OS BAIANOS – Arioste, o atleta gentileza

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Quem vê na manhã da orla de Salvador, Arioste Jorge Fér Farias acenando a esmo, ao largo de um engarrafamento insalubre, atravessando com sorrisos a animosidade dentro do ar condicionado veicular, sente primeiro uma surpresa. A surpresa vem primeiro e é seguida –“sim ele está mesmo fazendo aquilo e, não, ele não é maluco” -, seguida por um sentimento de que as coisas vão dar certo.

Ele acena a esmo: gentileza em ação
Ele acena a esmo: gentileza em ação

Arioste, o atleta gentileza, oferece pílulas da vitamina da cordialidade contra a acidez da metrópole. Lá vai ele praticando a ginástica da bem aventurança, esta que exige mais do coração do que qualquer combinação de halteres, destes muito caros nas academias dos duros como pedra. Esportista da amabilidade, dispõe de séries capazes de dissolver os reumatismos dos rancores, amenizar as hipertensões emocionais, suavizar as isquemias de testas franzidas e aquecer as expressões faciais hipotérmicas.

A viatura da Rondesp, com quatro temidos militares da tropa de choque da polícia baiana, passa e dá duas buzinadas marotas. Arioste fica o mais ereto possível, estende perpendicularmente a mão direita na testa e presta uma continência solene de quase um minuto que só um cidadão de bem poderia imitar. Os agentes da lei seguem sorrindo. A cena pode ocorrer 3 ou 4 vezes numa mesma manhã e em todas elas Arioste irá repetir o gesto de almirante da boa vizinhança. Com um aceno, um sorriso proteticamente branco, uma saudação de meu sobrinho, ele vai oxigenando espíritos do mesmo jeito que as artérias fazem com os tecidos.

Arioste Jorge Fér Farias, 66 anos, engenheiro mecânico, há 13 anos aposentado pela Petrobrás, com uma receita de bem viver. Desde jovem, achou que fazer exercício diariamente seria um dogma, “como se fosse algo acachapante, quer dizer, indiscutível”. Para ele dogma é dogma, princípio inquestionável. Tá com febre, tá gripado, tá achando que de tão fraco vai morrer hoje, então aproveite e se exercite antes de bater as botas. Assim é o pensamento dogmático do Arioste de sorriso generoso.Arioste7Arioste6Arioste5

Ao longo do trajeto, entre Jardim de Alá e Aeroclube, que ele cumpre sem pressa (o caminho vale mais que a chegada), vai recebendo um “saudade” por ali, um “bom te ver” por cá. Esteve afastado uns dias, fez falta, mas nem sempre foi assim.

Ele chegou às caminhadas na orla disposto a conduzir uma aposentadoria produtiva e saudável. Diz que encontrou no semblante das pessoas a “fisionomia compungida”, os “rostos pesarosos de quem pecou”. Logo ele, que acredita que os “beneplácitos” da caminhada devem ser feitos “com júbilo”, para que se torne uma pessoa virtuosa e feliz. As pessoas passavam e não se cumprimentavam. Logo ele que gostava de “espargir alegria”.

Passou a acenar, chamar a todos de sobrinhos, sorrir sempre. Não foi simples e redentor como um filme de Woody Allen. Andava com passinhos de marcha atlética, alongando panturrilhas, quase nas pontas dos pés para estimular o “coração periférico” que fica na batata da perna. Convenhamos que não é uma forma de locomoção das mais másculas. Só que ele encontrou três jovens fortões, altos, que passaram olhando para baixo e falando para ele só falta um sutiã para completar o personagem. Ele reagiu da forma que convém reagir quando se trata de uma provocação por três fortões altos de academia: com uma frase de Pablo Neruda. “Não há de ser nada, até as flores mais delicadas, resistem aos ventos mais agressivos”. Eles continuaram nesta zombaria de macho alfa, mas 48 horas depois retornaram. E desta vez para pedir desculpas.

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Arioste acena para a saúde. Gosta de ter uma boa alimentação, que seria uma alimentação “comezinha, simples”. (“Não é que eu goste de usar as palavras difíceis, mas é que são as palavras certeiras”). O marido de dona Valquíria há 45 anos, com quem teve duas filhas e duas netas, resolveu fazer um check-up no dia 6 de novembro de 2012. Foi ao Hospital Espanhol achando que faria um exame e sairia dali direto para um chopinho no Shopping Barra.

Já tinha feito exames anteriores, cujo teste de esforço, ele traduziu como um recado do coração: “Arioste, eu tô bem, mas você está mandando pouco sangue e oxigênio para mim. Posso não aguentar”.

Era próximo do Natal e pensava em festividades, vinho tinto, canapés. Por isso não quis logo fazer a intervenção cirúrgica. Só que naquele dia não teve mais como sair. Operou no dia 22 de novembro, pontes de mamária, safena e revascularização cardíaca.

Enquanto isso, uma pequena comoção ocorria neste ambiente em que cliques são confundidos com doações quando uma campanha foi iniciada na internet para formar uma boa reserva de sangue que garantisse segurança cirúrgica. Dos milhares prometidos, chegou às dezenas de doadores.

Nada contra o atleta gentileza, mas é que as pessoas são hábeis e rápidas a se comprometer com o virtual sem se dar conta que é preciso uma contrapartida real. Assim, por exemplo, talvez se submetendo a uma seringada.

Operou dia 22, recebeu alta 29 de novembro, três meses depois de uma cirurgia invasiva, já estava de volta ao calçadão. Retomou os exercícios em um domingo anterior ao carnaval 2013, recebido com festa, homenagens e camisas comemorativas.

Foram 13 anos para se tornar uma unanimidade no calçadão. Se antes ele tentava romper a indiferença com golpes de ternura, hoje recebe tudo de volta em acenos, abraços, afagos, apertos de mão e meneios de cabeça pelos mais reservados. Derrotou a indiferença que parecia inatingível no pódio dos corredores da orla. Você olha Arioste, o atleta gentileza, em ação e tem aquela surpresa. Imediatamente depois, você já sabe que tudo vai dar certo.

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VIDA DE INSETO (capítulo 2)

A saga dos minúsculos seres em uma jornada de sobrevivência silenciosa e anônima. Uma visão ampliada, em alta definição e singular beleza, das trilhas muitas vezes ocultas pelas solas dos calçados humanos. Foco ampliado na grandiosa epopéia biológica e social de espécimes que se tornam heróis de um intricado quebra-cabeça de ecossistema.