Sexo, mentiras e videotape

Nos cinemas do centro de Salvador, os filmes pornôs da tela são acompanhados por boquetes de R$6 na platéia executados por senhores “acima de qualquer suspeita”

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

A nada doce vida em um cinema pornô
A nada doce vida em um cinema pornô

A primeira imagem é a silhueta barriguda de um homem em pé se masturbando ao contra-luz da lâmpada do banheiro. Ele tem mais mão do que pênis ereto. Ejacula uma baba bovina durante a cena de duas gêmeas índias dando para um negro. Não se sabe quanto tempo passou ali até gozar e nem se chegou ao orgasmo por fantasiar a companhia das irmãs ou do afrodescendente que exibe seu dote na tela.

A adaptação à escuridão é lenta e temerosa. Há sempre o risco de esbarrar em alguém que não se deseja – certamente, arriscando entrar nesse local para fazer reportagem, dificilmente, você vai querer esbarrar em alguém. Até as trevas se transformarem em uma penumbra delineadora de sombras, a luminosidade é a da tela, da lâmpada fria do banheiro (no canto esquerdo de quem entra) e de algumas cinzas de cigarro que são pontos avermelhados flutuando sobre as poltronas do Cine Tupy que, prestes a completar 52 anos, fede.

É o cheiro de cigarro que se funde com todo tipo de aroma fétido, um desafio olfativo tão intrigante quanto nauseabundo. Urina, esperma, mofo, madeira podre, suor, fezes se confundem em uma alquimia aromática capaz de provocar ânsia de vômito em um poodle de madame e seu focinho sensível. Há todo o tipo de cheiro, menos o de pipoca. A exibição é vespertina, mas muito pouco ali lembra uma Sessão da Tarde.

Mesmo com a murrinha impregnada, existem testemunhas da limpeza matutina, diária, feita por uma senhora zelosa, que já não se espanta com resquícios de um bacanal. Os objetos mais estranhos foram uma dentadura (na certa, retirada para suavizar uma felação e nunca mais encontrada) e até uma bola de pingue-pongue (aparentemente limpa).

Cine Tupy: o antigo colosso entregue ao sexo barato
Cine Tupy: o antigo colosso entregue ao sexo barato

Ninguém é de ninguém

Há 70 pessoas, pelo menos, às 15h30, mas entra mais gente do que sai. Alguns já se conhecem. É a rotina de todos os dias, das 10h às 18h30, filmes ininterruptos, sem espera para subida dos créditos. Os cartazes são apenas alegorias, decoração, anunciam filmes americanos dos anos 80, enquanto as atrações são produções nacionais gravadas em estética caseira, se fosse necessário qualificar a putaria pura e simples em algum gênero cinematográfico. As cenas são filmadas em cama de cabeceira arcaica de madeira, um edredom quadriculado lilás. O enredo mostra dois caras que focalizam mulheres do quarto andar de um prédio em São Paulo, descem, passam qualquer conversa e logo elas estão em casa, dadivosas, com algum diálogo que na verdade quer dizer “tire a roupa e sejamos felizes”. É o sonho de parcela da platéia conseguir fazer o mesmo com uma pedestre colegial que transite pela avenida Manoel Dias da Silva. Pelo menos a parte heterossexual do público, só que aparentemente ela é minoria absoluta.

Já é possível, então, distinguir as personagens ali às voltas com o nauseabundo enredo da realidade. São homens de diferentes idades e perfis, cuja única ligação, além da preferência pelo mesmo local de entretenimento, é o fato de serem absolutamente comuns e muitos se passarem por figuras carimbadas com o selo “acima de qualquer suspeita”. Um exibicionista que anda com a bermuda descendo pela cintura e o pênis formando um ângulo reto, vai se estimulando com a mão esperando a convocação de alguém muito necessitado que se emocione com sua virtude rija.

Os garotos com aba de boné escondendo parcialmente o rosto são os chamados “caçadores”. Alguns com camisa regata, outros com calça e blusa, mochila nas costas, todos com expectativas monetárias. Acabaram de largar o turno como motoboys ou contínuos, entraram na hora extra da libertinagem. Lá fora, sob um calor vespertino, a vida transcorre aos gritos de vendedores de roupas e buzinadas na Baixa dos Sapateiros. Cá dentro, na penumbra sufocante do Cine Tupy, os sussurros e os gemidos são a trilha sonora da lascívia, a sinfonia do ocaso moral.

Impávido colosso

Inaugurado em 31 de julho de 1956, o Tupy foi o empreendimento de Francisco Pithon com a promessa de fazer as estréias mais aguardadas antes que os concorrentes. A reformulação levou à inovação tecnológica do cinerama, apresentando filmes em 70mm. Um colosso da modernidade cinematográfica transformado em coliseu do hedonismo.

A menos de dois quilômetros dali, no Centro Histórico, rua da Ajuda, o cine Astor é o outro remanescente dos cinemas do centro de Salvador. Inaugurado em abril de 1953, com o nome de Cinema Art, tinha revestimento acústico, tela de porcelana e um marketing capaz de elevá-lo a bibelô dos cinemas soteropolitanos. Reformado para Astor, em 1973, com 450 lugares e dois andares, permaneceu por uma década como local de boa freqüência até virar simplesmente o Palácio do Sexo. A impressão é de um ambiente mais asseado, só que com o mesmo estupor de devassidão que o Tupy, este um caso emblemático de mudança de perfil, como político que ganha eleição e transforma totalmente os hábitos.

Astor: tenta passar a imagem de limpinho, mas também é ordinário
Astor: tenta passar a imagem de limpinho, mas também é ordinário

Quem passa pela catraca vigiada por um porteiro de personalidade indecifrável em uma aparência do humorista Costinha e cabelos grisalhos nos ombros, como os do cantor country Willie Nelson, é transportado para obscuros redutos da alma humana. São senhores atarracados, calvos e de pele gordurosa, jovens de bermudão, boné e camiseta, profissionais liberais que deixaram o serviço mais cedo, aposentados que fingem estar visitando o lugar pela primeira vez. Deixaram de ser pais de famílias, sobrinhos queridos, patrões rigorosos ou estudantes relapsos para irem satisfazer aos instintos primários.

Nem todos querem companhia, alguns se aproveitam do amor individualizado e egoísta, que nem é tão solitário assim porque às vezes tem platéia de um ou outro mordendo lábios. O contato não é forçado, apenas insinuado. Para dispensar, serve não olhar nos olhos de ninguém. Para aceitar, não são necessários nomes ou apresentações formais. Basta uma aproximação lenta, que seja recíproca, até chegar ao toque – que precisa ser discreto, mas firme – na região da pélvis.

Não ousa dizer o nome

Dois rapazes passam dos olhares para a fase seguinte do plano tácito de amar sem ousar dizer o nome. Já estão se aproximando em passos curtos e laterais pela parede e se encontram no tatear de baixo ventre cheio de suspiros. São como dois garotinhos montando um Lego que acabaram de ganhar e se dedicam a mais fricções manuais do que uma quituteira produzindo bolinho de estudante. Em questão de cinco minutos, enquanto o ator ainda está convencendo uma moça com tatuagem de estrelinha na nuca a tirar a blusa, parecem ter gozado. Dão três passos à frente para se compor e sorriem. Não há beijo na boca e nem convite posterior para jantar.

Todos parecem em movimento constante, uma atmosfera tensa em que homens se cruzam procurando um sinal de reciprocidade no olhar alheio. O balé simbólico do quase-acasalamento geralmente reúne gerações distintas. É aquele rapaz de cavanhaque e tatuagem à mostra no ombro que em pouco tempo está abocanhado por um idoso de camisa de botão, o mesmo que entrou no cinema olhando para os lados na hora de comprar o ingresso de 6 reais. Uma cartolina escrita a hidrocor propõe a entrada por 3 reais porque estudante também tem direito a meia, mesmo que a aula prática de anatomia seja bem pouco pedagógica.

Ou então o jovem que se soltasse os cabelos ficaria a cara do goleiro colombiano René Higuita, que conseguiu uns trocados ao ser bolinado por um homem branco que poderia ser um corretor de imóveis em dia de folga. Sim, o cara que te vendeu seu último apartamento de três quartos na Paralela também pode freqüentar o Cine Tupy, e quando sair voltar a pensar o mundo em termos de metros quadrados de área privativa. Mas lá dentro ele vai pensar em termos de centímetros de privacidade.

A única mulher é uma negra baixinha de nádegas proeminentes que sai da poltrona para se exibir em calcinha fio dental e sutiã vermelhos. Os clientes pedem boquete, ela dá. Os clientes pedem punheta, ela dá. Os clientes pedem sexo, ela dá – com camisinha. Um ou outro pediu a bunda, ela jamais deu com a justificativa que só o marido merece o esforço e o esfíncter.

Na segunda-feira, um coroa de folga anda rangendo os dentes, barba grisalha, lambendo os lábios para qualquer um que seja promessa de felicidade. Um velho com no mínimo 70 anos tenta convencer alguém a se deixar chupar por R$5. Parece ser o quarto ou quinto pedido, tamanha a quantidade de cédulas de R$5 que leva no bolso.

No fim de uma cena de anal, uma bunda nua se ergue da poltrona e é coberta por uma cueca branca. Recomposto, o dono da bunda que teve a coragem de encostar a pele no estofado sai rapidamente em direção ao saguão de entrada e retorna uma ligação no celular. Fora do alcance auditivo dos gemidos, explica a alguém que está tentando registrar uma firma no comércio, mas a fila é grande. São insondáveis os caminhos que levam até um cartório nesta zona da cidade.

Empresa familiar

Porteiro há seis anos, Farley, o Willie Nelson sorumbático, nem se interessa pelos filmes. “A putaria é lá dentro, aqui é uma empresa”, responde com um pé liberando a catraca para um sósia do cantor Ninha, com a camisa do Vitória alusiva aos 100 anos do clube e uma pochete na cintura. Este vira alvo de olhares e anseios inconfessáveis. Um mais corajoso comenta o título baiano conquistado no dia anterior. Ouve uma resposta animada, mas que não progride para o grito de gol. Este é caso de zero a zero. Diálogos, ruídos de vozes são exceção. Tudo se desenrola na mudez de funeral, como o falecimento dos outros cinemas ao longo de décadas.

Em Salvador, quase 80 salas de cinema já fecharam as portas desde a exibição inaugural, em 1897, restrita para convidados e imprensa no Theatro Politheama Bahiano, atual Instituto Feminino, graças ao cinematógrafo trazido de Paris pelo farmacêutico Dionísio Costa. O primeiro imóvel feito exclusivamente para a sétima arte foi o Cinema Bahia, na casa de nº 1 da Rua Chile, inaugurado em 1909.

Entre os anos 1950 e 1960, 22 cinemas chegaram a funcionar simultaneamente, alguns portentosos, com 3 mil lugares, como o Cine Pax e o Jandaia, na Baixa dos Sapateiros, sempre adornados por grandes filas e bilheterias polpudas, de acordo com o livro Um cinema chamado saudade, escrito por Geraldo da Costa Leal e Luis Leal Filho.

O Aliança, na Baixa dos Sapateiros, saiu de cena com seus 820 lugares em julho de 1975, para que o prédio pudesse virar uma loja de confecções. O antigo Cinema Mercúrio, no bairro de Cidade Nova, foi abandonado em 1962 e virou um galpão. Destino semelhante teve o Cinema Uruguai, localizado na Rua Direta, que se tornou estufa para a oxidação lenta dos dois projetores de 35mm. O Cinema Brasil, na Rua Lima e Silva, na Liberdade, resistiu de 1952 a 1979, mas 13 anos depois da morte do proprietário, Eletro Rosa, foi condenado pela prefeitura. O Cinema Plaza sucumbiu para renascer como igreja evangélica.

A administração do Tupy é da Orient Filmes, a proprietária das salas dos shopping Barra e Center Lapa e do Multiplex Iguatemi. É mais ou menos como um empresário ter os direitos federativos de Kaká e também de Gato Preto, que seja o goleiro da seleção de Ipiaú no campeonato Intermunicipal de futebol da Bahia. Ou que seja o agente de Juliana Paes numa novela da Globo e de Rita Cadilac, em alguma produção das Brasileirinhas.

Sétima arte

Um dos sócios da empresa, o cinéfilo Aquiles Mônaco, é apreciador da sétima arte desde que conheceu a maravilha do cine Nazaré, quando era estudante ginasial. Em seguidas conversas, ele declarou ser irreversível a derrocada das salas de exibição no centro, atropeladas pelos complexos em centros de compras. Se o Cine Tupy ainda resiste é porque no cálculo entre custo e benefício, uma sessão com odor de esperma e a penumbra cúmplice dos pecadores ainda rende algum lucro, mesmo que a empresa não ganhe muito por ter o nome associado ao cinema.

Uma Igreja Universal do Reino de Deus fica ao lado da catedral do paganismo, o templo onde o prazer é o único mandamento e o evangelho é apenas gozar, sem pecado e sem juízo. É ali que os fiéis da putaria se deleitam no altar da devassidão, livres de preconceitos, livres de tabus e, certamente, livres de algumas pregas também.

Abre aspas para o desabafo afetado de alguém que se sentiu ofendido na condição de michê vespertino: “um pé rachado daqueles pedindo dinheiro pra eu chupar o pau dele…” Quarenta minutos depois, o mesmo sensível com aparência de produtor de pagode desdenha em voz alta de um senhor com cabelos cinzas e sapato de camurça sem meia: “ah, jogar um desses de cabeça do Elevador Lacerda”. Três travestis se revezam entre as fileiras. No banheiro, há uma lâmina perene de água e urina no chão e sempre alguém à espera, olhando quem chega pelo espelho.

Um senhor de óculos fino e aparência grã-fina pisa na poça com sapato sem meias, bermuda safári e camisa pólo. Parece ser um empresário curtindo o domingo com churrasco na beira da piscina da casa no Litoral Norte. Só que não pára de andar à procura de carne. Um baixinho com blusa de motivos socialistas e sandália de tiras, que poderia dar aulas na Faculdade de Ciências Humanas da UFBa, sai da sala para pedir um refrigerante em lata. Dispensa o canudo e volta com o guaraná Kuat na boca, adoçando o gosto acre de fluidos alheios.

As sessões se sucedem sem interrupção, sem trailers, sem a entrada do carrinho de doces. Mas é o fim de uma aventura para o mulato magro, com pinta de lateral-direito de baba de bairro, que se recompõe fechando zíper e botão da bermuda jeans. Antes de passar pelo saguão que já foi ornamentado por peças de Juarez Paraíso, está arrumado e na rua vai voltar a ser “Péricles, o craque do Flamenguinho da Boca da Mata”. Depois dele, o até breve daquele senhor de sapato de camurça, que vai ter tempo de pegar os recados com a secretária e planejar o happy hour no clube do whisky, onde vai fumar um charuto e comentar sobre sites de acompanhantes com outros executivos. Tudo é esdrúxulo como a estratégia de sedução em um filme de putaria. Só que o pior é essa imagem da baba bovina que não sai da cabeça.

*publicado na Revista da Metrópole, em maio de 2008

Amendoim Torrado

A saga de um jovem, e seu paletó, para vender petiscos sob o calor e a indiferença do trânsito de Salvador

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Torrando no asfalto quente, Uélton garante que está satisfeito

No calor de meio dia do verão de Salvador, a visão de Uélton Júnior Silva dos Santos é como uma miragem às avessas. No irritante trânsito em brasas, ele surge entre carros com uma bandeja pesada de amendoins e uma farda que lembra estagiário de Direito. Você vê aquele rapaz de terno escuro, gravata apertando o pescoço, esfrega os olhos desacreditando e  – ao contrário de uma ilusão de ótica com um coqueiro e uma lagoa no deserto – você não quer estar no lugar dele.

Uélton, 23 anos, apelidado como Cinho, parece se sentir em um oásis particular dentro desta indumentária abafada, oferecendo petiscos a motoristas enquanto eles esperam os 80 segundos de um semáforo nervoso. “Não sinto esse calor todo. Uso o traje completo porque eu acho assim, muitas das vezes, usando bermuda, quer dizer, não me sinto bem, tenho sempre que ter apresentação diferente”, explica Uélton, ainda gaguejando por não acreditar que seu método de trabalho possa interessar a uma reportagem.

Paletó, gravata, calça de brim: impexável vendedor gentil
Paletó, gravata, calça de brim: impecável vendedor gentil

Os totens com termômetros nas proximidades da Pituba discordam entre si sobre a temperatura exata do momento. Alguns apontam 34°, outros, 36°, um mais exagerado, na Avenida Magalhães Neto, chega a 38°. O certo é que a chamada sensação térmica parece dizer: saia de casa com camiseta, short e sandálias e mesmo assim se prepare para uma possível desidratação. Só que o jovem vendedor não dá muita bola para esses imperativos da natureza quando a ideia é provocar uma boa impressão na clientela. “Desde 15 anos, trabalho de paletó e gravata. Comecei com a camisa social. Botei gravata, deu certo. Botei paletó, deu mais certo ainda”, recorda, mostrando que uma ascensão profissional também pode estar ligada ao guarda roupas.

A empolgação com o impacto de marketing provocado por traje incoerente com a meteorologia não disfarça as espessas gotas de suor que escorrem pelo rosto magro e moreno do ambulante elegante. No momento, 15h30, usa casaco preto, camisa vermelha, gravata de listras diagonais coloridas, calça azul marinho, sapato marrom. É provável que quando retornar para casa em Fazenda Coutos, a camisa interna esteja encharcada, mas a alma lavada com a venda de todo lote de 150 saquinhos de amendoim.

Ele também comercializa balas de café ou gengibre, jujubas, paçoca, pé de moça. A escolha da mercadoria para trabalhar depende do intricado cruzamento de dados sobre estação do ano, lucratividade do momento, demandas de cliente. Para vender doce, não pode sair de casa depois de 7h e alcançar os clientes chegando nas escolas. Quando o produto é amendoim, ele digitaria o #PartiuTrabalho (caso tivesse tempo e dinheiro sobrando para essas amenidades chamadas redes sociais) às 10h. A depender do movimento, esgota a carga de sua bandeja (saquinhos por R$1) às 18h, ou 20h30, se estiver ruim.

Uelton faz parte de um exército de batalhadores com números imprecisos em Salvador: os guerreiros do trabalho informal que podem chegar até a dezenas de milhares saindo a campo pela sobrevivência diária. Diz morar com irmão de 18 anos, outro de 8, e duas irmãs de 14 e outra de 5. A mãe é falecida. Mas nenhuma das informações dada por ele foi checada in loco pela reportagem. “Eu sou o cabeça da casa. Tenho que passar responsabilidade. Devemos instruir nossos filhos no caminho que têm que andar. Não podemos perder eles pra essa droga maldita que aí está, o crack. Dando boa educação, sendo discreto, sendo passível”, ensina o engravatado de esquina, mostrando que sabe como “dar um calor” nos irmãos mais novos.

Ele diz que é pai de uma menina de apenas um ano, Maria Vitória Nascimento da Silva, que mora com a mãe no distrito de Cachoeira dos Prazeres, na cidade de Jiquiriçá, a 250 quilômetros de Salvador. Mesmo com essa descrição, ele tem uma forma inusitada de se declarar “pai solteiro”. Parece que a situação ficou quente para o casal e o relacionamento, encerrado, segundo ele, por uma decisão própria, já que não gosta de brigar, xingar e isso estava ocorrendo. Ele garante que é melhor pensar bem, como se fosse uma coisa consensual, mas logo depois avisa que está aguardando uma decisão do juiz para entrar em acordo. Há algo impreciso na história, então é melhor voltar para a alta temperatura do momento.

Ação rápida: em alguns segundos Uélton precisa convencer motoristas apressados
Ação rápida: em alguns segundos Uélton precisa convencer motoristas apressados

Com um sotaque meio acariocado na voz, desses que se ouvem em locutores de FM populares e em todo mundo que pensa em atalhos para a fama, ele vai oferecendo “é um real o pacotinho” para Toyota Corolla, Honda Civic, taxista no Meriva. Andando, desviando de carro e de caras de espanto, suando. “Aqui é calor, mas não me incomodo muito vendendo de terno e gravata. Já sou acostumado, também não discrimino quem vende de bermuda ou de camiseta. Eu digo a eles não para se espelhar em mim. Mas na limpeza, ser cheiroso, cabelo cortado, pra as pessoas falarem bem da gente. Bote sua beleza sempre em prática para chegar em algum lugar”, ensina.

Só que Uélton não é um rapaz apenas de aparências. Ele carrega uma garrafa de água mineral de 1,5 litros e diz que é preciso pensar na “hidratação da pele, não esquecer da água, usar protetor solar. A indicação é beber pelo menos 2 litros de água por dia e cuidar da saúde para não pegar o tal câncer de pele”. Por trás daquele montinho de amendoins bege há um pequeno arquivo mental com todas as informações básicas de sobrevivência sob o sol a pino, disponíveis também para quem tem acesso ao google.

Um motorista baixa o vidro fumê do Hyundai Tucson e Uelton já saboreia o real da venda, ou quem sabe se 2 ou 3, a depender do apetite do cliente. O sopro suave do ar climatizado massageia seu rosto e junto com ele a pergunta, uma ducha de água fria: “Pra que lado fica a Praça Nossa Senhora da Luz?” O vendedor aponta o dedo pra esquerda, depois do semáforo: “É por ali”, mas não se dá por derrotado assim tão fácil. “Vai um amendoinzinho aê?” “Não mesmo, fera, estou com pressa”. E decola com sua barca deixando no rastro do verdadeiro motivo da pergunta, que está na placa de São José dos Campos-SP.

Nesse mundo de quente/frio das ruas, ele recorda da violência física no ano passado. Era uma manhã de sábado, por volta das 10h. Ele diz que um menino de rua estava bagunçando na farmácia da esquina. Foi proteger o segurança e terminou atacado por três rapazes, recebendo uma paulada na cabeça, por trás, quando segurava o adolescente. “Foi um ato de covardia”. Não tomou pontos, mas usou folha de aroeira seca e benzetacil, porque gosta de remédios naturais.

Tão dolorosa quanto a pancada é a violência psicológica dos clientes, algo que hoje deram para alertar como bullying. “Já me chamaram de maluco, de doido, perguntando se já usei remédio por causa dessa roupa. É meu jeito de trabalhar. Não discrimino ninguém. Mas eu digo pra eles que estão no ar condicionado, no escritório, que enquanto eles estão com gelinho no rosto estou dando meu duro. Podia dar pra coisa ruim, pra ladrão, mas estou aqui dizendo que é pra não discriminar que é pra ter amor no coração de quem está próximo”, reflete ele, enquanto bem ao lado trafega toda essa insanidade medicada que se chama a vida na cidade grande.

Quando todos os sinais pareciam fechados a um avanço, ele pensa em prosseguir. Pretende sair desse trabalho correndo atrás de carteira de trabalho, título de eleitor e CPF, para arrumar emprego fixo. Lá na frente ele entrega que acha bonito seguranças de terno e gravata em shoppings ou lojas. “Meu negócio é quem tá na estica, ou ser auxiliar de gerente”.

Uma miragem às avessas: engravatado sob o sol de 38°
Uma miragem às avessas: engravatado sob o sol de 38°

O trânsito, esse ecossistema predatório com armas sonoras em forma de buzinadas, xingamentos, freadas bruscas, ou faróis indevidamente altos, fechadas. Território em que Uélton se auto condicionou a pensar que só com terno e gravata para ficar à altura do aposentado que vem com sandália japonesa e camisa de botão aberta até embaixo do peito, ou a moça com roupa de academia e transpiração pelo rosto, ou dois surfistas que chegam em sungas defumadas de curtição. “Meu plano é ir trabalhar em São Paulo vendendo meu amendoim. É o local que dá pra ganhar dinheiro. Se eu for pra lá, vou me dar bem. Tem um exemplo de um cara que vende de paletó. Hoje ele continua de paletó, mas tem os funcionários todos de camisa de botão”.

Os três encontros com Uélton foram todos eles vespertinos no semáforo do cruzamento entre a Avenida Paulo VI e a Rua Almirante Carlos Paraguassu de Sá, com esquinas ocupadas por farmácias. Mas ele também pode ser acionado por algum cliente itinerante nas proximidades da Praça Nossa Senhora da Luz, perto das muitas escolas do bairro, em qualquer ponto com pouca concorrência e uma sinaleira que ofereça um intervalo útil para ele mostrar as qualidades do produto. “Olha o amendoim, é só um real”.

Na hora da despedida, Uélton é daquelas gentilezas que não pensam em lucro imediato. “Por favor, leve um amendoim para comprovar a qualidade”, oferece ao repórter. “Obrigado, mas acabei de almoçar agora”, recusa, apontando para um relógio que marca mais de 14h. É mentira, o repórter ali naquele momento tem fome. Rejeita a oferta, não se sabe se por uma questionável ética jornalística ou por ética ao próprio sistema digestivo. É que naquele calor até o saquinho de amendoim aparecia meio suado. Só que mesmo sem provar, garante-se, estava uma delícia.

O trânsito, esse ecossistema predatório, passa aos olhos do vendedor elegante
O trânsito, esse ecossistema predatório, passa aos olhos do vendedor elegante