O segredo de Jayme Figura

O que estará por trás daquela máscara de metal enferrujado: um artista querendo ser cult, um indigente, ou apenas um atormentado com armaduras para se proteger da maldade mundana?

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

 

Jayme Figura é uma imagem negra e metalizada que transita pelas ruas de Salvador há um quarto de século e é visto, temido e apontado por boa parte das crianças que brincam no Passeio Público, dos aposentados na Praça da Piedade e dos alternativos que se jogam madrugada adentro nos Barris ou no Largo Dois de Julho. É conhecido em toda Salvador, embora a expressão conhecido seja mais um exagero, uma figura de linguagem para dizer que alguém sabe a quem se está referindo.

O que menos esse andarilho esdrúxulo quer é ser conhecido, mas isto não significa que ele sonhe com o anonimato. De toda uma cidade que o avista e até pára diante de seus passos firmes de desbravador alienígena, ninguém sabe dizer nada a seu respeito, além de futilidades como a necessidade das unhas do seu pé serem apresentadas a uma manicure, ou o fato de andar por aí mudo e sequer responder a um bom dia para não ter a voz identificada. Afinal, ninguém conhece Jayme Figura.

O mundo não se interessou em saber que, dentro do ateliê declaradamente bizarro que possui, vizinho às escadarias da Igreja do Carmo, Jayme jaz – isso mesmo, ele jaz – dentro de um caixão, um móvel que ele mesmo fabricou e carinhosamente chama de sarcófago. E que seu melhor amigo é Billy, um gato pé-duro de coloração escura (como tudo em sua vida tem trevas), que se aproveita das rações espalhadas pelo cômodo caótico de sua vida, considerado um exímio felino na arte da traição. O melhor é que sobre isso tudo Jayme discorre de forma tão empolgada que torna o papo muito interessante de ouvir. “Billy é um traidor, alisou aí, ele logo me esquece. Mas eu coloquei ele aqui não pra pegar rato. Botei pra fazer parte da interação espiritual. Gatos são muito sensíveis. Ali mesmo é o meu sarcófago, onde durmo. O espírito mandou que eu relaxasse num caixão e deitasse minha carne. Se eu me cansasse, que já ficasse por lá”, conta, emendando assuntos, falando com a oratória do tribuno de um espectador só.

 

Jayme de cara limpa

Jayme Figura está à vontade no que restou de seus domínios no térreo de um sobrado no Centro Histórico. Está tão à vontade que se permite tirar um dos elmos que usa, feitos com metais que recolhe dos detritos e impedem a sociedade de conhecer a sua face humana. Antes de abrir a porta, ele pede licença por dois minutos e coloca o capacete cheio de perfurações. Apenas para não correr o risco de ser surpreendido pelos passantes. Dentro de seu império do bizarro, protegido por grades, panos na porta e uma iluminação débil de gambiarra, ele deixa o rosto à mostra. Só que o véu nunca será totalmente descoberto.

Assim como o protagonista do célebre perfil que o repórter Joseph Mitchell escreveu para a revista The New Yorker em duas etapas (em 1942 e em 1967), O Segredo de Joe Gould, Jayme é um personagem cheio de mistérios que guarda um grande segredo sob suas tiras de borracha, correntes, alpercatas de pneu carcomidas e ferragens. Para muitos, uma indumentária reciclável, feita em delírios de ficção científica com baixo orçamento. Para ele, a extensão do próprio corpo, que aumenta seu sacrifício cotidiano em mais de 35 quilos. “Não consigo viver sem isso. Sempre busquei essa proteção”, esclarece, olhando para as lanças pontiagudas sustentadas por seus ombros. “Isso tudo representa a cruz que eu tenho que carregar”.

Há perguntas simples que podem se transformar em tabus para o artista plástico que não consegue vender um quadro há anos e que pode gastar até dois quilos de tinta para concluir uma tela. Na rua, ele é interceptado por um admirador anônimo que pede para ver o rosto e recebe uma negativa. Em seguida, o homem questiona se ele usa sempre a mesma roupa e qual a periodicidade dos banhos. Em um raro momento a que se presta a um diálogo, Jayme desconversa: “sobre essas coisas, me reservo ao direito de não comentar”.

Capacete metalizado, armadura: do que a Figura se protege?

Ele prefere mesmo discorrer sobre projetos artísticos. A sua oficina lembra a senzala de uma criatividade, escombros da guerra travada entre ele e ele mesmo. As paredes descascadas, muito barro na parte de dentro, tudo lembra uma gruta que se recupera, em lento processo, da devastação de um ciclone. Jayme tem dificuldades para comprar a própria alimentação (faz refeições no restaurante Prato do Povo, ou pede frutas na Feira de São Joaquim), quanto mais deixar todo o ambiente dentro da ordem que estabeleceu para transformar tudo em um templo do grotesco.

Nos desenhos do projeto arquitetônico e cultural, ele concebeu uma instalação em que demonstra, no papel, uma engenhosidade de erudito. Bolou uma estrutura de ferro que serviria como sua caverna suspensa, por onde poderia se movimentar sem ser visto por visitantes. Escondido, ele ficaria pintando um tecido que rolaria para a visão dos apreciadores.

Jayme agora se vira para arrumar pisos e argamassa para tentar transformar as paredes e o teto em um branco glacial, numa limpidez que não combinaria, a princípio, com seu estilo de gladiador. Seria para dar mais ênfase ao aspecto bizarro da obra, como se a casa toda se tornasse uma moldura.

 

Personalidade dupla

Jayme vive sempre naquela dicotomia típica dos superheróis, que se digladiam internamente com identidades díspares, com uma imagem pública de mito e a biografia que nenhuma relação tem com sua epopéia. Um dos sete filhos de um casal negro e pobre de Conceição do Almeida, município próximo de Santo Antônio de Jesus, a 150 quilômetros de Salvador, mudou-se criança para a capital. Estudou em escola pública no Alto do Peru e chegou até a fazer desenhos para agências de publicidade, época em que tinha dinheiro, prestígio e até carro do ano. Casou, teve filhos e até hoje mantém a família em um apartamento de conjunto popular (quatro famílias por andar) em bairro periférico.

Há um pai e marido que está por aí, sem o uniforme, quando precisa ir a uma delegacia ou hospital, porque sabe que “o impacto da roupa é muito forte”. Talvez, em algum lugar de sua pasta de documentos, apareça até algum ofício ou registro com os sobrenomes Andrade ou Dias, mas isso não é seguro de afirmar. A segurança para ele é permanecer oculto no seu traje cósmico que começou a ser costurado ainda na juventude. “Sempre fui muito bonito, magrinho e esbelto, paparicado pelas garotas. Os caras me abusavam e achavam que eu era viado porque não reagia às provocações deles. Aí passei a usar braçadeiras metálicas para me proteger, depois coloquei perneiras para me livrar das mordidas dos cachorros. Quando surgiu o movimento punk, eu já estava vestido”, recorda ele, enquanto um rádio velho, com um alto falante ainda mais antigo, emite um ruído infinito de estática. Até o som no ateliê está em busca de alguma sintonia.

 

A maldade do mundo

Jayme confessa que tem medo da maldade do mundo, é a explicação encontrada para colocar tantos obstáculos entre ele mesmo e a vida que passa. Sente solidão quando os turistas estrangeiros o fotografam, sente calafrios quando lhe praticam agressões na rua, sente ódio quando um vizinho ruim de ritmo resolve praticar percussão.

“Desde pequeno, eu sempre vivi sozinho e com medo da maldade das pessoas. Eu era enganado e perseguido. Quanto mais quieto eu ficava, mais problema eu atraía. Começaram a buscar por minha carne, pra saber se eu era homem ou mulher. Não foram os brancos que me subjugaram. Foi minha própria raça que me tirou sangue e mexeu na minha carne”, ele fala tudo isso, mas Billy, o melhor amigo, nem dá atenção.

Jayme não vai ceder ao apelo público de mostrar o rosto. “Eu quero tirar a máscara e poder mostrar rugas, quero tempo de vida para mostrar”. Só que na penumbra de seu ateliê implodido, ele se revela. É uma aparência que qualquer um pode ter visto na fila do banco, ou ter sido servido no restaurante, ou ter gritado gol para ele na Fonte Nova. Jaime – nessa hora sem o Y – é um comum que se despe das armas do sagrado. Um negro de nariz ligeiramente fino, barba falhada, olhos escuros, dois dentes frontais quebrados.

Poderia ser um guardador de carro ou um advogado, a depender de como se vestisse. Tudo é comum na sua aparência, menos a incompatibilidade entre a idade anunciada e a figura de sua imagem. Ele diz que tem 53 anos, mas qualquer um, sem ver os cabelos grisalhos, apostaria em 35. “Eu não tomo sol no rosto, isso rejuvenesce”, despista. Só que este, definitivamente, não é o grande segredo de Jayme Figura.