Reportagens retóricas, biografias históricas, narrativas alegóricas, subversões teóricas. Qualquer coisa para devolver o prazer ao ato de abrir um jornal. E sempre o desafio de fazer do jornalismo uma simples conversa com o desejo de conhecer alguém.
A vida pulsa no universo eclético da multidão que diariamente transita pela passarela do Iguatemi
Pablo Reis (pabloreis@gmail.com )
O filósofo clássico Heráclito definia, com beleza peculiar às frases simples, o princípio de constante mutabilidade humana dizendo que “não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio: Ou o homem não será o mesmo, ou o rio”, ensinava. Provavelmente, a inspiração para o axioma do pensador tenha surgido de um banho no curso do rio Caystre na cidade de Éfeso, onde Heráclito nasceu, na antiga Jônia, atual Turquia. Já o intelectual contemporâneo Jean Baudrillard traz a questão da modernidade e da dissolução do indivíduo na selva da civilização com uma imagem ainda mais banal: a da passante que atrai a atenção e em seguida perde-se tragada pela multidão. Possivelmente, Baudrillard construiu sua metáfora caminhando pela Champs-Elysées, a larga, arborizada e imponente avenida que liga a Praça Charles de Gaulle à monumental Praça da Concórdia, em Paris.
O aposentado, filósofo de botequim e anônimo Jaime Souza, 68 anos, versão mal-ajambrada de um Jece Valadão, com a boca banguela escancarada e um tanto de malícia no palavreado entrou na briga de conceitos. “É nesse vaivém, empurra-empurra que a vida fica mais gostosa”, decretou, usando um duplo sentido que só percebeu quem pôde ver a cara de satisfação do idoso no meio do esfrega-esfrega.
Para chegar à sua lapidar proposição, o senhor de cabelos brancos e pele enrugada, mas vicejando libidinagem, não ficou elucubrando conceitos, exercitando dialética ou teorizando sobre o sexo dos anjos. Foi criar seu próprio teorema onde a vida pulsa: a passarela do Iguatemi.
Mais movimentada passarela da Bahia, a via suspensa que une o shopping de maior freqüência do estado ao Terminal Rodoviário de Salvador é uma pequena cidade de uma só rua, sem edifícios, nem instituições. No diminuto trecho de 227 metros de comprimento por 2,5 metros de largura, uma Entre Rios caminha todo dia, uma São Sebastião do Passé anda ou uma Xique-Xique passeia. A média é de 40 mil pessoas transitando diariamente pelo local, estimativa da Secretarial de Transportes Urbanos. Tamanho fervilhar de vida foi prato cheio para a inspiração lúbrica de seu Jaime, em uma terça-feira, lá pelas 12h30. Poderia ser numa segunda, ou no início da noite de sexta, até mesmo num domingo ao meio-dia. Não coincidentemente, estes horários representam os momentos de término de cultos na vizinha edificação da Igreja Universal do Reino de Deus.
Do prédio monumental e imponente em uma das zonas mais nobres da cidade, sai uma leva de fiéis que toma conta das ruas em direção à Estação de Transbordo ou ao Terminal Rodoviário. Nessas horas, andar por aquela elevada estrada de concreto é como atravessar uma via-crúcis. Ou então a própria materialização do purgatório bíblico. “Isto aqui é um inferno”, batiza uma jovem, baixinho para não atrair a ira do círculo de fiéis e Deus não tomar conhecimento da blasfêmia. Não se sabe sequer como a garota arrumou fôlego para o sussurro, espremida entre centenas de outras. Nesse momento, a multidão que transita de forma vagarosa tem dois objetivos: o primeiro é chegar aos seus pontos de ônibus; o outro com certeza é invalidar o princípio da impenetrabilidadeda física. No espremido corredor ao ar livre, nas horas mais críticas, é possível que um pedestre menos apressado e fisicamente desprotegido demore uns 20 minutos para vencer a compacta massa humana, quase um amálgama de gente.
Indo e vindo ao sabor do fluxo de pessoas, o estudante Ricardo Oliveira, 16 anos, 1,64m e 56 quilos, já não tem mais livre arbítrio no meio do povo. “Meus pés não estão tocando no chão”, avisa. Os que conseguem preservar algum senso de humor são capazes de perceber situações engraçadíssimas. Um rapaz de 20 e poucos anos, camisa preta estampada com a palavra Kiss (não o carinhoso ato de beijar e sim o grupo de rock), muito impaciente com o tumulto, pisa o calcanhar da senhora à frente, descalçando o sapato simples e sem salto.
Vestida com uma saia longa e uma camisa de cambraia presa aos pulsos, a despeito do calor infernal, a fiel exclama: “Que …” O palavrão apropriado para uma situação tão irritante não chegou a sair da boca da crente que há pouco tinha embebido a alma com o bálsamo eclesiástico da fé. O jeito foi continuar andando com o calçado saindo do pé.
Um pouquinho mais à frente uma morena, enfiada em um top floral e numa calça branca colada às pernas e quadris bem cevados se intromete no bolo humano. É o suficiente para catalisar todos os esforços e hormônios de um mulato facilmente identificado como obreiro da igreja. Para ficar no horizonte da física, pode-se caracterizar a ação do benfeitor como um choque perfeitamente inelástico, um impulso traseiro para maximizar a quantidade de movimento. Afinal de contas, sabe-se que o nono mandamento prescreve: se o próximo não estiver tão próximo da mulher. Em cinco minutos, a multidão vai arrefecendo e, muitos chutes de calcanhares, empurrões e princípios de desmaios depois, toma seu curso normal. Normal não significa esterilidade de emoções e casos pitorescos. Eles estão sempre presentes na Passarela do Iguatemi.
Manancial
Exótico microcosmo de gente, pólis da essência humana, a passarela é um manancial rico em personagens. Na zona mais próximo ao shopping, sentada sobre um papelão, Maria da Conceição Silva, 43 anos, é vista como aberração por grande parte dos transeuntes. Com o corpo inflado em 130 quilos de gordura e a perna direita completamente deformada pelos males da elefantíase, a mulher sobrevive da conciliação de asco e piedade transformados em cédulas de pequeno valor e moedas arremessadas em direção ao corpo da enferma. “Não olhe pra essas coisas”, diz o irmão mais velho de um garoto, protegendo os olhos do menino da visão do granuloso membro inferior da doente. Uma mãe utiliza o exemplo para dar uma lição de educação sanitária à filha: “Veja aí o que acontece com quem não se cuida”, avisa, mostrando a perna da mulher tumorosa com a presença das filárias nos vasos linfáticos.
Por trás da aparência grotesca, esconde-se a alegria contagiante de Maria da Conceição. Fez três cirurgias sem sucesso na parte posterior do joelho e ouviu recentemente a previsão de um médico de que precisaria amputar. Antes teria que assinar um termo de responsabilidade reconhecendo o alto risco da cirurgia e a possibilidade de falecimento. Tenta há seis anos uma aposentadoria do INSS por invalidez, mas sempre ouve a resposta de que a enfermidade não permite a aposentadoria. A passarela é um sustento temporário, apenas aproveitando o filão das compras de fim de ano. Consegue, em média, R$20 por dia, saindo de casa às 7h e retornando meia-noite.
“Faltam R$300 para eu completar os R$5,3 mil para comprar a cadeira de rodas motorizada”, contabiliza, depois de praguejar contra os taxistas que não aceitam conduzi-la por causa da aparência. As pessoas passam e seus olhares de soslaio e repugnância não intimidam Maria da Conceição. “A perna não dói, mas quando fico nervosa ela rasga e mina um líquido”, revela, mostrando três cicatrizes de cirurgias. Alternando o ponto entre a passarela e a avenida Manoel Dias da Silva, Conceição faz elogios ao local. “Ninguém rouba ninguém, os pivetes não perseguem. Aqui é nota dez”, vibra. Como que para referendar a observação, Conceição recebe uma nota de R$1 da professora de artes marciais Elisângela Francisco, que não parece concordar com a comparação ao paraíso. “Não gosto muito de andar por aqui. Minha mãe já foi assaltada”, alega, imprimindo mais velocidade na caminhada. Mas logo ela, que dá aulas de defesa pessoal, com medo de roubo? “Na verdade, o medo maior é de andar nessa altura”, revela com inusitada acrofobia.
Praticamente pendurado em uma das barras, sentado, sem nenhuma forma de fixação a não ser o equilíbrio corporal, o ambulante Ricardo Araújo, 25 anos, sustenta discretamente uma coleção de bolsas de fabricação própria que tenta vender a R$5 cada. Tem cinco anos vendendo na passarela. Tenta fugir dos constantes assédios dos fiscais da Sesp, cuja função é não deixar ambulantes ocuparem o local para vendas. Aliás, “fiscais da Sesp” é uma expressão jamais usada por ambulantes, que preferem o sinônimo pejorativo para os profissionais: o rapa. “A gente até entende que eles estão fazendo o trabalho, mas têm que ver que precisamos sustentar a família”, condena Ricardo, pai de uma menina de 2 anos. Em cinco anos trabalhando na passarela, acompanhou um teatro a céu aberto. “Aqui acontece de tudo: gente tropeçando e caindo, marido dando tapa em mulher, até os caras roubando”, denuncia.
No meio do papo, a doméstica Gilvanete Barbosa, 19 anos, depois de mais um dia de serviço na “casa de família” no Caminho das Árvores, encanta-se com o modelo da bolsinha. Acertada a pechincha (R$4,50), a única questão é escolher a cor da peça. O vendedor, que em dias bons vende quatro bolsas e nos ruins nenhuma, sugere: “Leve essa marronzinha que combina com sua pele”, acrescenta, olhos gulosos nas coxas da moça apenas parcialmente cobertas por uma saia de crochê.
Em direção à rodoviária, onde vai pegar ônibus para Marechal Rondon, Gilvanete passa por Genivaldo de Jesus Souza, um deficiente físico que prega passagens bíblicas diuturnamente e recebe caridade. “Deus tem uma missão para você”, conclama, enquanto Gilvanete passa pelo local sem dar muita atenção. A frase tanto pode ter sido para ela como para as cinco ou seis pessoas que andam simultaneamente ao seu lado. Com uma deformidade no tronco e nos membros que o reduz a um tamanho não superior a um metro, Genivaldo recita parábolas bíblicas continuamente. Sem poder se locomover, chega ao local às 9h, carregado pelo irmão Ubirajara. “Desde que aceitei Jesus, em 99, na Igreja Batista de Plataforma, vi que Deus tem um plano para mim. Uma vez, um jovem ia se jogar dessa passarela e, ao ouvir minhas palavras, desistiu”, confia. O slogan do shopping é “nenhum é igual a você”. O rio de gente que corre diariamente pelo espaço faz com que a passarela seja sempre a mesma e sempre diferente.
VIDA SUSPENSA
Passarelas projetadas por Lelé formam ecossistemas ricos em personagens
Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)
A passarela do Iguatemi é uma exacerbação do que acontece em outros equipamentos da cidade. Salvador tem 16 passarelas no modelo mais moderno, projetadas pelo arquiteto João Filgueiras e construídas pela Companhia de Desenvolvimento Urbano de Salvador (Desal), empresa de economia mista especializada na fabricação de mobiliário urbano de alta resistência e que também serve à iniciativa privada. Cada uma delas tem uma personalidade própria, a depender da espécie de transeunte que comporta. As quatro passarelas na Avenida Bonocô são gêmeas, abrigam três pontos de ônibus em ambas as pistas da avenida e na via exclusiva.
Não têm tanto movimento como outras mais trafegadas, mas possuem uma conotação clubística marcante. Principalmente em dias de Ba-Vi na Fonte Nova, são decoradas com bandeiras das equipes. A passarela do Detran é uma das mais antigas e foi decisiva para a diminuição do número de atropelamentos na região.
Na BR-324, algumas passarelas antigas e descobertas servem à população local. Uma delas, próximo à Brasilgás, bem conservada, recebe bom fluxo de passageiros carregando sacos, pacotes, malas e mochilas, que saem de São Caetano para pegar ônibus intermunicipais na parada. Mesmo sem ter um toldo de proteção, os transeuntes preferem usá-la até em dias de chuva a atravessar a rodovia. As passarelas da Avenida ACM viraram ponto preferencial de suporte de galhardetes e cartazes no período eleitoral.
Na Avenida Centenário, no Chame-Chame, uma passarela no Shopping Barra é a que mais se assemelha ao perfil da similar no Iguatemi. Com um fluxo de pessoas razoável, configura os jogos de poder e as implicações sociais observadas na principal expoente do fenômeno das passarelas. Logo de início, uma senhora, daquelas com aparência de que fazem passeios vespertinos em supermercados, reclama da ausência de iluminação artificial no local. O ambulante Antônio Barbosa, 55 anos, vendedor de bugigangas paraguaias, confirma a queixa, ressaltando que não é feita manutenção há quase dois anos. “Trabalho no escuro até a hora do shopping fechar”, afirma Antônio, salientando que a partir das 18h, “hora que o rapa vai embora”, trabalha mais livremente. A chuva começa a cair e ele rapidamente muda o nicho de mercado, estendendo sombrinhas.
A estratégia dá certo. Um senhora, roupa molhada, cabelo sarará escorrendo água e entrevendo calvície,questiona: “Quanto é?” “Cinco reais”. Escolhe uma estampada em rosa com motivos florais, a mais espalhafatosa das peças.
Embate de classes
A reprodução do embate de classes não se esgota. Dois rapazes com estilo de geração shopping center (roupas de marca, tênis da moda, cabelos com gel) emendam: “Ô, véio, quanto é o guarda-chuva?” “Cinco reais”.
Ambos saem sem nem um agradecimento. Um senhor vestido com calça de linho e camisa social se aproxima e sequer pergunta o preço. Aponta para a sombrinha em tons marrons.”Aquela ali”. Só depois questiona o valor:”É cinco reais, não é?” E leva. Antônio aponta para um vendedor, poucos metros adiante, que se recusara a dar entrevista. “Aquele é safado, quer prejudicar chamando o rapa. Já tomou porrada porque é dedo-duro”. E vende mais uma sombrinha antes da chuva cessar.
Sentados em poses que poderiam ser confundidas com indolência, quatro hippies fazem artesanato em palha e bijouterias. Depois de passarem por Itubiara, Brasília, Juazeiro e Petrolina, a previsão é de retornar logo que arrecadarem o dinheiro para a passagem. Um deles, Gilberto Gonçalves, mostra uma sacola com uma muda de roupa puída, uma marmita e uma manta velha. Enquanto isso, dois vendedores de loja de marca, fardados, perguntam quanto custa um colar. Pela expressão de reprovação, não gostaram de ouvir R$10. Mais na frente, um casal branco de estrangeiros compra um cinto pretensamente de couro nas mãos de outro ambulante. Ao lado, o vendedor de doces oferece uma iguaria exótica ao paladar europeu: beijuzinho molhado de tapioca. “Faço por R$0,50”. E nessa, a integração étnica vai se desenrolando. A passarela não tem fronteiras.
Mais do que equipamentos facilitadores do trânsito, as passarelas de Salvador se transformaram em pequenos ecossistemas. A do Iguatemi é insuperável. A dupla de soldados da PM, Lacerda e Vieira, sabe muito bem disso. “Aqui dá de tudo. De estelionatário a viado ordenando o bofe a largar o outro”, avisa Vieira, óculos escuros no rosto e pinta de tira do antigo seriado Chips. Encostados nos peitoris de ferro ou fazendo uma ronda pelo local, os dois formam uma das três duplas de policiais que se revezam em turnos das 7h às 13h, 13h às 19h e 16h30 às 22h30. “Depois que o policiamento ficou constante aqui, o índice de ocorrências caiu muito”, assegura o orgulhoso Lacerda. “Antes, tinha muito pivetinho praticando pequenos furtos”, completa. Basta terminar de falar para dois menores passarem, tentando disfarçar a apreensão. “Aqueles dois ali são ladrõezinhos, mas como viram que estamos aqui vão procurar outro canal”.
Velhos tarados
Lacerda e Vieira já viram muita história na passarela. “Teve briga por causa de traição, flagrante de adultério, mas também tem muita gente que deixa o carro aí no estacionamento do shopping e se encontra por aqui”, entrega Lacerda, detetive particular nas horas vagas. “Ultimamente, tem aparecido muito velho tarado. Eles entram no bolo de gente para ficar roçando o braço nos seios e nas nádegas das mulheres. Ou então oferecem R$20 ou R$30 para as garotas mostrarem os seios. Alguns conseguem”, detalha. Um senhor de paletó, acima de qualquer suspeita, caminha rapidamente carregando uma pasta e, quando abordado pela reportagem do Correio da Bahia, dá de ombros: “Tô ocupado agora”. O soldado Vieira dá sua versão para o repúdio do idoso.
“Aquele mesmo é um dos velhos tarados”.
Em uma informal convenção para a viabilização do trânsito, as pessoas adotam, nas passarelas, o critério de fluxo semelhante ao dos automóveis em rodovias: duas filas caminhando em direções opostas com os pedestres à direita. Geralmente, esse tipo de escolha facilita o trabalho dos distribuidores de panfletos. Eles são facilmente encontrados oferecendo de limpeza de estofados a dedetização, de dinheiro fácil a consultas ao tarô.
Para Ana Lúcia Santos, 23 anos, o vaivém de gente vai ser transformado em um polpudo aumento nas comissões. Ela tenta cadastrar associados para o cartão de compras de um supermercado próximo. Por que escolheu o local? “Porque aqui tem muito movimento”, responde, sem querer perder tempo e mais um potencial cliente. Em 30 minutos, conseguiu 22 adesões, quase um recorde do marketing one-to- one. “O produto também é bom, a gente dá 40 dias para pagar e quatro vezes sem juros, sem taxa de anuidade”, completa como exercício de modéstia.
Quando menos se espera, a circulação é atravancada, as passagens são interrompidas. Na frente de uma fileira de pessoas, um deficiente físico, apoiado em muletas, não consegue manter a mesma cadência da maioria, provocando um engarrafamento humano parecido com o de carros que acontece na pista alguns metros abaixo.
Um pouco atrás, sem perceber as razões do congestionamento, um rapaz resmunga: “Pôxa, até parece que tem aleijado na fila”. E na ala oposta, em outro momento, uma mulher reclama com a garota da frente: “Ih, essa aí está desfilando”. Desfilar, desfilar mesmo, a estudante Carolina Santana, 16 anos, só poderia nesse tipo de passarela. Baixotinha, um pouco acima do peso, cabelos desgrenhados e rosto com espinha, não tem nada do biótipo e do glamour das modelos que desfilam suas magrezas pouco ocultas em roupas chiques no Iguatemi Collection. Lá vai Carol no mesmo passo, sem dar bola às queixas, pisando em ovos e tendo um público um pouco mais hostil do que os dos desfiles de moda. A passarela popular é assim mesmo: dinâmica, plural, sem preconceitos.
*publicado em 12 de janeiro de 2003, no Correio Repórter
Porto, que guarda em si os signos da melancolia pela despedida, a exaltação ao eterno regresso. Algumas reportagens podem tocar para sempre quem escreve, como um prêmio e também uma cicatriz de nostalgia.
“Quer saber como confirmar se é estivador mesmo? Basta procurar o apelido. Se não tiver, pode excluir da escala porque é intruso. Podem ser os mais simples e óbvios (como Hélio Grande), outros reverentes (Urso), ou até depreciativos (Neguinho Furado). Outra regra: não fale em UMA mulher. Estivador tem sempre mais de uma, mesmo que para isso use eufemismos os mais variados: namorada, amiga, amante ou até camaradinha. Os filhos são contados de forma diferente: divididos entre os “de casa” e os “de fora”.
É lindo quando o sol dorme bem em frente ao Porto de Salvador, o porto do Brasil. Vai puxando suavemente o cobertor da claridade e ensombrecendo o atracadouro. Deixa os guindastes dourados desenhando formas alongadas no chão que tem uma feição secular. São imemoriais e perenes as pedras que calçam a via e o pôr-do-sol que testemunha a vida do cais.
Vida de cais fala de saudade… e de um lugar que é a antecipação da solidão.
Não se sabe se são os mariscos, o samba de roda ou o café coado no pano, mas alguma receita faz as pessoas viverem mais de um século no Recôncavo Baiano. E isto não é -apenas- dona Canô
Pablo Reis
pabloreis@gmail.com
Santo Amaro da Purificação amanhece em um sábado e nem tudo é dona Canô nas últimas notícias, dez dias após ela completar 101 anos. Falta uma semana para as eleições municipais e os carros de som fazem barulho falando de candidatos, enquanto nas rodas de conversa comentam-se sobre preconceito racial a um postulante a vice-prefeito ou comportamentos hipócritas de evangélicos com dissimulações partidárias.
Nesta madrugada, um crime na feira também mobilizou as atenções. Alguém tentou roubar um comerciante e terminou recebendo uma facada. Ou foi o inverso e a vítima que terminou esfaqueada. Todos ficam tão preocupados com a presença de duas policiais civis com cadernetas riscadas de pistas em esferográfica que ninguém sabe dizer exatamente como tudo aconteceu. Ou então, há um receio de se comprometer com depoimentos que sejam precisos demais.
Pois esse burburinho na feira – que terminou comprometendo até as vendas e diminuindo o volume dos gritos dos camelôs de sandálias de borracha, ou de folhas de louro e tangerinas – abafa um pouco a onipresença de dona Canô na cidade. Uma liderança consolidada há pouco mais de 35 anos, desde que os filhos começaram a cantá-la pelo Brasil, mas que parece tão forte que se imagina secular, como a idade dela. Parece que sempre foi assim e pronto.
De alguma forma, Canô é uma associação visual imediata ao município de aparência tristonha, a 75 quilômetros de Salvador, cortado pelo rio Subaé. É como lembrar das caras e bocas do ator Carlos Moreno ao falar de Bombril, ou da imagem loira da mulher da caixa de palitos de dente, que com certeza não se chama Gina e provavelmente só tenha dentes postiços atualmente. Fala-se em Santo Amaro e logo saltam à memória os passos miúdos e o andar encurvado que diminue um pouco mais o metro e meio de altura da matriarca dos Velloso.
Dona Canô, o nome artístico de Claudionor Viana Teles Velloso, lança logo o seu sorriso meio envergonhado de velhinha, movido a flash. Caminha vagarosamente os seis passos de calçada antes de entrar no Ford Fusion, cujo motorista particular estacionara na porta 10 minutos antes, logo que o secretário ligou avisando que ela já tinha terminado o banho. Vai ser conduzida até um almoço com oficiais da polícia militar, mas não deve ficar até o final.
Abuso da (autor)idade
Neste momento, Maria Francisca de Assis Góes, 103 anos, está irritada por causa de uma falta de apetite que não combina com a voracidade com que costuma atacar um prato de mocotó. Dona Chica não é nem um pouco benevolente com a análise sobre o próprio humor: “tô abusada hoje”. E logo emenda a observação sobre o ânimo arrasado com um diagnóstico visual dos menos empolgantes (“não enxergo direito, é uma nuvem horrorosa, hoje mesmo amanheci nervosa”).
Apresentar Dona Chica nesses termos de quem só vê uma vida nublada é a melhor maneira de mostrar uma senhora amarga, rabugenta, a metáfora de uma velha; ou seja, uma grande injustiça. Com todos os abusos e nervosismos atribuídos pela neta a um resfriado recente, ela faz uma recepção encantadora na sala adornada com os móveis da modéstia e umas cadeiras de quem não está planejando visita pelo menos até o 104° aniversário. Passa um pouco do meio-dia e a centenária anfitriã está mais do que disposta a fazer a segunda coisa que mais gosta, além de completar um samba de roda: contar a própria vida. Diferente de dona Canô, que mesmo sorrindo para as fotos não tem tempo de “fazer a sala” porque está atrasada para o almoço de alto escalão.
Sorridente senhora
No alto do São Francisco, Maria Domingas Nepomucena, sentada na varanda da casa, parece se entreter com um movimento entediante de homens lavando carros e motos com registro de IPVA de pelo menos 20 anos de comprados. Mas ela olha mesmo é para dentro de si, coisa de 80 anos atrás, quando pegava uma estrovenga nas mãos e uma moringa d´água, com uma lata de carne seca e farinha para passar o dia na roça, capinando um terreno que nunca parecia ficar completamente liso, o que era sinônimo de trabalho pesado por um bom tempo.
Época boa, de suar durante toda a manhã e dar uma cochilada debaixo da mangueira naquele meio-dia de sol a pino para depois continuar até ficar escuro. Hoje, estas meninas não me deixam pegar nem em uma vassoura. O pensamento de dona Domingas, reprovando o próprio descanso compulsório imposto pelas filhas não é nem um pouco comum para quem tem 103 anos. (Aliás, são tão raros aqueles que a gente pode apontar com mais de século de vida, que fica até difícil destacar qual o pensamento comum nesta idade).
O certo é que dona Domingas não está conformada em ficar ali sentada, com aquela expressão cândida de senhorinha, e logo à chegada de um estranho aparentando interesse ela responde com uma gargalhada e uma reação felina. Para levantar da cadeira, não faz a atitude canônica de esperar o ombro dos netos como apoio e ficar resmungando de dores nas costas e de pressão baixa. Simplesmente se ergue com o impulso ejetor de um impeachment e a velocidade de explosão de um air-bag. A descrição parece tão exagerada que é necessário pedir que ela repita tudo para uma filmagem. E ela repete, sem fazer cara de que o pedido é uma sentença de maus-tratos. Sim, agora está confirmado: dona Domingas é um air-bag, com algumas rugas.
Embaixatriz vitalícia
Enquanto isso, dona Canô está adequadamente acomodada em uma cabeceira de mesa, pajeada por tenentes e majores, distribuindo sorrisos e negando excessos de sobremesa, de acordo com a recomendação diligente do filho Rodrigo. Para o alto comando da PM na região, qualquer tentativa de agradar a embaixatriz, ora primeira-dama vitalícia, ainda é pouca.
Dona Canô realmente contabiliza sucessos como uma voluntária social das causas de Santo Amaro. Um dos mais recentes foi a bandeira pela instalação de um campus da Universidade Federal do Recôncavo, até mesmo exortando o engajamento dos mais jovens. Só que subir ao panteão de liderança comunitária teve o impulso do sucesso dos filhos mais notórios. Caetano e Bethânia amplificaram nacionalmente o nome da mãe, que seria eleita num plebiscito do inconsciente coletivo como representante municipal. Um perfil publicado no jornal O Estado de São Paulo no ano passado , por conta do centenário, insiste que dona Canô é muito mais do mãe de Caetano e Bethânia. Mas já no título dá pra ver a sombra do filho em um verso de canção: Essa voz tamanha.
Dona Chica e dona Domingas não tiveram entre os Valdomiros, Ednas, Sílvias e Carmelitas que pariram nenhum artista ou celebridade, por isso ficam com a fama restrita, de velhinhas nascidas e criadas na roça. Um recorte de jornal concede a Chica o certificado que ela precisa para exibir um instante de importância além do rio Subaé – impresso em papel de má qualidade. É uma reportagem que relembra a visita do presidente Lula, em que ele deu um abraço na anciã, recomendou ao prefeito que cuidasse dela e deixou duas lágrimas propositadamente escorrerem dos olhos marejados. Mesmo assim, daquele dia em diante, o prefeito João Mello nunca mais encontrou com ela.
O grande desejo da vida é apenas conhecer a repórter Wanda Chase, da TV Bahia. Enquanto o dia que considera grandioso não chega, vai se ocupando das lembranças mais remotas da infância, como quando tinha pouco mais de oito anos e viu a irmã frente a frente com uma cobra na roça, que ia e vinha mostrando a língua e serpenteando à espera de um bote mortal.
Esses flashbacks de longo alcance são explicados pela ciência. “Em uma idade avançada, o cérebro começa a perder a capacidade de reter memórias recentes e passa a recuperar lembranças cada vez mais antigas”, observa o estudante de neurociências, Sandro Iego. A sorridente Domingas também se reencontra em cenas remotas. Credita a boa saúde ao fato de ter sido “criada em casa de branco, comendo do bom e do melhor”. Irrita-se sempre que algum dos nove filhos tenta regular o desejo de comer mocotó, buchada e outras iguarias de valor calórico tão alto quanto a satisfação gastronômica que proporcionam.
Mal do século
Em Santo Amaro, passar dos 100 anos não é velhice, é tendência. Voinha já ultrapassara os 100 quando morreu no ano passado. E Zezinho Belmont chegou a 104 anos de idade. Há uma espécie de contradição nessa longevidade compartilhada, justamente poque a cidade a 75 quilômetros de Salvador ainda convalesce da contaminação pelo chumbo, acumulada nos 33 anos de atividade da Cobrac, até 1993, décadas produzindo quase 500 mil toneladas de uma escória composta cádmio, chumbo e outros metais pesados.
Uma herança maldita que chega a ameaçar até a pequena Alícia, a bisneta de dona Chica que nem completou um ano de idade ainda. Se não tem uma notoriedade nacional, dona Chica não pode se queixar de popularidade local, que faz dela uma pitonisa em Santo Amaro. “O povo gosta de mim. Quando chego em qualquer lugar, parece que sou uma boneca”. Chica não sabe ler, nem escrever e sob critérios meramente formais de educação poderia mesmo ser comparada a uma boneca, sem vida, sem intelecto. Mas a agilidade mental e a maturidade secular sugerem uma sabedoria invejável. “A juventude está se acabando na faca, na bala e nas drogas”, reflete ela, sob os cabelos grisalhos que só admitem o enxague com sabão de coco.
Do ponto de vista físico, mantém um alongamento exuberante, alvo de inveja das “garotas” de 70 anos do grupo Envelheça com Saúde, onde dona Chica é uma das raras que consegue tocar os pés. Mantém uma rotina de banho frio independentemente de estação do ano. Desse jeito, recebeu um carimbo de vida longa na mais recente bateria de testes no ano passado. Não toma nenhum remédio, apesar da recomendação de um médico para que ela administrasse umas pílulas para pressão alta. Só que nem ele mesmo pode cobrar nada, porque faleceu no ano passado, aos 60 e poucos, enquanto dona Chica continua aí, desafiando qualquer prescrição de limite de vitalidade.
As três senhoras do destino da cidade pouco aparecem juntas, a não ser em um porta-retratos exposto na sala de uma das filhas de Domingas, no bairro Trapiche de Baixo. Já está um pouco antigo, o vidro rachado, uma prova de que a imagem gastou no tempo.
É a filha de Chica, Edna, quem dá uma deixa sobre como as centenárias de Santo Amaro, embora ligadas em longevidade, estão a gerações de distância pelo tipo de tratamento dedicado a cada uma. “No aniversário dela (Chica), dona Canô vem. No de Dona Canô nunca chamam ela. Todo mundo só fala de Canô, Canô…” É porque todo mundo só canta Canô, Canô.
*reportagem publicada em outubro de 2008, na extinta Revista da Metrópole
Onde o senso comum se acostumou a enxergar dor e despedida, a descoberta de pequenas aventuras de alegria e sobrevivência. Desde a inauguração, em 1836, o Campo Santo coleciona mais de 170 anos de histórias que o tornam um cemitério incomum. Alvo de uma revolta popular que resultou em sua destruição parcial, em meados do século XIX, o equipamento sobreviveu à rejeição inicial para se tornar uma necrópole que reproduz signos da cidade dos vivos. Ali estão resumidos os conflitos de classes, dispostos nos imponentes mausoléus da entrada, em oposição às covas rasas dos fundos. Ali estão concentradas oportunidades de renda para milhares de famílias. Há também uma improvável coleção de episódios pitorescos, como um filho que sepultou a mãe em meio a piadas. O que nunca morre, entretanto, é a saudade pungente que domina as alamedas do Campo Santo, de tanta morte e vida.
CAMPO DA SAUDADE Sentimento primaz no mais antigo cemitério de Salvador, a melancolia rende histórias de dor e emoção
O espectro da saudade ronda as alamedas sem vida do Campo Santo. A despeito de qualquer prova científica, o sentimento é o fantasma real assombrando de tristeza os que convivem por ali. No dia de Finados, o espaço chamado Vela Votiva se torna uma concentração do luto. As chamas bruxuleiam nos pavios e em volta delas os apelos de pessoas que se comprimem no bastidor de melancolia. O estreito cercado vira um amontoado de parafina, o subproduto da passagem de milhares que acendem um pouco da memória de um ente querido.
“É… aqui acaba tudo”, reflete, de forma inequívoca, um homem com uniforme de empresa, aparentemente desviando alguns minutos do serviço para homenagear um parente morto. Em cada epitáfio, o resumo de uma saudade. No Dia de Finados, o fluxo de pessoas nem sempre atende a todos os jazigos. Ouve-se uma frase de alguém que parece só fazer uma visita anual ao Campo Santo, o cemitério mais antigo da Bahia, construído há 170 anos para abrigar o luto incessante da capital: “o que tá bem cuidado tem parente, o que não tá cuidado não tem parente”.
São 280 sepultamentos por mês, em média, e cada um deles tem sua própria caravana de melancolia. Entre os imponentes, que são sepultados em mausoléus concebidos como obra de arte, e os humildes, velados na própria capela e enfiados a sete palmos da superfície de um terreno concorrido, há a uniformização do lamento, independente de classes sociais. Só que nem tudo é dor e morte no Campo Santo, uma empresa que representa a sobrevivência para 52 funcionários diretos e centenas de agregados. Há também contemplação e alegria, embora a visão primordial seja de um ambiente lúgubre, temido e aterrador.
O vento quando sopra nas ruas da quadra 19 arrasta folhas e poeira, carrega besourinhos que insistem em pousar nas blusas dos desavisados. É lá que Valder Menezes descansa sua saudade matutina. A solidão de Valder multiplicada por 60, os anos de convivência com a esposa. Em frente ao carneiro gravado com o nome dela (uma gaveta em um dos muitos paredões), ele senta no banquinho branco que já deixa guardado na capela do Campo Santo. Só que é impossível descansar. Passa até duas horas lendo para ela, conversando com ela, lacrimejando com ela, um ritual obrigatório que parece minimizar o sofrimento de ser só. Tem sido assim há um ano e quatro meses, assiduidade comprovada por todos os funcionários. Qualquer um consegue reconhecer aquele senhor como o símbolo humano da resignação, embora ninguém tenha tido interesse em saber seu nome.
Aleluia
O homem do banquinho gosta da leitura silenciosa de livros, das preces sem voz, da conversa com a amada. O ordenamento litúrgico de até que a morte os separe não funcionou para ele. O falecimento da mulher provocou o distanciamento físico, mas ele recusa se afastar de um sentimento tão vívido como o amor. O nome dela é a glória: Aleluia.
Aleluia Farias Menezes, nascida a 2 de outubro de 1927, morta em 22 de agosto de 2006, conforme a lápide sempre limpa e ornamentada com flores e uma fotografia em moldura dourada, contou com a dedicação do esposo até o último suspiro. Ela, que começara a fumar desde a juventude, sem interrupções, terminou internada com complicações pulmonares, infarto e derrame, durante 120 dias. E, nestes quatro meses de agonia, o marido manteve a rotina de visitas vespertinas. Almoçava, tomava um ônibus do Rio Vermelho até o Bonfim, e ficava aguardando chegar 16h, horário que liberam a entrada de visitas no hospital da Sagrada Família. Permanecia ao lado da esposa até pouco depois das 18h, quando solicitavam sua saída.
Fez assim durante quatro meses e só percebia a pele cada dia mais escura, eliminando líquido, embora os médicos insistissem que ela estava evoluindo para a cura. Chegou a acreditar no prognóstico dos especialistas e decorou o quarto totalmente para quando ela voltasse para casa. Um dia, pouco depois das 5h, ligaram para sua casa pedindo que comparecesse ao hospital. Ele já sabia qual seria a notícia e por isso levou o dinheiro que havia reservado ao sepultamento. Injusto para Valder enterrar a esposa amada, logo ele que sempre insistiu nos perigos do cigarro, sempre foi contra, mas como percebeu que não valeria a pena continuar lutando depois de décadas, ele mesmo passou a comprar as três carteiras diárias para a mulher.
Valder se sacrificou pela esposa. Quando casaram, ele disse que ela não precisaria trabalhar, que ele proveria tudo. Hoje, está preocupado com o local onde o carneiro dela está localizado. Já comprou o jazigo perpétuo da companheira na quadra 13, por R$1100 à vista, mas só pode remover depois de 3 anos, tempo em que os ossos podem ser trasladados. “Tomara que ela não tenha mumificado para poder ser transferida para um lugar mais fechado, mais decente”.
Acordou cedo para ir à missa que freqüenta na Piedade ou na igreja de São Bento, mas não teve celebração neste dia da Conceição da Praia. Chegou antes do habitual ao Campo Santo, retirou o banquinho da sacristia da capela, onde é autorizado a guardar o assento, e foi para lá levando o livro Salvador dos contos, cantos e encantos, escrito por um velho amigo dele, Geraldo da Costa Leal. Sonhou com Aleluia nesta noite. Ela estava em frente da casa na rua Fonte do Boi, como sempre ficava aguardando ele retornar para dar um abraço. Só que dessa vez estava chorando. “Será que ela tá precisando de mim para alguma coisa? Acho que está bem”.
Entre casais que convivem por muito tempo é comum notar que a morte de um geralmente abrevia a existência do outro. Este senhor já deixa o banco portátil branco guardado na capela para poder utiliza-lo todas as manhãs na companhia com a esposa, que jaz sob o mármore. “Peço a Deus que me dê pernas para que não possa deixar de vir aqui”.
Entre tantos jazigos, tantas orações silenciosas, uma despedida escrita em papel ofício encardido vai flanando entre os túmulos. É como se ela valesse de recado para cada um residente da cidade dos mortos. O texto sobrevoa lápides com suas letras escritas em um português apressado contrapondo a gravação no mármore, registrada para sempre com alguma tipologia imponente. “O preço da felicidade é a saudade”, assinado por Nilson, com a data 2 de novembro de 2007.
O soluço doído de um homem grisalho que passeia pelas moradas de entes queridos, dezenas deles, sempre tocando nas placas como se fizesse carícias nos nomes. Ele termina a peregrinação no túmulo da avó e ali ajoelha, encosta a testa na lápide, está prostrado pelo fardo de uma agonia reincidente. Apunhalado pelas lembranças, ele chora como se ninguém estivesse vendo, como se isolado do mundo em um quartinho onde lhe falta fôlego. É saudade que não passa e o Campo Santo cobra essa dívida em lágrimas.
CAMPO DA HISTÓRIA Construção do Campo Santo obedeceu critérios de saúde pública e enfrentou resistência popular
Microcosmo da realidade, o Campo Santo é uma cidade mortuária que reproduz as condições de embate de classes da sociedade dos vivos. A partir da fundação, quando apenas os indigentes e escravos eram recolhidos para as covas rasas, até chegar na fase da compreensão burguesa sobre a necessidade de enterrar seus entes queridos longe das casas, o cemitério é um ponto de acolhimento sem distinção. Não chega a ser o caso de uma democracia do além, ou um comunismo para a eternidade – que iguala a todos no momento da despedida -, mas é uma síntese funérea das diferenças.
As noções de higiene e saúde pública exigiam a construção de um cemitério distante de zonas residenciais. E isso, na década de 30 do século XIX, poderia ser encontrado na estrada para o Rio Vermelho, já fora dos limites da cidade, no morro do Outeiro Grande. Na Fazenda São Gonçalo, em 1836 começa a construção do cemitério do Campo Santo, alvo de protestos da comunidade.
No início do século XIX, a pressão dos médicos sanitaristas era pela proibição de enterros em ambientes fechados. Os higienistas das décadas de 1810 e 1820 usavam a teoria em voga dos miasmas, espécies de vapores formados pela decomposição dos cadáveres, que seriam nocivos para a saúde humana. Uma lei do Governo Imperial de 12 de novembro de 1828 dotava as Câmaras Municipais de responsabilidade para legislar sobre o assunto.
A casa legislativa de Salvador decretou a postura n° 20 encerrando de uma vez por todas os sepultamentos em igrejas, conforme registrado pelo engenheiro Paulo Segundo da Costa no livro Campo Santo – resumo histórico.
Primórdios
A cidade dos mortos precede a criação humana de se reunir em aldeias. A idéia de um local para repouso eterno, segundo estudiosos, é mais antiga do que a fixação humana em outros sistemas de moradia. Uma caverna, uma cova marcada por um monte de pedras, eram os indicativos da reverência aos cadáveres.
Na cidade de Bizâncio, capital do antigo império romano do oriente, os cemitérios ficavam nas imediações das igrejas. Os rituais fúnebres eram feitos no terceiro, nono e quadragésimo dia após a morte, com carpideiras pagas. No Brasil colonial, os senhores de engenho eram sepultados no terreno de suas casas, em capelas feitas como continuação das sedes de habitação.
O primeiro cemitério a céu aberto que se tem notícia em Salvador é o do Campo da Pólvora, assinalado em plantas da fortaleza datadas de 1715. O terreno ocupava um retângulo murado no local conhecido como Pupileira. Na prática, funcionava como o espaço para a inumação dos cadáveres de escravos e indigentes. Com o início das atividades do Campo Santo, o Campo da Pólvora foi desativado e vendido em 22 de novembro de 1852 ao conselheiro Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos.
A cemiterada
Dois dias depois da inauguração do Campo Santo por uma empresa privada, em 25 de outubro de 1836, uma mobilização popular terminou provocando a demolição do muro frontal e de uma parte da capela. O que seria uma reação coletiva contra o novo cemitério terminou descrito pelo provedor da Santa Casa de Misericórdia, em 1912, comendador Teodoro Teixeira Gomes, como uma orquestração de interesses vilipendiados. No discurso, citado no livro Campo Santo – resumo histórico, ele relembra que confrarias e ordens terceiras “concitaram o povo a acometer contra o cemitério do Campo Santo; aí chegando, o galgaram e desmantelaram como se fora um bastião”.
Dias depois, a lei n°17 seria revogada e junto com ela cairia o contrato de concessão para a empresa, que seria indenizada em 12 de abril de 1839. A Santa Casa compraria, pela quantia de 10 contos de réis, o terreno totalizando 307.784 metros quadrados.
Até por volta de 1860, persistiu o costume de enterrar as pessoas em recintos fechados, em capelas, igrejas e outros ambientes privados. Os primeiros sepultamentos no Campo Santo, em 1° de maio de 1844, foram de escravos e indigentes. À época, o transporte da urna funerária já revelava uma distinção social: homens livres e nobres eram conduzidos em carros puxados por cavalos, com quatro rodas; os escravos mortos eram levados em veículos de duas rodas.
Macas feitas com panos e couro cru eram usadas para o transporte de cadáveres de pobres, com o nome de bangüês. A mudança para o Campo Santo implicava em uma distância de 4,5 quilômetros entre o Hospital da Santa Casa, na rua da Misericórdia, e as covas. Foi em 1846 que carroças começaram a ser utilizadas como forma de diminuir o esforço dos escravos.
No início da utilização de bondes elétricos no transporte urbano, em 1898, a linha de n° 7 tinha como destino o bairro da Federação. Em pouco tempo, a empresa adotou o bonde funerário, justamente para suprir a demanda dos sepultamentos. Uma oferta diversificada de veículos, conforme o relato da folclorista Hildergades Vianna, no livro A Bahia já foi assim: “havia bondes com formatos especiais, preços tabelados, conforme a classe, com o fim exclusivo de levar caixões de defunto para o cemitério. Os cheios de cortinas e sanefas, plumas e tapetes, eram para os ricos. Para os pobres havia o franguinho d´água, quase nu de adornos, com modestas sanefas, que voavam quando o veículo corria nos trilhos. O bonde-misto, conduzindo ao mesmo tempo o defunto e os acompanhantes, era ainda mais modesto. Para os remediados, contava-se com um discretamente decorado, com laços e cortinas pretas.”
Obras e invasões
Nas primeiras décadas de funcionamento, o cemitério do Campo Santo estava em obras constantes de ampliação com uma variação anual de 600 a 1300 enterros. Mas no exercício de 1855 a 1856, este número salta para 4225. E a explicação é dada na epidemia de cólera morbus que assolou Salvador em 1855. Apenas em dois anos da década entre 1852 e 1862, a balança entre despesa e receita esteve para o lado do lucro. A capela foi inaugurada em 7 de junho de 1874 e custou à Santa Casa 104:737$000 (104 contos e 737 mil réis).
As primeiras habitações construídas por funcionários que prestavam serviço ao cemitério também deram início ao processo de diminuição do terreno original da fazenda São Gonçalo, comprado integralmente pela Santa Casa de Misericórdia. Da planta inicial, o cemitério ficou apenas como uma ilha em volta de sua própria cartografia. Foi diminuído como se fora um picolé sendo mordido pelas laterais, até restar apenas o núcleo mais demorado de derreter. “A construção de muros cada vez mais altos foi a solução para impedir a perda de mais área até que não sobrasse nada”, explica o gerente do cemitério, Antônio Quadros, um senhor afável e gentil que até para falar de um tema polêmico como esse não consegue perder a paciência.
Em 2002, estimava-se que 90.000 m2 continuavam pertencendo à Santa Casa, dos mais de 300.000 m2 do terreno. Mas o levantamento topográfico mais recente, de 2007, calculou em pouco mais de 55.000 m2 utilizados pelo cemitério. Além disso, as áreas onde estão construídos dois postos de gasolina, na avenida Centenário e na Federação pertencem à instituição, mas são arrendadas.
Os mais de 200.000 m2 perdidos do Campo Santo serviram para originar os bairros do Alto das Pombas, a partir da década de 40, e do Calabar, a partir de 1970. A perda do terreno do é apontada como resultado de uma chaga social que é o déficit de habitação. Um dos últimos locais ocupados foi o Grotão da Mangueira, onde havia o projeto de construção de um cemitério vertical.
A partir da década de 70, a diminuição do espaço do Campo Santo começou a entrar em contradição com o problema da demanda de enterros. A expansão do cemitério esbarrava com a redução do espaço físico original. Em 1984, as notícias de jornal indicavam a asfixia de sepultamentos. Vinte anos depois, os enterros continuam sendo feitos, em ritmo controlado. O cemitério diminuiu de tamanho, mas supre o recebimento dos mortos, e responde pela sobrevivência de milhares de vivos.
CAMPO DA SOBREVIVÊNCIA O comércio em torno do cemitério rende o sustento de centenas de famílias
O Campo Santo tem 52 funcionários, sendo que 35 deles são da equipe de inumação e exumação. Só que o mercado da morte garante a sobrevida de muita gente. “Não tenho dúvidas em afirmar que o cemitério é a maior empresa do Alto das Pombas. Praticamente todo o bairro sobrevive direta ou indiretamente de serviços relacionados a ele”, sustenta o presidente da Associação de Moradores, Rodrigo Alves. Desde o guardador de carro (pelo menos quatro disputam 14 vagas informais na rua lateral ao cemitério), até o gravador de lápide, muitos serviços ficam destinados a membros da comunidade. Um grupo de estudantes do ensino fundamental do bairro encarregado de fazer a pesquisa sobre a história e a cultura no cemitério e chegou à conclusão de que “a morte é vital para a maioria dos vizinhos”.
É um segmento que dificilmente enfrenta a recessão porque a demanda é incessante, a não ser que você seja um dos personagens do realismo fantástico imposto por José Saramago no livro Intermitências da Morte, onde, repentinamente, os falecimentos deixam de acontecer, estabelecendo um caos social. Apesar de a vida eterna ser o sonho da quase totalidade dos lúcidos poucos são os que refletem sobre a necessidade social da morte. A morte que libera os leitos de hospital e não prolonga a agonia da saúde pública, a morte que impõe uma salutar renovação de agentes sociais, reproduzindo o ciclo biológico que presume o amadurecimento e o fim do organismo. E, principalmente, a morte que garante a existência dos que orbitam a constelação funérea de um cemitério.
É a morte que há 35 anos norteia a vida e a obra de Ismael Santos Sales, um dos mais conhecidos comerciantes do Campo Santo. Desde criança, ele percebeu a oportunidade no momento de angústia e dor de seus clientes. Ficava rondando a porta do cemitério, fantasma pequenino em busca do lucro, com uma lata de manteiga na mão oferecendo flores de adornar jazigo, tentando cativar uma negociação em meio ao luto generalizado. Adulto, abriu uma portinha para a floricultura e, em 1988, comprou uma funerária.
Os crisântemos e as rosas são as flores mais usadas nesse ramo. A menor coroa custa R$40, a mais cara pode ser até R$200. O caixão mais barato é de R$300, o mais caro é vendido por R$8,5 mil, já com abatimento. Em Dia de Finados, a venda maior é de ramalhetes. “É um negócio que dá pra viver, dá para passar e ainda tomar uma cervejinha”, minimiza Sales, que hoje tem uma frota de três carros para entregas, e pode se dar ao luxo de deixar o filho gerenciando a empresa, enquanto ele toma a cervejinha do início de noite de sexta.
Com 68 anos de idade, José Cardoso, que tem o mesmo tempo de trabalho do amigo Ismael, não conseguiu fazer o mesmo pé-de-meia. Ele é do tempo antigo, quando Salvador tinha meia dúzia de funerárias: Ornamento, Duran, Fernandez, A Decorativa. Hoje, são mais de 90 empresas no ramo: o número de cadáveres multiplicou, mas a concorrência divide os lucros.
O velho Cardoso é da época em que se velava o morto em casa – a família alugava castiçais e decorava o recinto com tons lúgubres -, por isso seu apelido é Baú. Hoje, um óbito pode ser feito à prestação e pago em 10 vezes, o futuro defunto pode até antecipar seus gastos pós-vida fazendo uma espécie de convênio. Só que na prática Ismael, que encomendava dois caminhões de flores por semana, atualmente fica apenas com um terço de um caminhão. De qualquer forma, ele é dos que venceram na vida com a ajuda da morte.
Histórico comercial
A vocação comercial do Campo Santo é iniciada antes mesmo da construção do equipamento. A Fazenda São Gonçalo fora comprada por 6 contos de réis pela empresa Augusto Pereira de Matos & Cia, que obtivera concessão para administrar o cemitério pelo prazo de 30 anos. A Lei n° 17 da Assembléia Provincial da Bahia, datada de 2 de junho de 1835, estabelecia “privilégio exclusivo” para a empresa Cemitérios da Cidade.
Menos do que um ato de filantropia, a idéia de construir o cemitério já se revelava uma astuta visão comercial. Um dos sócios da empresa, Caetano Silvestre da Silva, acenava com possibilidades de lucros inescapáveis de acordo com a pesquisa feita pelo historiador João José Reis, no livro A Morte é uma Festa: “O dr. Caetano Silvestre da Silva, em 1836, era juiz de Direito da 1ª Vara Cível e cuidava dos bens de pessoas mortas sem testamento e/ou sem herdeiros e julgava as disputas sobre partilha de heranças. Com acesso privilegiado a dezenas de inventários, ele certamente pôde transmitir a seus sócios as informações exatas sobre o potencial lucrativo de uma empresa funerária na Salvador de 1836”.
Quinze dias depois da lei provincial, o contrato de concessão entre o Governo Provincial e a empresa estava assinado. A construção foi iniciada imediatamente como uma forma de sufocar a oposição ao privilégio de exploração exclusiva. A idéia era concluir a obra em um ano, com uma capela central, túmulos e jazigos para famílias de posses, além de covas rasas para os pobres. Como contrapartida, os empresários exigiram que o governo impusesse uma multa de 100 mil réis para quem fizesse sepultamentos em conventos, mosteiros ou confrarias. Os representantes de irmandades e paróquias foram justamente os primeiros a se pronunciarem contra a concessão. Um abaixo-assinado foi encaminhado ao presidente da província, Francisco de Sousa Paraíso, exigindo a revogação da lei 17. O principal argumento era ter vencido o prazo de um ano, já que era outubro de 1836.
Zeladores de covas
A vida por entre jazigos tem sido o sustento de gente como Hermínia, Nizete, Maria Rosa e Adilson. São zeladores de covas, guardiões de lápides que informalmente têm uma responsabilidade sobre a limpeza semanal do mármore que veda as gavetas. Referem-se a mortos e parentes como clientes, sempre munidos de alguma escova, uma garrafa plástica com água pela metade, para regar as plantas e lavar os túmulos.
Ganham R$5 a R$10 pela limpeza das gavetas e até R$20 por cada campa. Muitos já possuem os domicílios garantidos, outros ficam na entrada do cemitério abordando visitantes e oferecendo serviços. Hermínia de Jesus, avó de três crianças, sustenta praticamente a família toda porque o filho, que tem noções de eletricista, não arruma emprego em virtude de um envolvimento com drogas. Nizete Santos Silva começou nesse trabalho quando o filho tinha nove anos de idade. Agora, ele tem 28 anos e ela mantém a rotina cotidiana no Campo Santo. “É daqui que tiro meu pão de cada dia”. Adilson de Jesus, de 31 anos, é herdeiro da profissão da mãe Zilda. Ela adoeceu e não pode mais fazer o trabalho e por isso ele ficou com os clientes. Trabalha como vigia de um estabelecimento no Rio Vermelho à noite e durante o dia fica no cemitério. “Aqui é como se fosse uma empresa, com vários funcionários que formam uma família”. A administração não calcula o número exato desses ambulantes de serviços, mas estima-se que não são menos de 30 os que mantêm postos de trabalho constantes.
Em datas especiais, esse número pode até triplicar. Dia de Finados, dia de trabalho para Mário Daniel, de 14 anos, que com 1,70m e 90 quilos merece o apelido de Gordo. Ele é mais um soldado da legião de meninos zeladores de túmulos, que se armam com esponjas e garrafas PET contendo uma solução quase nula de detergente. Ele, Uéslei, Rafael, Matias, Rodrigo, Janaína, são todos conhecidos e momentaneamente rivais na disputa por clientes.
O Gordo está unido a um amigo de 17 anos, chamado Rafael Frank, que pela primeira vez trabalha no Dia de Finados no Campo Santo e por isso ainda tem certos pudores. Vale a pena acompanhar essa dupla. O Gordo já conseguiu mais de R$30 fazendo limpezas displicentes e apressadas em lápides. Rafael conseguiu cativar a primeira cliente só agora, depois das 15h, uma senhora que ele vai apoiando na mão, em uma caminhada lenta e respeitosa. Seu parceiro, ao contrário, vai andando rápido na frente, querendo chegar logo à campa onde pretendem limpar. Antes, ele tivera a ousadia de pedir uma carona no carrinho onde o coveiro transporta uma lápide e só não recebeu um cascudo como resposta por causa do espírito de introspecção da data.
Chester, este é o apelido de Rafael, ouve o lamento da madame até chegar ao local onde estão depositados ossos dos avós, do pai e da tia. Ali, eles trabalham por uns 10 minutos na lavagem, no plantio de novos ramos de flores e por fim estendem as mãos para não receberem nada. A senhora paga o serviço com um módico “Deus te guarde”. Nenhum valor tinha sido acertado previamente pelo neófito Chester e por isso o Gordo fica indignado. “Você me fez trabalhar de graça”, reclama, emburrado, andando com as coxas se espremendo em uma bermuda apertada. “Mas rapaz, Deus nos ajuda”.
Só que os benefícios divinos não são suficientes para o Gordo. “A bondade que você faz de graça não volta pra você de forma nenhuma”. E já segue adiante reclamando que Cabelinho está roubando uma cliente dele. É Dia de Finados e todos os meninos que ainda não pensam na morte têm pressa para ganhar uns trocados.
CAMPO DE CLASSES A reprodução de diferenças sociais acompanha cadáveres até o abrigo da morte
Numa área marginal a ribanceira, com 5500m2, cerca de 1100 covas rasas atendem aos sepultamentos gratuitos do Campo Santo. As lápides funcionam como registro de um endereço para a eternidade e resumem o início e o fim de uma existência. Alguns têm as casas cobertas de heras, outros poderiam ser premiados com uma nova demão de tinta branca. Alguns partiram no ano passado, outros viveram pouco e deixaram pais saudosos de um maior convívio. Alguns foram sepultados há tão pouco tempo e já parecem tão abandonados.
As covas rasas estão nos fundos, escondidas dos olhos do visitante comum porque apresentam uma uniformidade triste, reduzem o cemitério a um mero local de aproveitamento de sete palmos de terra. Nas áreas mais visíveis, os mausoléus apresentam o contraponto estético e conceitual aos túmulos escavados no chão. “O cemitério é um duplo da cidade dos vivos, é como se fosse um prolongamento e um desdobramento. Então, vai-se encontrar no cemitério, além de toda a diferença de classes, a história das formas de viver e morrer na Bahia. O carneiro corresponde na Bahia ao aparecimento dos apartamentos e do apart hotel; o túmulo do casal corresponde ao sobrado, e o mausoléu às grandes mansões”, reflete o antropólogo Roberto Albergaria, que estende a associação até a tendência à cremação, que seria “uma onda de higienismo mais high tech”, com direito a uma desmaterialização asséptica.
“O Cemitério do Campo Santo é uma cidade em que se configura, de forma inusitada, a mesma divisão de classes que é vista numa cidade normal, com bairros de classes alta, média e baixa. Há também as periferias e as favelas, que são as covas rasas, as mesmas categorias sociais que se configuram nas cidades dos vivos”, opinou a professora de história da arte da Faculdade de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Maria Vidal Camargo, quando perguntada sobre o tema para uma reportagem em 2003.
A morte em castas
Os registros de sepultamentos no início das atividades do cemitério mostram a variedade que alguns utilizam como sinônimo de igualdade na morte. Além dos nomes e das datas de falecimento, dados como estado civil, profissão e causa da morte servem para identificar os cadáveres em cada degrau da pirâmide social. Domingos Borges de Barros, morto a 8 de maio de 1855, é identificado apenas como Visconde de Pedra Branca. Já sobre Luiza Maria da Piedade, falecida em 10 de dezembro de 1860, sabemos que era preta, morreu aos 50 anos, phtyzica, solteira e oriunda da África. Em 26 de Abril de 1876, morreu de “moléstia interna” Estephania Adine, 43 anos, branca, Paris, irmã de caridade, em contraposição a Anna Rita, ceifada pela mesma causa mortis, com 20 anos, África, preta.
Até 1850, a situação física do Campo Santo não tinha qualquer planejamento paisagístico e estava longe de ser um espaço atrativo ao descanso eterno das classes mais abastadas. Só em 1846, dez anos após a cemiterada, o muro frontal que havia sido derrubado foi reconstruído. Um relatório do mordomo do Campo Santo datado de 21 de julho de 1844 aborda as precariedades do espaço e remonta um ambiente que parecia ermo: “cumpre que se cuide em aformosear o cemitério, com plantações de arbustos e flores, e mandando-se buscar alguns túmulos de mármore para serem vendidos a quem os quiser, promovendo-se assim, sem muito custo, a adoção desses monumentos consagrados à dor e à saudade”.
Outro relatório, de 25 de julho de 1851, assinado pelo mordomo Manoel José de Magalhães e transcrito no livro Campo Santo – resumo histórico, dá uma noção de como evoluíra a ocupação na cidade dos mortos. “existem dois quadros, um mais novo que contém 458 sepulturas, das quais as mais antigas têm um ano; neste quadro é onde se enterram os cadáveres de pessoas livres; o quadro antigo contém 319 sepulturas, e nele já não existe nenhum lugar”.
Um dos trechos mais pitorescos trata da remuneração do capelão contratado para prestar serviços no cemitério. Além do salário, ele tinha que receber a alimentação do cavalo. “Existem dois empregados, sendo um o Capelão com o ordenado de 260$000 que foi contratado para ir a seus enterros e missas; casa de morar, e um feixe de capim diário para sustento do seu cavallo; o outro é o Guarda com o ordenado de 300$000. Convém que a Mesa mande fazer outro sumidouro; casa de morada para o Guarda.”
Nuances de atendimento
Há um embate nítido e muitas vezes hostil nos balcões onde o cemitério é tratado como negócio, onde um enterro tem que ser traduzido em um contrato e nas cifras que ele representa. A diferença é nítida quando se trata de parentes de uma pessoa que tem uma causa mortis natural e esperada. Estas mostram resignação, estão conformadas e quase sempre cumprem o ritual sem exaltação.
Os familiares de um morto de forma violenta ou muito jovem estão sempre alterados, nervosos, podem explodir como uma bomba-relógio sentimental. São eles que merecem uma atenção quase paternal dos funcionários, principalmente nas situações em que o desespero se confunde com agressões. “Ninguém vem para um lugar desses satisfeito ou para se divertir. Aqui é a consolidação da morte, o local onde geralmente cai a ficha para os parentes que vão pensar: botou na sepultura não tem mais jeito”, justifica o supervisor Ancelmo Menezes.
Essa erupção de decepções provoca episódios de grosseria, para dizer o mínimo. Um treinamento específico de atendimento para situações-limite começou em uma sala no andar superior da capela. A intenção é ensinar aos colaboradores como fazer um controle de raiva, minimizando o desgaste em casos onde um copo d´água é jogado no rosto de uma recepcionista. “É preciso muito cuidado até com a colocação de uma simples palavra, que pode ser interpretada por uma pessoa como um desrespeito à memória do falecido”.
“O Campo Santo é uma escola de atendimento”, avalia Ancelmo, que gosta de falar que no local onde trabalha não tem oportunidade de dizer “seja bem vindo” ou “volte sempre”.
As paredes de carneiros são tão uniformes de modo que algumas caixas mortuárias ficam muito parecidas. Tirando o nome ou uma ou outra característica fica difícil identificar logo de cara. Dá para perceber que alguns se atrapalham e podem dirigir as primeiras orações ao túmulo errado. Nesse ambiente onde não dá para aprimorar os conceitos de receptividade, há a partida motivada pelo erro.
Hélio Silva era funcionário há 25 anos, estava prestes a receber certificado e medalha de bons serviços prestados, mas terminou demitido por justa causa depois de ser flagrado em reportagem da TV Aratu comercializando arcadas dentárias. A venda era supostamente feita para estudantes de odontologia. A explicação dada pelo funcionário é de que retirava os ossos da cova coletiva, onde vão parar os restos mortais que não são reclamados por parentes no tempo hábil. A atividade criminosa foi punida até mesmo para servir de exemplo a outros funcionários. “Constantemente, somos assediados por estudantes que querem comprar ossadas, mas isso não é permitido. Depois desse episódio, se havia algum funcionário que fazia o mesmo, ele vai pensar duas vezes”, aposta Ancelmo Menezes.
CAMPO DA ARTE Transformação de cemitério em circuito cultural ressalta a beleza das obras nos túmulos
Um pequeno templo à saudade, um mausoléu erguido em brancas lajes, com uma capela de dimensões reduzidas, chama a atenção na lateral da igreja do cemitério. É a homenagem de um marido apaixonado feita ainda no Anno de Nosso Senhor Cristo de 1885: “à memória de sua esposa Hermínia Ferreira Santos Alliom mandou seu marido construir este jazigo”. A reverência de 120 anos atrás perdura e continua encantando. O imóvel é parte do Circuito Cultural, onde um totem explica que a capela gótica é construída em mármore de Carrara, concebida pelo genovês Ângelo Ortelli, em 1884.
Antes mesmo de receber o status de uma espécie de museu a céu aberto, o cemitério tinha virado centro de estudos interdisciplinares. Alunos de arquitetura, belas artes, moda e, ultimamente, turismo visitam não para reverência a entes queridos que estejam sepultados, mas como pesquisa de campo.
Lucineide Bispo dos Santos percorre o Campo Santo como se participasse de um seminário. Com anotações em um papel, fotografias, ela vai finalizando o trabalho de conclusão de curso de Turismo na Faculdade São Salvador. Com as colegas Ana Patrícia Oliveira e Miriam Souza, resolveu fazer a monografia Campo Santo, um novo olhar sobre o turismo, abordando a prática como uma alternativa de atração de visitantes para Salvador. Descobriram que turistas de outros países estiveram recentemente no Campo Santo para apreciar as obras de arte sobre as lápides.
No Père-Lachaise, em Paris, no Lês Moreres, em Barcelona, e no Recoleta, em Buenos Aires, este filão já é explorado há anos. “Aqui nós temos um cemitério rico, de inestimável encanto. Vale a pena visitar não pelos mortos ilustres, mas pelas obras-primas”, recomenda Lucineide Bispo.
Patrícia Noelle e Alana Alves, ambas do 4º semestre de Decoração da Ufba, e Amine Barbuda, do 6º semestre de arquitetura, escolheram o local como cenário para um trabalho de faculdade. Elas fotografam formas e designs, vêem inspiração onde a maioria só percebe morbidez.
Socialização e arte
A museóloga Jane Palma, criadora e coordenadora do Circuito Cultural, precisou reorganizar as próprias convicções religiosas forjadas no candomblé para enxergar a riqueza da arte cemiterial. “Havia uma idéia errônea sobre transformar o cemitério em um museu. O circuito tem como objetivo desmistificar o espaço cemitério, tirar o peso e mostrar que não é apenas um local de adeus, dor e tristeza. Pode ser pesquisado e é de fundamental importância para a evolução urbana”.
Para conceber o circuito, Jane passou quase três anos assistindo a movimentação no cemitério. Nos velórios, percebia que muita gente se reencontrava e algumas pessoas iniciavam contatos, um ambiente de socialização.
A montagem do circuito não foi feita visando túmulos de personalidades, como existe em outros cemitérios do mundo. Pode ser, em casos como os mausoléus de Octávio Mangabeira e Lauro de Freitas, que estética e notoriedade se encontrem. Na análise da arte cemiterial, cada elemento é signo de um sentimento, cada imagem representa uma mensagem universal. Os desejos do falecido são expressos em esculturas que, perto de um jazigo, ganham uma interpretação própria. As colunas, que na arquitetura tradicional têm função de estrutura, na arte cemiterial podem representar a eternidade (se estiver em fundo vazado), a proteção para a alma (com fundo fechado), ou o pilar da família ter ruído (se ela aparecer quebrada).
A rosácea com oito pétalas dentro de um círculo é símbolo de poder gerador e representa equilíbrio cósmico. A morte pode ser protagonizada na imagem de um homem sem camisa com um martelo, ou então pode ser uma menina-moça com uma palma próxima a um jovem robusto carregando a chama da vida. Nesse caso, a família queria mostrar uma partida considerada prematura, como a de Lauro Farani de Freitas, morto em acidente de avião, aos 49 anos.
A Estátua da Fé, tombada em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ergue-se imponente em tamanho natural sobre o mausoléu da família do Barão de Cajahyba. A obra esculpida em bloco único de mármore Carrara, com 1,92m de altura, é a identificação do Campo Santo em todo o mundo. A mulher veste uma túnica longa e um manto, tem uma coroa de louros na cabeça e segura uma cruz na mão direita, enquanto a esquerda é apontada para o céu. O trabalho se destaca pela simetria e proporcionalidade, em que a toga parece cair com leveza sobre o corpo feminino.
Os símbolos são de fácil associação: a mulher representa a fé, e a cruz a fé cristã, a coroa de louros significa vitória e o manto é uma proteção. O trabalho feito pelo alemão Johann von Halbig, em 1865, foi comprado por Alexandre Gomes Ferrão d´Argollo, o Barão de Cajahyba, na ocasião da morte do primogênito José Joaquim, de 20 anos, na Baviera. Em 1973, o monumento foi doado pela família ao Governo da Bahia. O Barão de Cajahyba, considerado um senhor de engenho cruel, responsável pela perversidade e castigos aos escravos, tornara-se um mecenas da mais significativa dádiva da arte tumular do estado.
Campo da alegria
O último sepultamento é marcado para 16h30, mas todos sabem que até as 17h sempre há trabalho. Há um ambiente de alegria, até mesmo com confraternizações depois do expediente e comemorações dos aniversariantes do mês. Em pleno santuário de reverência à morte, os aniversariantes são brindados com uma festinha, com direito a refrigerante, brigadeiro e tortas. Há vida no Campo Santo.
Ancelmo Menezes, o prefeito da cidade dos pés juntos, ganhou esse título honorífico dos conterrâneos de São Sebastião do Passe. Ao contrário dos colegas que evitam falar que trabalham no cemitério, como se isso fosse denunciar alguma moléstia contagiosa, e geralmente despistam afirmando que são funcionários da Santa Casa de Misericórdia, ele assume a condição de supervisor do Campo Santo com a mesma empolgação com que alguém levanta a taça de campeão do torneio de futebol dos rodoviários. Há 13 anos, é dele a missão de intermediar interesses, fiscalizar o trabalho no campo e mais do que tudo colecionar as histórias que subvertem o sentido lúgubre do cemitério.
O cemitério é um local onde se guardam ossos e não jóias. Apesar desse princípio em que uma urna funerária pode ser qualquer coisa menos um cofre, muitos bens preciosos ou de valor meramente sentimental podem ser enterrados junto com um corpo. Basta uma escavação aos mais profundos esconderijos dos objetos para a surpresa e o encantamento. São itens que falam muito sobre a vida e a personalidade do defunto, como colher de pedreiro, capacete, trena, luvas, no caso de operários enterrados nas covas rasas. Entre os fidalgos, garrafas de whisky ou destiladas para o caso de não existirem botequins no além. De meninas a senhoras, muitas são as que ficam com bonecas. Há os fanáticos que são acompanhados pelos artistas representados em discos e CDs. Só que os artigos mais utilizados neste tipo de homenagem fúnebre, de acordo com os coveiros, são camisas e bandeiras do Bahia.
Houve o piadista que ficou famoso entre os funcionários porque chegou para o enterro da mãe já contando uma lorota do papagaio. Assinou o contrato do jazigo emendando a última do português. No meio do velório, alguns parentes choravam e ele, filho da defunta, se divertia falando anedotas politicamente incorretas. O pior é que o homem tinha mesmo vocação para humorista e muitos não conseguiam reprimir um riso, mesmo que fosse constrangido com a situação.
Só antes do funeral, ele resolveu explicar que tinha feito um acordo com a mãe em estado terminal e que ela pedira para ter alegria na cerimônia, nem que fosse com ele contando piadas. O filho cumpriu com requintes de comicidade a promessa. Até o fechamento da sepultura animou a cena, enquanto os mais tradicionais continuavam as orações e mostravam o desconforto com o inusitado festival de chistes. Outros tentavam controlar o riso, mesmo sabendo que o filho estava apenas executando o último desejo da falecida e não treinando para a olimpíada mundial de exóticos.
Um tipo de humor involuntário foi o que ocorreu no enterro de um senhor fidalgo, funeral bastante concorrido, que virou lembrança fácil e rápida na cartilha de gafes decorada por coveiros e auxiliares. No meio da despedida, um dos amigos com aparência que tinha afogado a saudade em algumas garrafas de cachaça pediu a palavra para recordar o companheirismo que vinha desde a infância em comum com o ilustre. E nas reminiscências juvenis do homem, ele desfilava memórias da época em que trocavam amabilidades do tipo “abaixa que lá vem p…”. O mal estar quase se transforma em gargalhadas dos funcionários, que precisaram disfarçar a vontade de rir. Uns e outros se esforçaram para abafar o discurso por demais afetuoso e tirar daquele ambiente o lastimoso amigo. É mais uma história concebida na morte, que enche de vida o Campo Santo.
Sim, eu precisei ser fiscôla durante uma semana, mas com tamanha falta de vocação que se fosse uma profissão regulamentada, regida por um conselho, teria meu registro cassado em tão pouco tempo que o acesso a qualquer banheiro vagabundo de churrascaria de beira de estrada seria vetado. “Nos termos da lei, de acordo com convenções de ética e normatização, a saber, averiguar, medir, encarar, fazer carinha de quem está se deleitando e ainda se oferecer para ajudar na balançadinha, o senhor está formalmente destituído do cargo de fiscôla”.
Ser fiscôla, ao contrário de uma profissão, é uma vocação, algo como uma arte, como Michelangelo não precisou de faculdade para esculpir e nem Cuíca de Santo Amaro alisou banco de universidade para destruir reputações com sarcasmo e rimas de memorização rápida. Para motivos de apresentação, fiscôla é o nome carinhoso de um popular personagem da crônica social contemporânea: o fiscal de rola. Se você não conhece e nunca ouviu falar, sorte sua.
São despudorados que ficam ali inertes, dando olhadas para os lados enquanto fingem verter água (como diziam os velhos machos sertanejos). Ficam se massageando por minutos. Se houver cinco ou seis mictórios livres distantes de você e mesmo assim ele chegar ao seu lado, como se o resto estivesse ocupado e apertado, pode crer, é fiscôla. A definição de fiscôla não é feita a partir de uma mera observação empírica ou arbitrária para saber se alguém passa mais tempo do que o necessário em ato de micção contemplativa. É um feito comprovado pela ciência a partir de uma combinação de experimentos e pesquisas.
Sabe-se, por exemplo, que o volume máximo suportado pela bexiga humana é de 500 ml. E que um fluxo urinário menor do que 15ml/s já é indicativo de alguma obstrução da uretra ou falha no aparelho excretor. Nesse caso, 35 segundos seria tempo suficiente para executar o serviço sem maiores envolvimentos emocionais, com a frieza de um magarefe dilacerando vísceras bovinas, ou como o tenista Roger Federer ganha mais um torneio de Grand Slam. Mesmo assim, vamos dar uma margem de erro de 90 segundos regulamentares entre abrir o zíper e dar a última balançadinha. Passou de um minuto e meio, pode ter certeza, é fiscôla.
O fiscôla típico renega o olhar oblíquo que se estabelece na troca de uniforme de um time de futebol, aquela coisa meio envergonhada de quem não quer fitar diretamente o objeto da curiosidade. O fiscôla padrão tem o olhar reto e olímpico. Ele encara como se tivesse autoridade completa do ato e errado fosse quem quisesse se ocultar. O banheiro do 2° piso do Iguatemi é uma espécie de Meca da fiscôlagem. É um dos mais mencionados nas ligações anônimas para a Rádio Metrópole, ou sempre que o tema é suscitado em uma roda de meia dúzia que invariavelmente se dizem ofendidos com a atitude.
Não há estatísticas confiáveis sobre a quantidade de fiscôlas dispersos pela capital baiana. Apesar de terem uma função fiscalizadora, não estão reunidos em entidade de classe. Vagam espalhados por banheiros sem uma rota de migração explicável. Voltaram ao banheiro do terminal rodoviário desde que a taxa de utilização (coisa de 50 centavos por uma mijadinha) deixou de ser cobrada. Naquele espaço, a existência de um tipo ainda mais inusitado: o fiscal dos fiscôlas.
É o funcionário que passa meio expediente sentado em um banquinho defronte ao átrio de mictórios, como se estivesse ali para auxiliar qualquer demanda urgente. Mas não, a real função dele é intimidar a ação invasiva dos delinqüentes visuais. Fiscôla é bom para olhar, jamais para ser olhado. O fiscôla pode não se considerar viado, exerce seu papel social sem ter traumas de masculinidade.
Para M. Carlos começou com a curiosidade de medir o pau dos outros na adolescência. Hoje, adulto, pai de um casal jovem, age como um hobby. Visita banheiros com o olhar por vezes milimétrico, já que não pode usar uma trena, prefere exercitar a capacidade de avaliar tamanhos e formas por meio de analogias: aquele parece um desodorante feminino, este fica mais para um churro pela metade.
A atuação deles geralmente é negada, mas no Iguatemi um segurança faz ronda a cada 20 minutos na porta do banheiro para verificar a normalidade no local ou se alguém esqueceu do mundo cá fora. Um gordinho no Shopping Barra só falta criar um crachá pra si mesmo com a inscrição:fiscôla oficial do perímetro. Ele cerca os usuários do WC com a vigilância de um perdigueiro farejando saciedade.
Fiscolando em alta
Banheiro do 3° piso do Shopping Piedade, bem vindo à fortaleza da fiscôlagem. Ou, a depender de quem olha, à visão do inferno. Quem entra num momento de mais empolgação, se assusta e lamenta ter deixado tanta cerveja acumulada para um único jorro de despedida. Alguns saem fugindo indignados, outros rindo da própria sorte. A arquitetura do espaço de 3,5m² com oito mictórios dispostos em duas fileiras de três e de cinco é, por si, uma sugestão de fiscôlagem. Algumas vezes, os cinco vasos ficam desocupados enquanto os outros três são disputados por ávidos observadores.
É mais assustador, por exemplo, ao se deparar com um rapaz manuseando o pau com um ritmo de fabricante de argila, naquilo que os fiscôlas chamam delicadamente de “esmerilhar” a pica. Mantém o membro em uma consistência “pururuca”, que é um estado físico de quase ereção, em que não se observa a flacidez de um marshmallow e nem a rigidez de uma vela de sete dias. É uma morfologia intermediária, tipo uma mangueira de gás.
Este é representante legítimo da categoria do Performático Apreciador de Olhares ou, simplesmente, o PAO. O auxiliar de serviços gerais que pega o turno de tarde e fica até às 22h convivendo com toda a silenciosa troca de olhares é como uma mulher sinuosa em pé num coletivo lotado, tamanho o desconforto que demonstra. Val, o apelido pelo qual prefere ser chamado, não aparenta tanto asco na hora de recolher o papel higiênico usado de um balde como quando entra e se depara com os olhares gulosos no mictório. “O pior é quando estão se pegando, aí tenho que chamar o segurança”, resmunga ele, um moreno magro de quase 30 anos que outro dia recebeu uma proposta no banheiro e quase responde na força bruta.
O formando em jornalismo pela Faculdade Jorge Amado, Tedson Souza, encarou a selva de azulejos e porcelanato por vontade própria para finalizar um trabalho de conclusão de curso sobre sexo público. A escolha de uma série de reportagens de rádio o levou a descobrir que alguns locais se tornam guetos de devassidão: da fiscôlagem, os mais atrevidos passam à prática. “Geralmente são homens casados, até com filhos, que vão nesses locais para extravasar o desejo reprimido pelo preconceito”, sugere Tedson, que descobriu uma comunidade no Orkut chamada Clube do Banheiro SSA para troca de confidências e experiências. No fórum, os redutos mais cotados atualmente são do Iguatemi Businness Flat, avaliado como discreto e limpinho, e do Bompreço do Chame-Chame, onde “rola de tudo na madrugada”, segundo os freqüentadores.
Aproveitadores de escada
Investigadores do cacete alheio fazem parte de um segmento voyeurístico cujo correspondente feminino engloba os aproveitadores da escada. São aqueles pós-adolescentes que se reuniam no ângulo privilegiado do térreo da Faculdade de Comunicação da UFBA para averiguarem toda a semiótica contida na minissaia de uma caloura indo para a aula no segundo andar. Ou no Salvador Shopping, onde as escadas translúcidas parecem ideias para esse tipo de observação. Dentro do vestiário esportivo de um clube no Costa Azul, outro dia, um nadador desautorizou o instrutor de tênis a usar o chuveiro no box ao lado. “Amigo, não ligue esse aí não porque vai deixar a água fraca aqui”. Seria um simples aviso de alguém que não quisesse ser prejudicado em uma ducha quente. Bastou um complemento de frase para revelar-se mais do que alguém tentando livrar-se dos odores de uma sessão de treinos ou do cloro impregnado no cabelo. “Você pode usar esse chuveiro aqui da frente”. Na visão do instrutor, o candidato a atleta queria que ele fosse para o vestíbulo bem na frente dele, onde oferecesse uma visão completa do material. “Eu maldei logo que era viado”. Poderia ser o caso não de homossexualismo, mas de um fiscôla aflorando. Magari é o apelido de um fiscôla assumido na cidade de Nazaré das Farinhas. Não se identifica para não atrapalhar o trabalho em uma empreiteira, onde já chegou a reunir mil homens em uma obra (“e só três mulheres, eu era uma delas”, diverte-se). Ele se sentia como se estivesse em uma Disney da fiscôlagem, quando boa parte ia para o vestiário em fim de expediente. Aí, fiscôlava em alta.
Percebia que alguns fitavam a cintura alheia com uma boa dose de interesse disfarçado. Depois, ia investigar e descobria que o cidadão era bem casado, pai de filhos. “Esses são os curiosos”.
A diferença dele para a maioria dos fiscôlas é que é bicha declarada, embora tenha uma ética própria no trato com os relacionamentos. “Mais vale uma amizade na mão do que uma penetração”. Ele é uma espécie de fiscôla ideológico, um xiita em termos de voyeurismo peniano.
Uma intervenção entrou para a antologia da crônica esportiva na Bahia. Um fotógrafo contemporâneo, depois representante de associação de classe, aguardava o final das partidas como o momento mais sublime do que o gol. Era a hora de ir para o vestiário da equipe vencedora, ver todos aqueles atletas de alma e prepúcios lavados, a pretexto de finalizar o trabalho, como se fosse do interesse público fotografar o vestiário.
O fiscôla, não com esse nome, é uma entidade que ganhou a internet por um vídeo de uma apresentação de stand up comedy do pernambucano Murilo Gun. Na esquete sobre os constrangimentos em um banheiro masculino, ele conta a dificuldade de lidar com os vizinhos de mictório sem ser considerado “fiscal de rola”. Nesse momento, a platéia delira com a lembrança.
Um fiscôla de camisa regata entra no banheiro do Iguatemi seguido por um rapaz com gel no cabelo em formato moicano. Há mictórios livres, mas os dois se posicionam lado-a-lado. Fica olhando de baixo pra cima em diagonal e depois passa a olhar desconfiado para trás, procurando perceber se alguém está espionando. Sim, ele está sendo observado em seu ato de observar, mas até com certa piedade.
Sim, porque alguns momentos, eu tive que me tornar fiscôla, por isso uma certa solidariedade aos meus pares. De tanto entrar em banheiro, terminei confundido com um dos que seriam investigados. O diálogo absolutamente surrealista foi inevitável com um segurança na porta do WC do Iguatemi:
– Senhor, por gentileza…
– Não é bem o que você está pensando, eu…
– Senhor, eu não sou pago pra pensar, apenas preciso limpar a barra. Há lugares próprios pra isso.
– Mas eu tô fazendo um trabalho…
– Tudo bem, o senhor pode considerar trabalho e tal, mas já é a quarta vez que o senhor entra aqui em 20 minutos. Aí já é trabalhar demais.
– Não, meu velho, é uma reportagem, você pode, inclusive, me ajudar com ela.
– Não, muito obrigado. Prefiro ficar de fora.
– A reportagem é sobre fiscôlas.
– Fiz o quê?
– Fiscôla, fiscal de rola, que vai pro banheiro público olhar o pau dos outros.
– Ah, sim. Hummm… o senhor tem certeza que está feliz com isso?
E com essa dúvida a reportagem termina, não sem antes um comentário de ordem da higiene pessoal. Impressionante é perceber que pelo menos metade – eu reitero, metade – dos caras que saem do banheiro público passa direto pela pia, como se a torneira fosse tóxica. Quer dizer que de cada 10 usuários, cinco vertem água sem lavar as mãos depois. E eu tenho certeza que pelo menos um destes já lhe deu um cumprimento de mão bem apertado depois de manusear o pau. Mas isso já é uma outra história.
Se vendado estivesse – sendo conduzido por alguma mão amiga naqueles passos tímidos e curtos de quem não conhece o caminho -, logo saberia se tratar de um banheiro público, pelo cheiro ácido de mijo seco, pelo som metálico da porta batendo e pelo eco que capta e reverbera até a respiração suspensa de quem contrai o abdomem para conter a sensação de facada diagonal de sentir apuros digestivos. Mas se estivesse vendado provavelmente perderia mais do que a noção de direção para alcançar o vaso sanitário. Perderia o melhor da decoração visual que faz o público de um banheiro: as frases sem preocupação com o politicamente correto, despidas de pudores e geralmente escritas depois daquele ahhhh aliviado de quem não via a hora de arriar as calças. “Comer mulher feia e cagar, todo mundo faz, mas ninguém faz questão de comentar”. É o melhor da leitura de fácil digestão.
Esta reportagem é uma espécie de ode ao aparelho excretor, uma peregrinação por lugares malcheirosos, que podem ser verdadeiros mictórios literários ou simplesmente murais improvisados para ofensas, denúncias, auto-elogios, todo o tipo de liberdade. Senta que lá vem a história. No Empório Arvoredo do Imbuí, a frase no biombo masculino é um exemplo de marketing pessoal no lugar errado: “George Ramiro é gostoso”. Na mesma porta de madeira escura e pesada, o Paulista se apresenta como um garanhão de coração volúvel. A poucos centímetros de distância, os escritos dão conta de que ele “come Silvia”, “come Silvana”, “come Patrícia”, e ali adiante, “come Maria… mas agora outro come Maria”.
Porta de banheiro é uma espécie de horário eleitoral gratuito sem censura, onde você pode emitir qualquer idéia sem depois ser cobrado por isso. Há os cúmulos de vaidade, as agressões, os lapsos de filosofia barata, os discursos tão pretensiosos quanto vazios. Ou seja, tudo que existe em uma campanha política, só que sem a necessidade de conquistar eleitores. Quem escreve no banheiro está bem pouco preocupado com a rejeição alheia. É possível encontrar alguma contribuição expressa em exagero anatômico mas que, ironicamente, prefere deixar tudo em estilo abreviado: “Meu K7 tem 30 cm”.
Há o verso clássico, hino dos decifradores do lirismo de latrina: “sentado na privada, sinto uma emoção profunda, a bosta bate na água e a água bate na bunda.” Ou a frase atribuída a algum banheiro da USP: “A diferença entre cagar e dar o cu é meramente vetorial.” A odisséia frasista ganha o rumo acadêmico do campus de Ondina da Universidade Federal da Bahia. No edifício que abriga a Biblioteca Central, cada andar tem banheiros masculinos e femininos e as portas brancas de fórmica são como lousas para o espírito lúbrico de universitários com excesso de hormônios. “Quero um broder malhadinho, gostoso, bonito, super ativo e com um pau bem grosso”… Até aí seria um pedido legítimo de pelo menos metade das solteiras do Yacht Club que ainda se animam com a perspectiva de um casamento duradouro, desde que no lugar da palavra “broder” estivesse escrito “marido”. Só que a continuação é bem mais comprometedora: “Sou bonito, gostoso, malhado (corpo bem-definido de surfista). Deixa algum recado aí véi”. O apelo de uma alma gêmea com tantos predicados motivou uma resposta escrita em hidrográfica mais escura, com o azul marinho contundente de uma réplica mordaz: “Pq não aluga um filme pornô? Não acha que ta pedindo muito não? Sonha, Alice! Ha ha ha”
Há um jogo democrático em que é liberado o espaço de acordo com a necessidade de quem escreve e não por alguma convenção de princípios e moralidade. “Deus é amor ! Ame e terás Deus no coração! O pastor só quer acorrentar sua alma! Se você ama não precisa de mais nada” pode ser encontrado ao lado de “Dou o cu, chupo pica e como também. Tel: 8872-8253. Márcio” ou “21 cm de puro delírio: ricardo.20@hotmail.com”. É nesse sentido que a porta ou a parede de um banheiro podem se tornar uma espécie de divã vertical, que aceita qualquer tipo de desabafo ou confissão.
Por isso que em uma televisão fictícia algum mais indignado com o resultado do trabalho pode escrever que para ser repórter basta ser surdo, para ser cinegrafista pode ser cego e mudo será um editor, mas se for isso tudo ao mesmo tempo aí terá condição de ser chefe. No banheiro feminino da Biblioteca Central da UFBA, um mais ousado conseguiu entrar para registrar os anseios mais primitivos como se fosse uma página de classificados na seção Encontros: “Quero foder sua boceta e seu cuzinho bem gostoso. 8175-3985, tenho 22 cm. Passe p/ uma amiga que queira”. Ainda no banheiro do Pavilhão de Aulas da Federação (PAF1), o recado de um jovem em busca de companheiro, dizendo-se estudar no Instituto de Biologia, o qual foi rapidamente rasurado e corrigido por outro como Instituto de Boiologia.
Um artigo publicado por três estudantes da Unicamp é uma das primeiras ponderações acadêmicas sobre o assunto: Análise do Discurso dos Escritos dos Banheiros da Universidade. O estudo aponta os “escritos sugestivos do banheiro” como “um porta-voz de uma coletividade nem sempre escutada e em um local de livre expressão de um grupo social muitas vezes submetido a um silêncio forçado.”
Alguns diálogos inteiros, redigidos com atraso de alguns dias, são capazes de entreter portador de prisão de ventre. É sempre uma sucessão de desencontros, como os exibidos no meloso filme A Casa do Lago, só que sem protagonistas tão charmosos como Sandra Bullock e Keanu Reeves.
Dia 14/04/2008 – estou aqui toda segunda e quarta. Passo por aqui sempre às 17h30. Se quiser, basta bater na porta 2 vezes. Sou versátil. Gustavo
Dia 28/04/2008, 17h40 – estive aqui e você não estava.
Dia 18/06/2008 – você é mentiroso!!!
Dia 19/06/2008 – Semana que vem eu volto!! Você chupou meu cacete como uma puta! Safado gostoso
Dia 23/06/2008 – E KD você agora? Tow aqui e vc não ta!! É melhor vc deixar seu cel quando estiver aqui. Eu dou toque pro seu cel aí você vem pra cá.
O artigo dos estudantes da Unicamp retrata essa característica: “O texto nas portas de banheiros possui em sua especial estrutura elementos próprios de uma configuração macroestrutural, tais como as pressuposições, as correferências, os tópicos de discurso, ligados ao marco, e os conectores e outros elementos ligados à coesão textual.” Da análise, é possível tirar pelo menos duas conclusões: a primeira é que deve ter algo de sociologicamente muito importante em deixar registros no banheiro, já que o tema é capaz de motivar uma tese tão cheia de pompa; a segunda é que uma frase dessas jamais seria capaz de substituir o entendimento rápido, direto e mordaz de algo como “puxe a descarga com força, há um longo caminho daqui até o Congresso”.
As letras mais usadas por quem precisa fazer o número dois não precisam obedecer a estética, ortografia ou bom comportamento. Um aviso se destaca como uma placa maiúscula e inútil no meio do caos de frases manuscritas em caligrafias nervosas e tintas opacas. ATENÇÃO! É TERMINANTEMENTE PROIBIDO ESCREVER NESTA PORTA! E ao lado, já com uma caneta clara, mas igualmente em caixa alta, a resposta de alguém que se sentiu aviltado no direito à livre expressão escatológica: VÁ SE FODER!
No Colégio Euricles Matos, no Rio Vermelho, como na maior parte das escolas públicas onde os diretores se queixam de apenas uma verba anual para manutenção e pintura, não apenas os banheiros são rabiscados. As paredes são completamente riscadas, os poucos móveis, os bebedouros, até o teto que de algum local onde o pé-direito possa ser alcançado. É lá no banheiro masculino que um romance é denunciado em toda a alegoria de sabores e imprevisibilidades: “Cereja x Chocolate, amor a 2ª vista”. Grafites de lirismo em que cagar se torna um processo de higiene também mental “É quase impossível tentar conter ou censurar esse tipo de expressão”, conforma-se o diretor Alexandre de Freitas Batista, que garante nunca ter sido alvo de qualquer manifestação rabiscada embaixo do espelho ou em cima da latrina por algum dos 1800 alunos. Ou, pelo menos, nunca ficou sabendo.
No colégio Manoel Devoto, no Rio Vermelho, Magda Suelen, 16 anos, aluna do 1° ano do ensino médio, já viu todo tipo de mensagem, desde religiosas a ofensivas, como “Yala é galinha”. Ela mesma só contribuiu com expressões autopromocionais, como “Magda, a boa”, “Magda gostosa”, sem jamais ter se dado conta de que esse tipo de propaganda no banheiro feminino não iria alcançar seus objetivos.
Muita gente já precisou fazer uma cara de total espanto, como o radialista Ramon Margiolle, ao tomar conhecimento que havia a informação de que Ramon pega Bárbara estampada na madeira escura do banheiro masculino. E logo Bárbara, a garota que dava poucas esperanças de relacionamento a ele. E muita gente também fez como ele e não revelou ser o próprio autor da informação falsa.
Com a palavra, a interpretação asséptica e universitária sobre um fenômeno tipicamente anárquico: “No banheiro, é onde ocorre a transgressão, a ruptura, e as pessoas se libertam. Por isso, ele se torna um veículo de expressão pessoal, mural de garantida audiência para nossas acertadas e espirituosas observações sobre nós mesmos, sobre o mundo, sobre tudo. Território sujo e livre, que parece oferecer-nos segurança, anonimato, intimidade, o banheiro é um dos locais onde mais se produzem grafitos em nossa sociedade”.
Uma urinada não oferece o mesmo privilégio de dar a devida atenção a imperativos de tamanha sutileza: “Os Bete no comando, quem ñ gostou dê o cu”. E depois o aviso como se ali fosse escrito não com um simples hidrocor, mas com o próprio sangue: apaga agora filhos da puta!!! No banheiro rosa do Colégio Manoel Devoto, no Rio Vermelho, um recado isolado na parede: Erivelton é gostoso, Ass: 102.
No banheiro azul, registrado na descarga, um “Jesus te ama”. Não estava em algum WC do instituto de Letras da Ufba, por sinal de paredes e portas virginais em termos de escritos, mas no poema Frases ao acaso, de Luciana de Rocio Mallon: “As frases de banheiro mostram a realidade/ Do nosso mundo imundo de verdade!/ As livres frases ao acaso/ Sempre têm um caso…” e é assim, juntando o acaso de quem escreve com o fortuito de quem lê, que se cria uma antologia própria, até que o próximo leitor em apuros intestinais tenha tempo suficiente para analisar toda a semiótica de quem grafita enquanto caga. Porque ninguém chega a um banheiro de olhos vendados, principalmente o curioso por conhecer toda a filosofia de (quem larga um) barro.
Era uma tarde de verão baiano quando Octávio experimentou um jeito próprio de exprimir um sentimento infinito de querer bem, a devoção e dependência orgânica que é estar apaixonado. Pegou um livro de Vinícius de Moraes e escreveu no topo da segunda página, com uma letra sobrescrita, a sua versão do “infinito enquanto dure”. No volume com versos inflamados, como O Mais-que-perfeito, (“Ah, quem me dera ver-te/ Sempre a meu lado/ Sem precisar dizer-te/ Jamais: cuidado/ Ah, quem me dera ver-te”), o título definitivo: Para Viver um Grande Amor.
Na folha de rosto, com a convulsão emotiva dos febris, o amador completou o título com sua dedicatória: “… e continuar vivendo, eu só preciso de você. Não quero ficar sem o meu grande amor (você). Te amo, Octávio, 30/01/88”. Vinte anos depois, provavelmente sem o grande amor, e talvez enchendo outras páginas com o ardor do coração, o legado de Octávio repousa, sem dono, em uma das prateleiras do sebo Brandão, o maior de Salvador, no Centro Histórico da capital. Está acompanhado por milhares de outras declarações perdidas em corredores que são uma ode ao pretérito. Livros, livros à mancheia, como tijolos de um castelo em homenagem a amores que ficaram para trás.
Octávio é real, não é daqueles nomes fictícios inventados por repórteres que têm um lead utópico na cabeça mas não o personagem ideal para preenchê-lo. Mais que um nome a caneta esferográfica, ele representa o anti-herói romântico contra o dragão da insensibilidade. Aquele livro de brochura manchada e carcomida significa a página virada na vida de alguém. Há um pouco de comédia, ironia e melancolia nessas demonstrações de afeto que são entregues às traças.
Décadas de espera por alguém que mereça ter nas mãos um volume impregnado de paixões: o livro Amo! (assim mesmo, quase um imperativo), coletânea de poesias assinadas por JG de Araújo Jorge. “A EP, para que você possa conhecer e deleitar-se com a poesia de Araújo Jorge, um poeta que deve ter empolgado muita gente tanto quanto empolgou essa sua Eva. Bahia, 3 de julho de 1949”.
Letras redondas, letras pontudas, frases ventias, paixões agudas. Tanta dedicação que vai parar num sebo, à disposição de qualquer um que queira pagar 15 reais. Ecologia, a Ciência da Sobrevivência, de Lawrence Pringle, editado pela Biblioteca do Exército Editora, presenteado por um avô, se destaca não apenas pela dedicatória curta: “Para minha neta ‘n°1’, também conhecida como Silien Álvares Coelho, com carinho do vô, SP, dezembro de 1977”. O inusitado são os retalhos de textos largados ao longo do volume, como se fossem pistas para encontrar um coelhinho da Páscoa. São notas de rodapé, com detalhes de etimologia ou referências. Onde está escrito a palavra apêndice, o avô grifa de caneta, faz uma seta e leva até o canto da página para explicar: “parte anexa a uma obra, acessória à obra (do latim, appendix)”. Parece um discurso de um avô e possivelmente biólogo para já deixar um legado de preservação para a neta com duas décadas de antecedência ao assunto se tornar item da cartilha do politicamente correto.
Autoria desmerecida
Um capítulo de constrangimentos à parte é oferecido pelos autógrafos de escritores que são desprezados no primeiro caminhão de mudanças. Na orelha de O Gozo das Feiticeiras, livro classificado como de bruxaria, com capítulos do tipo Amuletos de Poder, Amores Mágicos, o reconhecimento de que “Márcia Frazão se entrega inteira ao prazer de contar suas experiências compartilhadas com a avó Vitalina, que a iniciou no suave caminho de amor pela natureza.” Mesmo ela sendo bruxa não poderia prever que o bibelô para Vânia, com a frase “que bom que você existe, mil beijos”, cairia no caldeirão de rejeitados.
Há situações datadas, como “Beto, nossa URV está cotada num tempo que não existe. No presente, chama-se cortesia. Me conheça me lendo, um abraço. Carlos Alberto. “ O signatário é o mesmo C.A. Pacheco, autor do livro de poesias Como o Diabo Gosta. A data do presente é que não inspira muita certeza: 1° de abril de 1994.
O jornalista Paolo Marconi, atualmente conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios, já foi surpreendido com o descarte de uma obra sua. Autografou o livro Censura Política na Imprensa Brasileira – de 1968 a 1978 para um colega também jornalista e quatro ou cinco anos depois encontrou o material no sebo. “Não dei muita importância. Vai ver o cara estava precisando de dinheiro ou então não deu o devido valor”, minimiza Marconi, que, elegantemente, não cita o nome do presenteado e nem se ele se tornou um ex-amigo.
Para não vivenciar situações semelhantes, o jornalista Elio Gaspari justificou recusar sessões de autógrafos para os quatro volumes lançados sobre a ditadura afirmando que não gostaria ver exemplares com sua assinatura por sebos.
Escrever um livro, publicar, ser elogiado pelo trabalho. A essa sucessão de glórias poderia ser adicionada a etapa da decadência: ser jogado na vala comum dos desprezados, enterrado em vida como mais um ocupante nas prateleiras dos proscritos. Anatomia do Ódio é o título do livro escrito pelo bacharel em Direito, deputado federal constituinte, relator do Código de Defesa do Consumidor, Joaci Góes. Uma obra descrita como “o mais completo ensaio sobre esse inquietante tema”, tratado pelo psicólogo cubano Mira y López como “o gigante rubro”. Ele autografa o livro “ao eminente amigo Ursicino Queiroz, com as homenagens, os agradecimentos e o eterno abraço de Joaci Góes, Salvador, 15 de setembro de 2002”. Sabe-se que Ursicino, ex-prefeito de Santo Antônio de Jesus, ex-deputado federal e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, faleceu no ano passado. É um caso que parece pacífico admitir que a família, sem qualquer ligação emocional com a dedicatória, resolve se desfazer do livro, como se fora uma camisa manchada, de gola esgarçada, que pode servir melhor a alguém que se contente com a segunda mão.
Cemitério de sentimentos
De alguma forma, os sebos são cemitérios de sentimentos e as páginas amareladas da quarta capa são sepulturas de amizades, romances, intimidades. Algumas amizades viram caricatura como a que foi lembrada no livro Sucessão – Charges no Jornal do Brasil, oferecido com toda a formalidade de uma caligrafia cursiva “ao amigo Rafael, com os cumprimentos de Paulo Marques”.
Uma edição de O Diabo Veste Prada, o livro escrito por Lauren Weisberg, que originou o filme, tem o agradecimento pela reconciliação familiar. “Que bom que você veio passar este natal comigo, que para mãe não tem presente melhor do que a presença de uma filha querida! Melhor ainda, as três filhas juntas! Mãe, 25 de dezembro de 2006” Ao que parece, a emoção materna não chegou a sensibilizar por muito tempo. Menos de dois anos depois estava como destaque na prateleira principal de promoções.
Tomás de Aquino Queiroz dedicou os últimos 15 anos ao trabalho diligente de recolher edições antigas, pagar por elas, vender ou alugar para leitores. No Cantinho do Sebo, na Pituba, ele abona uma espécie de locação mensal, ao custo de R$30, que dá direito a pegar quantos livros quiser. Não estabelece qualquer tipo de valor diferencial a exemplares com dedicatórias. Clientes buscam livros com autógrafos dos autores, principalmente Jorge Amado, só que mesmo que eles estivessem nas prateleiras Tomás garante que os preços não seriam aumentados, continuariam entre 15 e 20 reais, independentemente da escrita do ídolo. “Procuramos não nos envolver com essas coisas emocionais”, justifica Tomás de Aquino. “Tem sebo que ainda dá mais valor se tiver dedicatória, o que eu acho uma coisa meio doentia”, desanca o jornalista Paolo Marconi.
Para a psicóloga Graziela Aguiar, o descarte do objeto é resultado do desgaste de uma relação ou da necessidade de distanciamento de alguém. “O afastamento proposital faz com que os sentidos da relação se percam ou saíam da memória aparente. Mas isso não significa que entrar em contato com o objeto (no caso, o livro) não vai provocar a recordação de várias cenas associadas àquele significante”, explica ela, mostrando como a venda daquele volume presenteado especialmente no Dia dos Namorados pode ser uma auto-defesa.
Palimpsestos de afeições
Nas prateleiras do sebo mais famoso de Salvador, uns 20 mil volumes expostos são como afrodisíacos visuais para amantes de literatura e nostalgia. E chegam a ser poucos em comparação com as fotos de galpões da empresa que abrigam quase 200 mil obras, exibidas pelo dono Eurico Brandão. De cada 10 livros, pelo menos dois apresentam alguma dedicatória personalizada, embora o funcionário Batista, com quase 20 anos trabalhando naquela necrópole de emoções, confesse que os mais precavidos pedem para que os textos caligrafados sejam apagados dos livros, como se fossem palimpsestos de afeições. Eles nunca cumprem esses pedidos com uma óbvia justificativa de que quem realmente deseja isso pode arrancar a página ou apagar por si só. Há também outra razão: a depender de quem assina, um simples exemplar de guia de receitas pode valer tanto quanto uma bíblia medieval. É o caso de um lote inteiro de livros que pertenceram ao ex-governador Luiz Vianna Filho que acaba de ser vendido para um comprador tão feliz que só se deu conta que havia esquecido seis exemplares da lista, quando já estava no carro.
Só que ali nem todos ficariam contentes. Por exemplo, o que sentiria a poeta Regina Espinheira ao tomar conhecimento de que a obra Contando Estrelas – e outras poesias, dedicada “para a adorável Ingrid, com afeto cordial”, foi parar na prateleira 140/5 do sebo?
No site Mercado Livre, uma edição de poesias de um certo Jules Supervielle, intitulada Gravitations, de 1966, custa 225 reais, um valor pelo menos o dobro do que seria a coletânea em algum sebo. A inflação é determinada por oito palavras riscadas na quarta capa: “Ao Manuel, do velho Di Cavalcanti. Paris. 1966”. É creditado como um presente do famoso artista plástico ao amigo Manuel Bandeira.
O fascínio das frases soltas ao bem querer de quem folheia um livro já inspirou o curta-metragem Dedicatórias, de 1997, de Eduardo Vaisman. Depois da morte do marido, a personagem de Zezé Polessa passa a extravasar o romantismo recolhido pelas linhas caligrafadas em contracapa comprando livros usados no sebo para colecionar as dedicatórias e comparar com o número de palavras do recado de cinco palavras deixado pelo finado Octávio. “Setenta palavras, ai que lindo”, suspira ao encontrar uma declaração um pouco mais robusta.
Emoções carcomidas
Muitos sugerem que a página seja rasgada ou a mensagem apagada. Mas nada garante que a curiosidade vai ficar menos aguçada. O que teria ficado oculto pelo Liquid Paper cuidadosamente passado naquelas quatro linhas de dedicatória do livro Lendo no Escuro, de Seamus Deane, sobre um garoto que passa para a fase adulta na conturbada Irlanda dos anos 40 e 50, dentro de uma família numerosa, cheio de medos?
Raros são os livros sem as digitais de uma personalização, sem uma dedicatória, um nome de propriedade. Na seção de eróticos do sebo Brandão, jaz o romance Escritora Maldita?, que a partir do dia 7 de junho de 1989 passou a pertencer à “jovem Guel”, com um aviso cândido incompatível com as tórridas descrições das páginas seguintes: “emprestar é um prazer, ter cuidado é um dever, portanto, se você não tem, não insista”.
Uma ironia de matar é receber o livro Histórias de Morte, autografado pelo próprio autor: “à Lúcia e Sandra, com a consideração, o apreço e o abraço de Paulo de Tarso, 2/10/05”. Ou o apreço já não era mais tão vivo assim, ou o texto era mesmo de morrer.
Há incongruências de estilo, uma espécie de gafe em termos de presente. Como dar um livro de Sidney Sheldon chamado Nada Dura para Sempre a alguém que, enfim, conseguiu se empregar: “Maggy, tenho muita certeza que terá muito sucesso no novo emprego. Deus que lhe ajude, 29/10/94”. O exemplar foi parar no sebo, o melhor sinal de que a amizade ou o contrato de trabalho não foram definitivos.
O estudante Cledson A. Cruz presenteou uma professora com o livro O Falso Traidor – história real do espião dos Aliados que simula converter-se ao nazismo e carimbou a dedicatória: “Para minha amiga e mestre que voçê (sic) encine (sic) por muitos e muitos anos. I Love you teacher”. Aparentemente, uma professora de inglês, porque se fosse de português o próprio resultado do trabalho pedagógico estaria colocado em xeque depois de uma mensagem como essa.
Do mesmo jeito, o analista de sistemas, leitor compulsivo e agnóstico Marco Aurélio dos Santos registra no blog Jesus, me chicoteia (www.jesusmechicoteia.com.br) a montanha-russa de emoções que é fazer compras em sebos. “Um dia uma pessoa comprou o livro, escreveu uma dedicatória e o deu de presente para alguém que tinha algum significado. O destinatário não gostou do livro, ou o perdeu, ou lhe roubaram o volume, ou morreu e, passando de mão em mão, o livro foi parar num sebo, com sua dedicatória totalmente despida de sentido e calor”.
Nos livros, afetos parecem envelhecer ou morrer, como se seguissem um curso natural de desgaste: “Vó, espero que este livro possa lhe proporcionar momentos de reflexão, tranqüilidade e pez. Beijos da neta, afilhada, amiga e filha, Pati”, é o que está registrado na segunda página de O Sucesso é Ser Feliz, de Roberto Shinyashiki.
Solidariedade e pena por quem escreveu aquilo. O elogio, a declaração de amor ficam de domínio público, não têm dono, nem destinatário. Largar um livro de dedicatória ao destino incerto de um sebo, enfim, é uma espécie de adultério compartilhado. Que essa reportagem faça justiça a Octávio, o anti-herói que merece ser vingado em sua traição literária. E você? Sabe onde pode estar agora aquele livro que dedicou com tanto carinho a uma pessoa que ama?
A Ninja do Funk, o alter ego de uma jovem carioca chamada Amanda, de 1,62m de altura e grossura de pernas não
registrada em nenhum cartório, está emocionada com o, digamos, “calor humano” dos baianos. Ela não conhecia Salvador e garante ter ficado encantada com a forma “espontânea e carinhosa” com que foi tratada pelos fãs. Há 12 minutos, ela estava sobre um palco com um short preto de látex, menor do que muitas lingeries que estão no mercado, um top e o inseparável véu cobrindo nariz e boca. Ao lado da Proibida, da Mercenária e da Loira da Galera, ela não simplesmente dançava – isso seria para uma funkeira qualquer. Elas escolheram quatro espectadores do show para participarem de uma sessão de contorcionismo sexual, cuja única diferença para uma aula prática de tantra seria o fato de permanecerem vestidos.Provocando os rapazes, naquele momento considerados felizardos por uma platéia de uns 100 impetuosos homens, elas foram tocadas, cheiradas, lambidas, e qualquer outra forma de expressar uma atividade táctil, enquanto seus “clientes” permaneciam deitados no chão. As quatro tinham o controle da situação com seus movimentos insinuantes de gueixas do pancadão a ponto de um observador neutro, de cima do tablado sentenciar: “esses caras vão gozar aí mesmo”. Isso tudo é no 1° Baile Funk do Rio de Janeiro realizado na Bahia.
Para entender a languidez da cena é melhor começar do começo. Se bem que o início é de imprecisa definição. Pode ficar marcado nas origens do soul americano, ou do movimento musical da periferia do Rio de Janeiro, onde nos shows a platéia feminina costuma ir “de minissaia e sem calcinha”, como explica a jovem Girlene Costa, de 17 anos, em tom de reprovação. Ela diz isso usando uma bermuda jeans de cinco dedos de largura e um top menor do que um biquíni, mas garante que está com calcinha.
Para efeitos práticos, o início desse evento lúbrico-musical é 22h de sábado, como indicam os cartazes e ingressos, no Portual Portuário, ex-Codeba, um grande galpão ao lado do Terminal Marítimo de Salvador, em São Joaquim. Mas já são as primeiras horas da madrugada de domingo e nada de show, a não ser o som de cd irradiado por quatro modestas caixas de alto-falantes. A irritação é nítida e alguns grupos procuram “a reportagem” para registrar suas queixas, como o fato de já terem pagado R$27 de táxi para virem de Tancredo Neves, mais os R$12 do ingresso, mais R$7 de cerveja e acarajé e até agora nada de show. E o que é pior: “o nível de mulher está bem fraco”. Denílson dos Santos Andrade, por exemplo, jura que vai ao Procon, ao que é seguido por quatro amigos num grito de “propaganda enganosa”.
O organizador, o carioca radicado na Bahia há 17 anos, Maurício Brito, considera natural o atraso do grupo Funk Fest (“eles já tão ali na Avenida Contorno”), mas não demonstra o sorriso de um MC na hora de falar sobre a presença de público. No máximo 120 pessoas, sendo que uma parte delas já está partindo, um número admitido como baixo para um show com o apelo do pioneirismo e a divulgação em comerciais de televisão. “Amanhã (ontem), vai ter na Fashion Club e vai estar lotado”, consola-se o produtor da festa.
Martela o martelão
Finalmente a Van branca com o MC Claudinho, o DJ Inoxx e as quatro acompanhantes em trajes sumários chega. É o veículo da esperança coletiva de salvar a noite. Uma noite em que pequenos delitos são permitidos, como a entrada sem problemas de quatro estudantes vindas de Águas Claras, sendo que só Suelen Nascimento tem 19 anos, as três amigas são menores de idade. Antes mesmo de o show começar, elas já estão executando, com riqueza de movimentos, coreografias de músicas com refrões acrobáticos como “de ladinho, a gente gosta”, “vou aparar pela rabiola, vou sim” e “então martela, martela, martela o martelão”.
Fazendo justiça à sigla de Mestre de Cerimônias, o MC Claudinho começa o show sem se importar que a platéia reúna,
no máximo, 120 pessoas cansadas de horas de espera. A animação dele é como se estivesse gravando um DVD no Maracanã lotado. O público também responde com agitação logo que surgem, uma a uma, as vedetes do batidão. Com a aparição das musas, os mais afoitos – quase todos – se comprimem na frente do palco, que tem 1,50m de altura, como se fosse a última chamada para um emprego com carteira assinada no SIMM. A cena é linda: mais de 20 celulares são sacados simultaneamente e têm as câmeras apontadas para os mais íntimos talentos da Loira da Galera, da Mercenária, da Proibida e da Ninja do Funk. Elas respondem com mímicas de quem está gemendo e posições que fazem os aparelhos de filmagem parecerem apêndices do corpo, tamanha a aproximação.
Contratados para proteger o palco, os seguranças aderem às imposições hormonais e aproveitam da proximidade. A princípio, nenhum deles usa armas, mas a julgar pelos uivos de delírio todos estão em ponto de bala. O segurança identificado apenas como Marcos pretende descontar todo seu furor reprodutivo em uma inocente. “Agora eu tô nervoso. Êta que a nêga véia lá de casa vai tomar uma cipoada”, suspira.
Suor do trabalho
Num instante, um momento mágico de interação de artista e público. Uma camisa chega ao palco e a Ninja enxuga o suor e devolve para a platéia. Começam a voar camisas, bonés, lenços, toalhinhas e elas atendem a todos esfregando as peças por todo o corpo – precisamente todo o corpo – e jogando de volta para os donos.
A apoteose da lascívia é com a escolha de quatro entre os mais empolgados como partners das divindades profanas em uma performance capaz de deixar encabulada qualquer discípula da modelo Daniela Cicarelli. Eles deitam no palco e viram servos imóveis de idiossincrasias sexuais, em poses que ficaram muito mais elegantes quando expressas como a união entre o côncavo e o convexo, na música de Roberto Carlos. Qualquer esforço descritivo se tornaria inútil, do mesmo jeito que ficaria incompatível relatar a gravação de uma pornochanchada usando o vocabulário do maternal.
Terminados os cinco minutos de visões asfixiantes, o cantor MC Claudinho fala em alto e bom som no microfone que está vendo pelo volume da bermuda que determinado participante da gincana do orgasmo está sexualmente excitado.
Só que num baile funk a expressão sexualmente excitado nunca é usada, ele fala sem usar esses eufemismos de médico. MC Claudinho usa o jargão popular sinônimo de pênis ereto. O jovem, envergonhado diante de uma platéia de cerca de 80 marmanjos furiosos, responde apenas que está com o celular no bolso.
Pouco mais de 50 minutos depois de chegarem na van branca, os cariocas já estão se preparando para voltar ao hotel. No camarim, MC Claudinho bebe uma água e afirma “estar de bobeira” com a animação da platéia. Vai voltar a Salvador em 2 de dezembro, com a mesma trupe e o ator pornô Alexandre Frota, para continuar a divulgação pelo nordeste do CD com o singelo título Te Banquei, mas Te Comi.
Só há mais um momento de tensão antes da despedida. O biombo feito para as artistas trocarem de roupa fica bem ao lado de um janelão de vidro. Logo que descobrem que as garotas estavam tirando a fantasia, os seguranças passam a subir nos ombros uns dos outros para dar aquela espiadinha. Não apenas um ou dois, mas dezenas deles. “Isso termina sempre acontecendo. Eles sempre confundem porque no palco é uma coisa, fora do palco é outra”, minimiza a Ninja, conhecedora profunda do tal “calor humano”. Ah, e para os curiosos, Amanda fica bem melhor com o véu do que sem ele.
Na impagável Corrida dos Garçons teve de tudo: campeão querendo folga e espectador aproveitando cerveja quente
Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)
Velocidade nas pernas tem nome: é o jamaicano Asafa Powell, de 23 anos, atual recordista mundial da prova de 100 metros rasos, distância que já percorreu em meteóricos 9,77 segundos. Agora, para tentar fazer o mesmo levando uma bandeja nas mãos e sem derramar uma gota de alguns copos de cerveja até mesmo Asafa pediria auxílio a um especialista. Ele é Apolônio Pereira dos Santos, 49 anos, com pelo menos 29 deles dedicados à profissão de garçom. Veterano no ramo, Popó, como é conhecido pelos clientes do restaurante Jardim das Delícias, no Pelourinho, tem a elegância de um dançarino de valsa com a vitalidade de um atleta olímpico.
Pelo menos, era isso que ele queria provar ao se inscrever entre os 53 concorrentes da II Corrida dos Garçons, realizada ontem na Avenida Oceânica, na Barra. Com a gravatinha borboleta impecável, a calça escura de linho e uma camisa com o número de sua inscrição (28), ele era o decano entre os competidores, um atleta master que ainda não pensa em pendurar as chuteiras. “Estou aí tentando superar essa juventude toda”, declarou, humilde, apontando para os adversários, cuja maioria tem metade de sua idade.
A resposta foi dada ainda no período de aquecimento para a grande prova, que virou uma atração peculiar na chamada Rua do Lazer, a iniciativa que transforma aquela região da Barra em um recanto para pedestres aos domingos. A partir daí, o que vai se ver é um cardápio reunindo atletas do bem servir em pequenas disputas pela consagração e uma platéia atônita, alguns gargalhando com a surreal competição na orla.
A primeira etapa é explicar as regras. A árbitra Sinai Lopes simplifica ao máximo para não criar problemas: quem chegar em primeiro, segurando uma bandeja com cinco latas de cerveja em uma mão e mantendo a outra mão atrás das costas, é o vencedor. Serão três baterias e os melhores colocados de cada uma delas passam para a final. Compenetrado, José Alberto Gomes da Silveira, funcionário do refinado japonês Soho, lembra de todo o equilíbrio que precisa exercitar para levar um prato de tempura aos seus clientes. “É muito difícil porque é tipo um leque alto de camarão e legumes. Aí, se bate um vento, cai tudo no chão”, avalia ele, que não esquece o tropeço infame que tomou quando trabalhava na Casa Oriental e resultou em Yakissoba espalhado por todo salão e um constrangimento que não tinha como limpar.
200 couverts
Próximo a ele, Jardel Batista Braga quer esconder o cansaço de quem trabalhou até 4h30 e apenas quatro horas depois já tinha despertado para disputar um lugar no pódio. A madrugada foi trabalhosa no Trapiche Adelaide, só ele servira 200 couverts. “Mas dessa vez, eu não quis deixar de participar. No ano passado, me inscrevi, mas não pude competir, porque cheguei atrasado”, sustenta o infatigável Jardel.
A organização da prova define que o percurso vai ter pouco mais de 100 metros no sentido Farol-Cristo. Nessa hora, entra em cena Edinei Lima, 29 anos, há seis como garçom do restaurante Nacif, no Iguatemi. “É preciso inverter a direção da corrida, por causa do vento”, avisa ele, também compositor de músicas de axé, já prevendo as derrapagens e vôos de latinhas. Edinei é atendido e falta pouco para o início.
Ao contrário dos corredores profissionais, que não abdicam de alongamentos nos momentos que antecedem a largada, a turma da bandeja aproveita para ajeitar a gravatinha e verificar se o sapato social pode derrapar na pista de asfalto. Nesse momento, o presidente da seção baiana da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), José Ronaldo Teixeira, começa a distribuir as latas de cerveja entre os concorrentes. A competição foi uma idéia de encerramento lúdico para o festival gastronômico Brasil Sabor, evento promovido simultaneamente pela Abrasel em Salvador e mais 70 cidades, durante cinco semanas. “O garçom é um dos principais atores de nosso segmento e faz o sucesso de qualquer gastronomia. Nada mais justo do que prestarmos essa homenagem”, elogia Teixeira, que providenciou uma televisão de 29 polegadas, uma bicicleta de 18 marchas e um aparelho de DVD para premiar os três primeiros colocados.
É dada a largada para a primeira bateria. Um dos competidores chega a perder os calçados, outro tropeça e derruba uma bandeja, três chegam empatados aos trancos e barrancos e um deles atropela uma jovem na linha de chegada. Tudo isso em menos de 15 segundos. O comerciante Luciano Magno, de Feira de Santana, que assistia a tudo atento, dá um sermão no seu candidato favorito. “Rapaz, você vinha bem, mas se desesperou e jogou tudo para o alto”, critica, falando para Edvaldo de Jesus, garçom da Companhia da Pizza, que ouve resignado.
Cerveja quente
Um outro espectador mais ágil incorpora a filosofia do “quanto pior, melhor”. Paulo Ramos, 65 anos, aproveita Marcos se desequilibrando, Juca tropeçando, Laércio comemorando, ou qualquer outra ação que tenha como resultado uma lata de cerveja caída no chão. Não importa a temperatura, se o recipiente rola pela avenida, ele vai atrás, avidez em pessoa, buscando a saciedade etílica. Antes, dá uma esfregadinha na camisa para tirar o excesso de areia, destampa a lata e bebe em goles generosos. “Cerveja boa é aquela na temperatura ambiente, ao estilo alemão”, saboreia, deixando escorrer um pouco do líquido por lábios e camisa.
Depois da segunda bateria, Marcos Paulo Souza Ramos, do Caranguejo do Sergipe, cobra dos organizadores um tira-teima, um replay, qualquer coisa que lhe dê o primeiro lugar. Segundo ele, o vencedor da prova não estava o tempo todo com uma das mãos para trás. Além dos gritos dos vencedores parciais e das reclamações aos juízes, a sonoplastia da corrida maluca tem a participação de uma charanga de nove músicos, comandados pelo maestro Veléu Cerqueira. A trilha sonora faz recordar sucessos do ufanismo desportivo: “Vamos todos juntos/ pra frente Brasil, Brasil/ Salve a Seleção”.
“A iniciativa é boa para mostrar que os restaurantes também têm atletas. E não apenas praticantes de halterocopismo”, brinca o bem humorado Sérgio Bezerra, dono do não menos irreverente Habeas Copos, o tradicional ponto de encontro de boêmios na Barra. Já os competidores não se entendem quanto as condições climáticas. Francisco Ednar, da pizzaria Quattro Amici, reclama da dificuldade de se equilibrar por causa do vendo, mas Carlos Augusto da Fonseca, do Bahia Café, garante que o vento sopra a favor dos mais talentosos.
O motivado Paulo Ramos deixa o papel de espectador imparcial de lado epassar a torcer fervorosamente pela derrubada de latinhas de cerveja, em uma apropriação literal da expressão “entornar o caldo”. Ele usa toda a sua sabedoria fermentativa para meditar sobre o grau de pureza da cervejinha. Como se fora um alquimista de botequim, requisita aos organizadores uma taça, dá uma lavada com água e despeja o áureo líquido para fazer considerações sobre a densidade da espuma e a ausência de bolinhas. “Isso é que é uma fermentação perfeita. Puro malte”, suspira.
De tão concentrado em sua filosofia de beberrão, ele nem percebe que Laércio Reider já ganhou o título de campeão geral, depois de menos de 30 minutos de competição. Funcionário do restaurante Grande Sertão, ele vai logo cobrar do patrão, coincidentemente o mesmo José Ronaldo Teixeira, um prêmio tão valioso quanto a TV de 29 polegadas que levará para casa. “E aí, chefe, vão ser quantos dias de folga mesmo?”
Depois de subir ao pódio (sem direito a estouro de champanhe), ao lado Francisco de Sales (restaurante Pereira), Renato Silva (Cheiro de Pizza) e Carlos Augusto (aquele ajudado pelo vento), Laércio precisa atender a imprensa em uma coletiva de improviso. Manda um recado para seus fãs, Laércio: “Aos patrões, agradeço a oportunidade. A todos os garçons, desejo felicidades e que treinem mais para o próximo ano”. Isso mesmo, sem falsa modéstia. E, se na próxima edição, esses eternos coadjuvantes da gastronomia produzirem um menu tão divertido quanto o da corrida desse ano, vale até cobrar ingresso na forma do popular 10% de gorjeta.