Nos cinemas do centro de Salvador, os filmes pornôs da tela são acompanhados por boquetes de R$6 na platéia executados por senhores “acima de qualquer suspeita”
Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)
A primeira imagem é a silhueta barriguda de um homem em pé se masturbando ao contra-luz da lâmpada do banheiro. Ele tem mais mão do que pênis ereto. Ejacula uma baba bovina durante a cena de duas gêmeas índias dando para um negro. Não se sabe quanto tempo passou ali até gozar e nem se chegou ao orgasmo por fantasiar a companhia das irmãs ou do afrodescendente que exibe seu dote na tela.
A adaptação à escuridão é lenta e temerosa. Há sempre o risco de esbarrar em alguém que não se deseja – certamente, arriscando entrar nesse local para fazer reportagem, dificilmente, você vai querer esbarrar em alguém. Até as trevas se transformarem em uma penumbra delineadora de sombras, a luminosidade é a da tela, da lâmpada fria do banheiro (no canto esquerdo de quem entra) e de algumas cinzas de cigarro que são pontos avermelhados flutuando sobre as poltronas do Cine Tupy que, prestes a completar 52 anos, fede.
É o cheiro de cigarro que se funde com todo tipo de aroma fétido, um desafio olfativo tão intrigante quanto nauseabundo. Urina, esperma, mofo, madeira podre, suor, fezes se confundem em uma alquimia aromática capaz de provocar ânsia de vômito em um poodle de madame e seu focinho sensível. Há todo o tipo de cheiro, menos o de pipoca. A exibição é vespertina, mas muito pouco ali lembra uma Sessão da Tarde.
Mesmo com a murrinha impregnada, existem testemunhas da limpeza matutina, diária, feita por uma senhora zelosa, que já não se espanta com resquícios de um bacanal. Os objetos mais estranhos foram uma dentadura (na certa, retirada para suavizar uma felação e nunca mais encontrada) e até uma bola de pingue-pongue (aparentemente limpa).
Ninguém é de ninguém
Há 70 pessoas, pelo menos, às 15h30, mas entra mais gente do que sai. Alguns já se conhecem. É a rotina de todos os dias, das 10h às 18h30, filmes ininterruptos, sem espera para subida dos créditos. Os cartazes são apenas alegorias, decoração, anunciam filmes americanos dos anos 80, enquanto as atrações são produções nacionais gravadas em estética caseira, se fosse necessário qualificar a putaria pura e simples em algum gênero cinematográfico. As cenas são filmadas em cama de cabeceira arcaica de madeira, um edredom quadriculado lilás. O enredo mostra dois caras que focalizam mulheres do quarto andar de um prédio em São Paulo, descem, passam qualquer conversa e logo elas estão em casa, dadivosas, com algum diálogo que na verdade quer dizer “tire a roupa e sejamos felizes”. É o sonho de parcela da platéia conseguir fazer o mesmo com uma pedestre colegial que transite pela avenida Manoel Dias da Silva. Pelo menos a parte heterossexual do público, só que aparentemente ela é minoria absoluta.
Já é possível, então, distinguir as personagens ali às voltas com o nauseabundo enredo da realidade. São homens de diferentes idades e perfis, cuja única ligação, além da preferência pelo mesmo local de entretenimento, é o fato de serem absolutamente comuns e muitos se passarem por figuras carimbadas com o selo “acima de qualquer suspeita”. Um exibicionista que anda com a bermuda descendo pela cintura e o pênis formando um ângulo reto, vai se estimulando com a mão esperando a convocação de alguém muito necessitado que se emocione com sua virtude rija.
Os garotos com aba de boné escondendo parcialmente o rosto são os chamados “caçadores”. Alguns com camisa regata, outros com calça e blusa, mochila nas costas, todos com expectativas monetárias. Acabaram de largar o turno como motoboys ou contínuos, entraram na hora extra da libertinagem. Lá fora, sob um calor vespertino, a vida transcorre aos gritos de vendedores de roupas e buzinadas na Baixa dos Sapateiros. Cá dentro, na penumbra sufocante do Cine Tupy, os sussurros e os gemidos são a trilha sonora da lascívia, a sinfonia do ocaso moral.
Impávido colosso
Inaugurado em 31 de julho de 1956, o Tupy foi o empreendimento de Francisco Pithon com a promessa de fazer as estréias mais aguardadas antes que os concorrentes. A reformulação levou à inovação tecnológica do cinerama, apresentando filmes em 70mm. Um colosso da modernidade cinematográfica transformado em coliseu do hedonismo.
A menos de dois quilômetros dali, no Centro Histórico, rua da Ajuda, o cine Astor é o outro remanescente dos cinemas do centro de Salvador. Inaugurado em abril de 1953, com o nome de Cinema Art, tinha revestimento acústico, tela de porcelana e um marketing capaz de elevá-lo a bibelô dos cinemas soteropolitanos. Reformado para Astor, em 1973, com 450 lugares e dois andares, permaneceu por uma década como local de boa freqüência até virar simplesmente o Palácio do Sexo. A impressão é de um ambiente mais asseado, só que com o mesmo estupor de devassidão que o Tupy, este um caso emblemático de mudança de perfil, como político que ganha eleição e transforma totalmente os hábitos.
Quem passa pela catraca vigiada por um porteiro de personalidade indecifrável em uma aparência do humorista Costinha e cabelos grisalhos nos ombros, como os do cantor country Willie Nelson, é transportado para obscuros redutos da alma humana. São senhores atarracados, calvos e de pele gordurosa, jovens de bermudão, boné e camiseta, profissionais liberais que deixaram o serviço mais cedo, aposentados que fingem estar visitando o lugar pela primeira vez. Deixaram de ser pais de famílias, sobrinhos queridos, patrões rigorosos ou estudantes relapsos para irem satisfazer aos instintos primários.
Nem todos querem companhia, alguns se aproveitam do amor individualizado e egoísta, que nem é tão solitário assim porque às vezes tem platéia de um ou outro mordendo lábios. O contato não é forçado, apenas insinuado. Para dispensar, serve não olhar nos olhos de ninguém. Para aceitar, não são necessários nomes ou apresentações formais. Basta uma aproximação lenta, que seja recíproca, até chegar ao toque – que precisa ser discreto, mas firme – na região da pélvis.
Não ousa dizer o nome
Dois rapazes passam dos olhares para a fase seguinte do plano tácito de amar sem ousar dizer o nome. Já estão se aproximando em passos curtos e laterais pela parede e se encontram no tatear de baixo ventre cheio de suspiros. São como dois garotinhos montando um Lego que acabaram de ganhar e se dedicam a mais fricções manuais do que uma quituteira produzindo bolinho de estudante. Em questão de cinco minutos, enquanto o ator ainda está convencendo uma moça com tatuagem de estrelinha na nuca a tirar a blusa, parecem ter gozado. Dão três passos à frente para se compor e sorriem. Não há beijo na boca e nem convite posterior para jantar.
Todos parecem em movimento constante, uma atmosfera tensa em que homens se cruzam procurando um sinal de reciprocidade no olhar alheio. O balé simbólico do quase-acasalamento geralmente reúne gerações distintas. É aquele rapaz de cavanhaque e tatuagem à mostra no ombro que em pouco tempo está abocanhado por um idoso de camisa de botão, o mesmo que entrou no cinema olhando para os lados na hora de comprar o ingresso de 6 reais. Uma cartolina escrita a hidrocor propõe a entrada por 3 reais porque estudante também tem direito a meia, mesmo que a aula prática de anatomia seja bem pouco pedagógica.
Ou então o jovem que se soltasse os cabelos ficaria a cara do goleiro colombiano René Higuita, que conseguiu uns trocados ao ser bolinado por um homem branco que poderia ser um corretor de imóveis em dia de folga. Sim, o cara que te vendeu seu último apartamento de três quartos na Paralela também pode freqüentar o Cine Tupy, e quando sair voltar a pensar o mundo em termos de metros quadrados de área privativa. Mas lá dentro ele vai pensar em termos de centímetros de privacidade.
A única mulher é uma negra baixinha de nádegas proeminentes que sai da poltrona para se exibir em calcinha fio dental e sutiã vermelhos. Os clientes pedem boquete, ela dá. Os clientes pedem punheta, ela dá. Os clientes pedem sexo, ela dá – com camisinha. Um ou outro pediu a bunda, ela jamais deu com a justificativa que só o marido merece o esforço e o esfíncter.
Na segunda-feira, um coroa de folga anda rangendo os dentes, barba grisalha, lambendo os lábios para qualquer um que seja promessa de felicidade. Um velho com no mínimo 70 anos tenta convencer alguém a se deixar chupar por R$5. Parece ser o quarto ou quinto pedido, tamanha a quantidade de cédulas de R$5 que leva no bolso.
No fim de uma cena de anal, uma bunda nua se ergue da poltrona e é coberta por uma cueca branca. Recomposto, o dono da bunda que teve a coragem de encostar a pele no estofado sai rapidamente em direção ao saguão de entrada e retorna uma ligação no celular. Fora do alcance auditivo dos gemidos, explica a alguém que está tentando registrar uma firma no comércio, mas a fila é grande. São insondáveis os caminhos que levam até um cartório nesta zona da cidade.
Empresa familiar
Porteiro há seis anos, Farley, o Willie Nelson sorumbático, nem se interessa pelos filmes. “A putaria é lá dentro, aqui é uma empresa”, responde com um pé liberando a catraca para um sósia do cantor Ninha, com a camisa do Vitória alusiva aos 100 anos do clube e uma pochete na cintura. Este vira alvo de olhares e anseios inconfessáveis. Um mais corajoso comenta o título baiano conquistado no dia anterior. Ouve uma resposta animada, mas que não progride para o grito de gol. Este é caso de zero a zero. Diálogos, ruídos de vozes são exceção. Tudo se desenrola na mudez de funeral, como o falecimento dos outros cinemas ao longo de décadas.
Em Salvador, quase 80 salas de cinema já fecharam as portas desde a exibição inaugural, em 1897, restrita para convidados e imprensa no Theatro Politheama Bahiano, atual Instituto Feminino, graças ao cinematógrafo trazido de Paris pelo farmacêutico Dionísio Costa. O primeiro imóvel feito exclusivamente para a sétima arte foi o Cinema Bahia, na casa de nº 1 da Rua Chile, inaugurado em 1909.
Entre os anos 1950 e 1960, 22 cinemas chegaram a funcionar simultaneamente, alguns portentosos, com 3 mil lugares, como o Cine Pax e o Jandaia, na Baixa dos Sapateiros, sempre adornados por grandes filas e bilheterias polpudas, de acordo com o livro Um cinema chamado saudade, escrito por Geraldo da Costa Leal e Luis Leal Filho.
O Aliança, na Baixa dos Sapateiros, saiu de cena com seus 820 lugares em julho de 1975, para que o prédio pudesse virar uma loja de confecções. O antigo Cinema Mercúrio, no bairro de Cidade Nova, foi abandonado em 1962 e virou um galpão. Destino semelhante teve o Cinema Uruguai, localizado na Rua Direta, que se tornou estufa para a oxidação lenta dos dois projetores de 35mm. O Cinema Brasil, na Rua Lima e Silva, na Liberdade, resistiu de 1952 a 1979, mas 13 anos depois da morte do proprietário, Eletro Rosa, foi condenado pela prefeitura. O Cinema Plaza sucumbiu para renascer como igreja evangélica.
A administração do Tupy é da Orient Filmes, a proprietária das salas dos shopping Barra e Center Lapa e do Multiplex Iguatemi. É mais ou menos como um empresário ter os direitos federativos de Kaká e também de Gato Preto, que seja o goleiro da seleção de Ipiaú no campeonato Intermunicipal de futebol da Bahia. Ou que seja o agente de Juliana Paes numa novela da Globo e de Rita Cadilac, em alguma produção das Brasileirinhas.
Sétima arte
Um dos sócios da empresa, o cinéfilo Aquiles Mônaco, é apreciador da sétima arte desde que conheceu a maravilha do cine Nazaré, quando era estudante ginasial. Em seguidas conversas, ele declarou ser irreversível a derrocada das salas de exibição no centro, atropeladas pelos complexos em centros de compras. Se o Cine Tupy ainda resiste é porque no cálculo entre custo e benefício, uma sessão com odor de esperma e a penumbra cúmplice dos pecadores ainda rende algum lucro, mesmo que a empresa não ganhe muito por ter o nome associado ao cinema.
Uma Igreja Universal do Reino de Deus fica ao lado da catedral do paganismo, o templo onde o prazer é o único mandamento e o evangelho é apenas gozar, sem pecado e sem juízo. É ali que os fiéis da putaria se deleitam no altar da devassidão, livres de preconceitos, livres de tabus e, certamente, livres de algumas pregas também.
Abre aspas para o desabafo afetado de alguém que se sentiu ofendido na condição de michê vespertino: “um pé rachado daqueles pedindo dinheiro pra eu chupar o pau dele…” Quarenta minutos depois, o mesmo sensível com aparência de produtor de pagode desdenha em voz alta de um senhor com cabelos cinzas e sapato de camurça sem meia: “ah, jogar um desses de cabeça do Elevador Lacerda”. Três travestis se revezam entre as fileiras. No banheiro, há uma lâmina perene de água e urina no chão e sempre alguém à espera, olhando quem chega pelo espelho.
Um senhor de óculos fino e aparência grã-fina pisa na poça com sapato sem meias, bermuda safári e camisa pólo. Parece ser um empresário curtindo o domingo com churrasco na beira da piscina da casa no Litoral Norte. Só que não pára de andar à procura de carne. Um baixinho com blusa de motivos socialistas e sandália de tiras, que poderia dar aulas na Faculdade de Ciências Humanas da UFBa, sai da sala para pedir um refrigerante em lata. Dispensa o canudo e volta com o guaraná Kuat na boca, adoçando o gosto acre de fluidos alheios.
As sessões se sucedem sem interrupção, sem trailers, sem a entrada do carrinho de doces. Mas é o fim de uma aventura para o mulato magro, com pinta de lateral-direito de baba de bairro, que se recompõe fechando zíper e botão da bermuda jeans. Antes de passar pelo saguão que já foi ornamentado por peças de Juarez Paraíso, está arrumado e na rua vai voltar a ser “Péricles, o craque do Flamenguinho da Boca da Mata”. Depois dele, o até breve daquele senhor de sapato de camurça, que vai ter tempo de pegar os recados com a secretária e planejar o happy hour no clube do whisky, onde vai fumar um charuto e comentar sobre sites de acompanhantes com outros executivos. Tudo é esdrúxulo como a estratégia de sedução em um filme de putaria. Só que o pior é essa imagem da baba bovina que não sai da cabeça.
*publicado na Revista da Metrópole, em maio de 2008