamento e um debate entre socialistas e extrema direita continuam os temas sérios preferidos em noticiários. Os franceses estão a um passo de recapitular uma decisão de 10 anos atrás, quando a jornada média semanal do trabalhador foi reduzida para 35 horas. Agora, eles estudam o retorno para as anteriores 39,5 horas semanais, ideia que os defensores vendem como uma forma de criar mais competitividade dentro da zona do Euro.

Não só a França, como as nações vizinhas, estudam alternativas para remodelar a dinâmica produtiva. Até porque um fantasma continua rondando a Comunidade Européia e ele atende pelo nome de libra esterlina. Os jornais econômicos, como o Market Money, insistem em afirmar o interesse crescente no Parlamento inglês pela saída do Reino Unido da Eurozona.

O olhar externo dos franceses, quando apontado para o outro lado do Atlântico, entretanto, só enxerga Estados Unidos da América. Uma nação muito interessada nos primos americanos, que levam divisas com o turismo e também nomeiam importantes logradouros em Paris. Em uma edição do prestigiado jornal de debates e opinião Le Monde, as manchetes tratam sobre os estragos do furacão Sandy na Costa Oeste e sobre o novo apartheid na sociedade estadunidense, com a minoria dos ricos, contra latinos, desempregados e assalariados. Antes do resultado da reeleição de Barack Obama, o noticiário de televisão dava um acompanhamento completo sobre a disputa contra Mitt Romney, com mais ênfase do que uma intensa discussão criada a respeito de auto medicação e dos efeitos nocivos e/ou inúteis dos remédios na comunidade francesa.

Câmera escondida

Na televisão, informação sobre violência é praticamente nula, afinal, após um fim de semana o máximo de crime ocorrido é a morte de um homem na região metropolitana, aparentemente vítima de um disparo acidental de um amigo (nota registrada em legenda de um telejornal). Câmeras escondidas são usadas para investigações bem mais importantes na visão do francês, por exemplo, a qualidade e o sabor dos pratos servidos em cafés e restaurantes. Críticos gastronômicos participam como detetives de atrações em que são convidados a desbravar, como clientes anônimos, os cardápios alheios, sempre apontando falhas que seriam criminosas… contra o paladar.

Todos os olhares para a Mona Lisa: a musa da sala 6 do Louvre
Todos os olhares para a Mona Lisa: a musa da sala 6 do Louvre

Do mesmo jeito que estão na mira de franco-degustadores, os chefs também são tratados como estrelas. Na receita turística de Paris, a gastronomia tem seu panteão, como a Torre Eiffel e os bâteaux mouches Rio Sena. Cozinheiros são personagens de perfis na imprensa ou garotos-propaganda, embora a crise financeira na Europa tenha obrigado a uma adaptação em carte & menus. Restaurante a quilo continua sendo uma heresia aos deuses do petit gateau, mas a formule midi (uma combinação de entrada + prato + sobremesa + bebida) é uma espécie de buffet econômico na hora do almoço. Pode sair por 20 ou 30 euros para o turista, com direito até a uma carne moída compactada em círculo, entre duas fatias de pão que alguns franceses decidiram nomear como hamburger.

Uma comida popular ruim, quase insípida, em contraponto com uma alta gastronomia para apetites moderados e bolsos recheados. Os chefs ganham fotos grandes em revistas e referências a trajetórias de muitos sabores. Enquanto isso, as garrafas de água têm sabor estranho a um brasileiro – um paladar menos refinado chamaria de salobra -, seja Vichy ou Evian.

Há controvérsias sobre o gosto da água, mas o que não entra em discussão é o bom gosto do berço da civilização ocidental. Os olhos do mundo continuam voltados para a Mona Lisa, ela ali, tímida, miúda no meio de uma parede com quatro metros de altura e três de largura, bem na mira de centenas de turistas que se alternam a cada minuto na sala 6 da ala Denom do Museu do Louvre, reservada a pintores italianos e espanhóis. Enquanto isso, todo o Palácio Real e o jardim tulleries que servem de abrigo ao museu mais diversificado do planeta esperam ser desposados pelos milhares de visitantes ávidos, usurpadores de tumbas, vilipendiadores medievais, plebeus que tocam alcovas de reis e rainhas, devotos da arte sacra. O Louvre, esse grande templo que exige fôlego para desbravar e onde você sabe como entra, mas não imagina como vai sair, enriquecido, ou diminuído diante da imponência da arte.

Luxo, antídoto para a crise

Contra a crise, a França responde com o imperecível valor da cultura, a mesma commodity que pode resgatar o país de um terreno movediço de concordatas e execuções hipotecárias em que os vizinhos men

Cultura à francesa: livros deixados para os próximos leitores no banco da praça
Cultura à francesa: livros deixados para os próximos leitores no banco da praça

os prestigiados estão se enterrando. O glamour das grifes em Champs Elysées continua estampando nas vitrines de Cartier, Louis Vuitton, Hugo Boss. E é provável que ele resista a qualquer possível rebaixamento dos fundos de investimentos internacionais. Tudo porque alguns valores em vigência parecem imemoriais. Mesmo com crise, pobreza e falências, em Paris ainda se pode alugar bicicletas. Elas são retirad

as em logradouros públicos com o depósito de uma simples moeda de 1 Euro. E elas sempre terminam devolvidas para o lugar.

Civilidade, encantamento, adoração. Quando uma missa de domingo vira uma peregrinação de fiéis ou curiosos de cinco continentes até Notre Dame, está claro que ali não se respira apenas religião. É a atmosfera do sagrado, em termos espirituais e artísticos. Paris é a cidade dos amantes, justamente porque a primeira paixão que se experimenta é por ela própria.

Desolação no frio: enfrentando 5°C, idosa pede dinheiro nas ruas de Paris
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* o jornalista não viajou a convite de montadora de veículos, rede de hotéis, marca de cosméticos ou de alguma estrela da axé music