A velha solidão

Era um cansaço repentino, uma aceleração cardíaca. Era uma certa serenidade ao falar sobre a morte. Era o que se pode chamar resumidamente de consciência do avanço da idade. Era a velhice, aquela propriedade que sempre pertencera aos outros, que sempre esteve longe como um eremita etário, e tinha virado um incômodo inquilino a profanar a vivacidade do corpo.

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Poucos têm a habilidade de identificar quando aconteceu, não exatamente quando se tornaram velhos, mas quando tomaram conhecimento de que aquele tremor nas mãos ou aquele salário de aposentadoria eram mesmo deles. Envelheceram, só isso, e o mundo se tornou tão injusto, como se eles fossem dóceis criminosos, párias de uma sociedade que valoriza o que é novo, fugaz, esplendoroso e belo. Têm até o amparo da lei, mas os olhares que lhes são dirigidos são tão acusadores quanto qualquer sentença de exílio.

Estão exilados, não apenas das facilidades da juventude , mas também do direito à individualidade, estão asilados na identidade coletiva designada por uma faixa etária. São velhos e acabou. A senilidade é um acre-doce recanto dos que ficaram esquecidos por uma sociedade que teima em ver ali mais estorvo do que compreensão.

Quando têm o que falar, o mundo – tão antigo – lhes faz ouvidos moucos. Calados vão ficando quando queriam mesmo era contar, relembrar para viver de novo. Envelhecer é muito mais do que somar anos, acumular cabelos brancos – ou perde-los paulatinamente -, tentar dar uma arte final ao rascunho de uma vida.

São velhos e isso basta para terem contra si toda uma trama de conspirações, das ruas prenhes em armadilhas para pernas cansadas aos filhos, ansiosos por coloca-los no conforto de uma casa de repouso onde estarão isolados da vida lá fora padecendo de uma solidão que parece infinita.

No mundo lá fora está tudo o que fazia sentido, das relações familiares à cadeira de balanço, da cristaleira herdada da avó ao jogo de damas com o netinho. Ganharam passeios no pátio do asilo, perderam o grande almoço de domingo.

A solidão não está nos campos de algodão. Está no relativo sossego dos dormitórios, onde um armário de 40cm e uma portinha guardam toda uma vida. Mesmo quando conversam, o silêncio é dominante. Quando alguns sorrisos surgem, é a melancolia que se destaca. Uma vida reduzida ao suceder de refeições, ao passeio pelo pátio, à mínima conversa com a vizinha, que mora duas camas adiante. A solidão está em um lençol de algodão.

O homem que corre

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Um homem corre no contrafluxo de carros e de ônibus. Ele tem a aparência esgotada, suor escorrendo pelo torso, os ombros retos e firmes. Os olhos visam o infinito, cabeça ereta. Fone branco no ouvido, ele tem uma aparência cansada.

Quais serão os pensamentos do homem que corre no contrafluxo de carros e de ônibus? Serão pensamentos enxutos, raros, caros, putos?

Quanto de fadiga aguenta o corpo suado e cansado do homem que corre no contrafluxo? Quanto de fadiga, me diga.

De quem ele corre? Quem ele quer encontrar?

O homem que corre no contrafluxo, sempre passa no mesmo horário, caindo a noite, depois que o sol se pôs e só lhe resta correr da escuridão.

Contradição atlética esse homem que corre no contrafluxo. O corpo está ali presente, mas a imagem de ausência é o que passa rápido, na direção oposta, ameaçando o sentido único dos veículos.

Os pés calçados vencendo o asfalto, a cabeça lá no alto mais alto que o céu.

Quais as canções acompanham e guiam o homem que corre no contrafluxo? Para correr, o que ele ouve, o que houve?

Corre sem relógio, sem marcação, nem destino. Vai até o corpo avisar que já pode parar. Corre e corre mesmo para depois de lá.

Visto à distância por alguns segundos. Carros passam. Ele tem direito a ficar doente, sente dores musculares? Benvindo seria em quantos lares? Como se comportaria esse homem em outros ares?

Ele passa rente a carros, parece imune a buzinadas, não se incomoda com o braço batendo em retrovisor com a violência de um xingamento, com um ferimento redentor. O homem corre e não se incomoda, seu tornozelo batendo alto nas nádegas é mais do que moda.

Não tente encarar o homem que corre no contrafluxo. Não tente alcançar o homem que corre. Não adianta identificar quem. Parado, ele não é mais ninguém.

Um homem corre, suor escorrendo, urgência que ocorre, amor socorrendo. Um homem corre.

OS BAIANOS: Aline, sempre a um passo apenas do paraíso

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Será de manhã quando você se deparar com a jovem que corre de muletas na orla. Será uma nova manhã. Ela, que se locomove em um balé cibernético, onde os braços ganham extensões até o chão, vigas móveis, apoiando e impulsionando adiante. Será manhã naquele trecho entre Itapuã e Piatã e você será mais um na plateia informal impressionada, pode interromper a própria corrida em homenagem, ou dar uma buzinada de incentivo. aline_sorri

Como se Aline Melo, 21 anos, precisasse de algum estímulo externo. Seu ritmo é apoiado em duas muletas cor de rosa chumbo e em obstinação. E você aí, pela metade, reclamando que hoje não dá, que os músculos estão cansados, que está frio demais ou calor demais. Aline é daquelas miragens desconcertantes, como seu Arioste, que surgem na orla de Salvador, essa cidade que tem sabor de pão dormido molhado em azeite de poesia.

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– Posso fazer uma entrevista?

– Não sei muito falar.

Mas aí mesmo, com certo sorriso, já vai contando que mora no Jardim das Margaridas, um bairro próximo ao aeroporto de Salvador, dividindo a casa com uma tia. Saiu de Paulo Afonso, um ano atrás, atraída pela proposta de trabalho em um escritório de material de construção. “Estou muito feliz, me sinto em casa”. Encantou-se com a praia, com o Farol da Barra, com o Elevador Lacerda, com o Mercado Modelo. Aos fins de semana, encanta-se também com o shopping center.

Não é atleta, não visa paralimpíadas, é apenas prodígio da força de vontade, lição da natureza. Ela não pode conjugar para si mesmo membros inferiores no plural, mas vai caminhando, em passos únicos, numa altivez superior. Fone no ouvido, roupa de academia, cabelo preso, nada falta no visual de Aline Melo. O que sobra é sua exaltação diante do mar. “Essa orla é linda demais”, exclama, sábado sim, sábado não, ou feriados, quando não precisa trabalhar. É de fazer pensar se uma jovem assim, tão real quanto improvável, chegaria a musa inspiradora de Chico Buarque.

– Você se considera um exemplo?

– É o que as pessoas costumam dizer, responde, em um tom quase envergonhado de quem não quer assumir fantasia de heroína.

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Nessa Salvador, a capital exuberante, que mais impressiona do que choca, não há políticas públicas para nada e para nada, ela passa por cima, aos saltos, de uma calçada desnivelada, esburacada, torta, como a vida costuma ser. Olhares oblíquos vão fitando a jovem, são olhos que pertencem a corpos com potencial amputado pela mediocridade, vidas pererês que vão errando bípedes por aí sem direção. No caso dela, seguir adiante é também uma questão de equilíbrio.

Desnecessário é detalhar como ela teve a perna direita arrancada aos dois anos de idade em um acidente com ônibus cujos detalhes ela nem precisou de muito esforço para esquecer. Isso está no passado. No futuro, o sonho dela, que terminou o ensino médio, é passar em um concurso, qualquer que seja. Sem ser Alice, Aline considera que o país das maravilhas seria aquele em que fosse servidora pública da área administrativa de alguma estatal ou autarquia.

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– Posso tirar umas fotos?

– Só se ficar bonita, responde com um sorriso.

Mesmo em feriado, o mundo passa com pressa por Aline, em duas pernas, em duas ou quatro rodas. Mas vá procurar naqueles céleres o mesmo riso fino e perene no canto de boca. A satisfação suave de ver a praia pela primeira vez, mesmo que já seja a centésima.

Aline Melo é inteira em felicidade e encantamento pela orla, pelo mar, que é esse inconsciente coletivo em forma líquida. E você aí, reclamando que hoje acordou cansado, que está atrasado demais para coisa alguma, fazendo um glossário de “mas” e “se” só com o objetivo de se boicotar. E eu aqui, procurando o que falta, um sentimento que sirva, qualquer coisa que se sinta.

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