Microcosmo de gente

A vida pulsa no universo eclético da multidão que diariamente transita pela passarela do Iguatemi

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com )

 

O filósofo clássico Heráclito definia, com beleza peculiar às frases simples, o princípio de constante mutabilidade humana dizendo que “não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio: Ou o homem não será o mesmo, ou o rio”, ensinava. Provavelmente, a inspiração para o axioma do pensador tenha surgido de um banho no curso do rio Caystre na cidade de Éfeso, onde Heráclito nasceu, na antiga Jônia, atual Turquia. Já o intelectual contemporâneo Jean Baudrillard traz a questão da modernidade e da dissolução do indivíduo na selva da civilização com uma imagem ainda mais banal: a da passante que atrai a atenção e em seguida perde-se tragada pela multidão. Possivelmente, Baudrillard construiu sua metáfora caminhando pela Champs-Elysées, a larga, arborizada e imponente avenida que liga a Praça Charles de Gaulle à monumental Praça da Concórdia, em Paris.

O aposentado, filósofo de botequim e anônimo Jaime Souza, 68 anos, versão mal-ajambrada de um Jece Valadão, com a boca banguela escancarada e um tanto de malícia no palavreado entrou na briga de conceitos. “É nesse vaivém, empurra-empurra que a vida fica mais gostosa”, decretou, usando um duplo sentido que só percebeu quem pôde ver a cara de satisfação do idoso no meio do esfrega-esfrega.

Para chegar à sua lapidar proposição, o senhor de cabelos brancos e pele enrugada, mas vicejando libidinagem, não ficou elucubrando conceitos, exercitando dialética ou teorizando sobre o sexo dos anjos. Foi criar seu próprio teorema onde a vida pulsa: a passarela do Iguatemi.

Mais movimentada passarela da Bahia, a via suspensa que une o shopping de maior freqüência do estado ao Terminal Rodoviário de Salvador é uma pequena cidade de uma só rua, sem edifícios, nem instituições. No diminuto trecho de 227 metros de comprimento por 2,5 metros de largura, uma Entre Rios caminha todo dia, uma São Sebastião do Passé anda ou uma Xique-Xique passeia. A média é de 40 mil pessoas transitando diariamente pelo local, estimativa da Secretarial de Transportes Urbanos. Tamanho fervilhar de vida foi prato cheio para a inspiração lúbrica de seu Jaime, em uma terça-feira, lá pelas 12h30. Poderia ser numa segunda, ou no início da noite de sexta, até mesmo num domingo ao meio-dia. Não coincidentemente, estes horários representam os momentos de término de cultos na vizinha edificação da Igreja Universal do Reino de Deus.

Do prédio monumental e imponente em uma das zonas mais nobres da cidade, sai uma leva de fiéis que toma conta das ruas em direção à Estação de Transbordo ou ao Terminal Rodoviário. Nessas horas, andar por aquela elevada estrada de concreto é como atravessar uma via-crúcis. Ou então a própria materialização do purgatório bíblico. “Isto aqui é um inferno”, batiza uma jovem, baixinho para não atrair a ira do círculo de fiéis e Deus não tomar conhecimento da blasfêmia. Não se sabe sequer como a garota arrumou fôlego para o sussurro, espremida entre centenas de outras. Nesse momento, a multidão que transita de forma vagarosa tem dois objetivos: o primeiro é chegar aos seus pontos de ônibus; o outro com certeza é invalidar o princípio da impenetrabilidadeda física. No espremido corredor ao ar livre, nas horas mais críticas, é possível que um pedestre menos apressado e fisicamente desprotegido demore uns 20 minutos para vencer a compacta massa humana, quase um amálgama de gente.

Indo e vindo ao sabor do fluxo de pessoas, o estudante Ricardo Oliveira, 16 anos, 1,64m e 56 quilos, já não tem mais livre arbítrio no meio do povo. “Meus pés não estão tocando no chão”, avisa. Os que conseguem preservar algum senso de humor são capazes de perceber situações engraçadíssimas. Um rapaz de 20 e poucos anos, camisa preta estampada com a palavra Kiss (não o carinhoso ato de beijar e sim o grupo de rock), muito impaciente com o tumulto, pisa o calcanhar da senhora à frente, descalçando o sapato simples e sem salto.

Vestida com uma saia longa e uma camisa de cambraia presa aos pulsos, a despeito do calor infernal, a fiel exclama: “Que …” O palavrão apropriado para uma situação tão irritante não chegou a sair da boca da crente que há pouco tinha embebido a alma com o bálsamo eclesiástico da fé. O jeito foi continuar andando com o calçado saindo do pé.

Um pouquinho mais à frente uma morena, enfiada em um top floral e numa calça branca colada às pernas e quadris bem cevados se intromete no bolo humano. É o suficiente para catalisar todos os esforços e hormônios de um mulato facilmente identificado como obreiro da igreja. Para ficar no horizonte da física, pode-se caracterizar a ação do benfeitor como um choque perfeitamente inelástico, um impulso traseiro para maximizar a quantidade de movimento. Afinal de contas, sabe-se que o nono mandamento prescreve: se o próximo não estiver tão próximo da mulher. Em cinco minutos, a multidão vai arrefecendo e, muitos chutes de calcanhares, empurrões e princípios de desmaios depois, toma seu curso normal. Normal não significa esterilidade de emoções e casos pitorescos. Eles estão sempre presentes na Passarela do Iguatemi.

Manancial

Exótico microcosmo de gente, pólis da essência humana, a passarela é um manancial rico em personagens. Na zona mais próximo ao shopping, sentada sobre um papelão, Maria da Conceição Silva, 43 anos, é vista como aberração por grande parte dos transeuntes. Com o corpo inflado em 130 quilos de gordura e a perna direita completamente deformada pelos males da elefantíase, a mulher sobrevive da conciliação de asco e piedade transformados em cédulas de pequeno valor e moedas arremessadas em direção ao corpo da enferma. “Não olhe pra essas coisas”, diz o irmão mais velho de um garoto, protegendo os olhos do menino da visão do granuloso membro inferior da doente. Uma mãe utiliza o exemplo para dar uma lição de educação sanitária à filha: “Veja aí o que acontece com quem não se cuida”, avisa, mostrando a perna da mulher tumorosa com a presença das filárias nos vasos linfáticos.

Por trás da aparência grotesca, esconde-se a alegria contagiante de Maria da Conceição. Fez três cirurgias sem sucesso na parte posterior do joelho e ouviu recentemente a previsão de um médico de que precisaria amputar. Antes teria que assinar um termo de responsabilidade reconhecendo o alto risco da cirurgia e a possibilidade de falecimento. Tenta há seis anos uma aposentadoria do INSS por invalidez, mas sempre ouve a resposta de que a enfermidade não permite a aposentadoria. A passarela é um sustento temporário, apenas aproveitando o filão das compras de fim de ano. Consegue, em média, R$20 por dia, saindo de casa às 7h e retornando meia-noite.

“Faltam R$300 para eu completar os R$5,3 mil para comprar a cadeira de rodas motorizada”, contabiliza, depois de praguejar contra os taxistas que não aceitam conduzi-la por causa da aparência. As pessoas passam e seus olhares de soslaio e repugnância não intimidam Maria da Conceição. “A perna não dói, mas quando fico nervosa ela rasga e mina um líquido”, revela, mostrando três cicatrizes de cirurgias. Alternando o ponto entre a passarela e a avenida Manoel Dias da Silva, Conceição faz elogios ao local. “Ninguém rouba ninguém, os pivetes não perseguem. Aqui é nota dez”, vibra. Como que para referendar a observação, Conceição recebe uma nota de R$1 da professora de artes marciais Elisângela Francisco, que não parece concordar com a comparação ao paraíso. “Não gosto muito de andar por aqui. Minha mãe já foi assaltada”, alega, imprimindo mais velocidade na caminhada. Mas logo ela, que dá aulas de defesa pessoal, com medo de roubo? “Na verdade, o medo maior é de andar nessa altura”, revela com inusitada acrofobia.

Praticamente pendurado em uma das barras, sentado, sem nenhuma forma de fixação a não ser o equilíbrio corporal, o ambulante Ricardo Araújo, 25 anos, sustenta discretamente uma coleção de bolsas de fabricação própria que tenta vender a R$5 cada. Tem cinco anos vendendo na passarela. Tenta fugir dos constantes assédios dos fiscais da Sesp, cuja função é não deixar ambulantes ocuparem o local para vendas. Aliás, “fiscais da Sesp” é uma expressão jamais usada por ambulantes, que preferem o sinônimo pejorativo para os profissionais: o rapa. “A gente até entende que eles estão fazendo o trabalho, mas têm que ver que precisamos sustentar a família”, condena Ricardo, pai de uma menina de 2 anos. Em cinco anos trabalhando na passarela, acompanhou um teatro a céu aberto. “Aqui acontece de tudo: gente tropeçando e caindo, marido dando tapa em mulher, até os caras roubando”, denuncia.

No meio do papo, a doméstica Gilvanete Barbosa, 19 anos, depois de mais um dia de serviço na “casa de família” no Caminho das Árvores, encanta-se com o modelo da bolsinha. Acertada a pechincha (R$4,50), a única questão é escolher a cor da peça. O vendedor, que em dias bons vende quatro bolsas e nos ruins nenhuma, sugere: “Leve essa marronzinha que combina com sua pele”, acrescenta, olhos gulosos nas coxas da moça apenas parcialmente cobertas por uma saia de crochê.

Em direção à rodoviária, onde vai pegar ônibus para Marechal Rondon, Gilvanete passa por Genivaldo de Jesus Souza, um deficiente físico que prega passagens bíblicas diuturnamente e recebe caridade. “Deus tem uma missão para você”, conclama, enquanto Gilvanete passa pelo local sem dar muita atenção. A frase tanto pode ter sido para ela como para as cinco ou seis pessoas que andam simultaneamente ao seu lado. Com uma deformidade no tronco e nos membros que o reduz a um tamanho não superior a um metro, Genivaldo recita parábolas bíblicas continuamente. Sem poder se locomover, chega ao local às 9h, carregado pelo irmão Ubirajara. “Desde que aceitei Jesus, em 99, na Igreja Batista de Plataforma, vi que Deus tem um plano para mim. Uma vez, um jovem ia se jogar dessa passarela e, ao ouvir minhas palavras, desistiu”, confia. O slogan do shopping é “nenhum é igual a você”. O rio de gente que corre diariamente pelo espaço faz com que a passarela seja sempre a mesma e sempre diferente.

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VIDA SUSPENSA

Passarelas projetadas por Lelé formam ecossistemas ricos em personagens

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

A passarela do Iguatemi é uma exacerbação do que acontece em outros equipamentos da cidade. Salvador tem 16 passarelas no modelo mais moderno, projetadas pelo arquiteto João Filgueiras e construídas pela Companhia de Desenvolvimento Urbano de Salvador (Desal), empresa de economia mista especializada na fabricação de mobiliário urbano de alta resistência e que também serve à iniciativa privada. Cada uma delas tem uma personalidade própria, a depender da espécie de transeunte que comporta. As quatro passarelas na Avenida Bonocô são gêmeas, abrigam três pontos de ônibus em ambas as pistas da avenida e na via exclusiva.

Não têm tanto movimento como outras mais trafegadas, mas possuem uma conotação clubística marcante. Principalmente em dias de Ba-Vi na Fonte Nova, são decoradas com bandeiras das equipes. A passarela do Detran é uma das mais antigas e foi decisiva para a diminuição do número de atropelamentos na região.

Na BR-324, algumas passarelas antigas e descobertas servem à população local. Uma delas, próximo à Brasilgás, bem conservada, recebe bom fluxo de passageiros carregando sacos, pacotes, malas e mochilas, que saem de São Caetano para pegar ônibus intermunicipais na parada. Mesmo sem ter um toldo de proteção, os transeuntes preferem usá-la até em dias de chuva a atravessar a rodovia. As passarelas da Avenida ACM viraram ponto preferencial de suporte de galhardetes e cartazes no período eleitoral.

Na Avenida Centenário, no Chame-Chame, uma passarela no Shopping Barra é a que mais se assemelha ao perfil da similar no Iguatemi. Com um fluxo de pessoas razoável, configura os jogos de poder e as implicações sociais observadas na principal expoente do fenômeno das passarelas. Logo de início, uma senhora, daquelas com aparência de que fazem passeios vespertinos em supermercados, reclama da ausência de iluminação artificial no local. O ambulante Antônio Barbosa, 55 anos, vendedor de bugigangas paraguaias, confirma a queixa, ressaltando que não é feita manutenção há quase dois anos. “Trabalho no escuro até a hora do shopping fechar”, afirma Antônio, salientando que a partir das 18h, “hora que o rapa vai embora”, trabalha mais livremente. A chuva começa a cair e ele rapidamente muda o nicho de mercado, estendendo sombrinhas.

A estratégia dá certo. Um senhora, roupa molhada, cabelo sarará escorrendo água e entrevendo calvície,questiona: “Quanto é?” “Cinco reais”. Escolhe uma estampada em rosa com motivos florais, a mais espalhafatosa das peças.

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Embate de classes

A reprodução do embate de classes não se esgota. Dois rapazes com estilo de geração shopping center (roupas de marca, tênis da moda, cabelos com gel) emendam: “Ô, véio, quanto é o guarda-chuva?” “Cinco reais”.

Ambos saem sem nem um agradecimento. Um senhor vestido com calça de linho e camisa social se aproxima e sequer pergunta o preço. Aponta para a sombrinha em tons marrons.”Aquela ali”. Só depois questiona o valor:”É cinco reais, não é?” E leva. Antônio aponta para um vendedor, poucos metros adiante, que se recusara a dar entrevista. “Aquele é safado, quer prejudicar chamando o rapa. Já tomou porrada porque é dedo-duro”. E vende mais uma sombrinha antes da chuva cessar.

Sentados em poses que poderiam ser confundidas com indolência, quatro hippies fazem artesanato em palha e bijouterias. Depois de passarem por Itubiara, Brasília, Juazeiro e Petrolina, a previsão é de retornar logo que arrecadarem o dinheiro para a passagem. Um deles, Gilberto Gonçalves, mostra uma sacola com uma muda de roupa puída, uma marmita e uma manta velha. Enquanto isso, dois vendedores de loja de marca, fardados, perguntam quanto custa um colar. Pela expressão de reprovação, não gostaram de ouvir R$10. Mais na frente, um casal branco de estrangeiros compra um cinto pretensamente de couro nas mãos de outro ambulante. Ao lado, o vendedor de doces oferece uma iguaria exótica ao paladar europeu: beijuzinho molhado de tapioca. “Faço por R$0,50”. E nessa, a integração étnica vai se desenrolando. A passarela não tem fronteiras.

Mais do que equipamentos facilitadores do trânsito, as passarelas de Salvador se transformaram em pequenos ecossistemas. A do Iguatemi é insuperável. A dupla de soldados da PM, Lacerda e Vieira, sabe muito bem disso. “Aqui dá de tudo. De estelionatário a viado ordenando o bofe a largar o outro”, avisa Vieira, óculos escuros no rosto e pinta de tira do antigo seriado Chips. Encostados nos peitoris de ferro ou fazendo uma ronda pelo local, os dois formam uma das três duplas de policiais que se revezam em turnos das 7h às 13h, 13h às 19h e 16h30 às 22h30. “Depois que o policiamento ficou constante aqui, o índice de ocorrências caiu muito”, assegura o orgulhoso Lacerda. “Antes, tinha muito pivetinho praticando pequenos furtos”, completa. Basta terminar de falar para dois menores passarem, tentando disfarçar a apreensão. “Aqueles dois ali são ladrõezinhos, mas como viram que estamos aqui vão procurar outro canal”.

Velhos tarados

Lacerda e Vieira já viram muita história na passarela. “Teve briga por causa de traição, flagrante de adultério, mas também tem muita gente que deixa o carro aí no estacionamento do shopping e se encontra por aqui”, entrega Lacerda, detetive particular nas horas vagas. “Ultimamente, tem aparecido muito velho tarado. Eles entram no bolo de gente para ficar roçando o braço nos seios e nas nádegas das mulheres. Ou então oferecem R$20 ou R$30 para as garotas mostrarem os seios. Alguns conseguem”, detalha. Um senhor de paletó, acima de qualquer suspeita, caminha rapidamente carregando uma pasta e, quando abordado pela reportagem do Correio da Bahia, dá de ombros: “Tô ocupado agora”. O soldado Vieira dá sua versão para o repúdio do idoso.

“Aquele mesmo é um dos velhos tarados”.

Em uma informal convenção para a viabilização do trânsito, as pessoas adotam, nas passarelas, o critério de fluxo semelhante ao dos automóveis em rodovias: duas filas caminhando em direções opostas com os pedestres à direita. Geralmente, esse tipo de escolha facilita o trabalho dos distribuidores de panfletos. Eles são facilmente encontrados oferecendo de limpeza de estofados a dedetização, de dinheiro fácil a consultas ao tarô.

Para Ana Lúcia Santos, 23 anos, o vaivém de gente vai ser transformado em um polpudo aumento nas comissões. Ela tenta cadastrar associados para o cartão de compras de um supermercado próximo. Por que escolheu o local? “Porque aqui tem muito movimento”, responde, sem querer perder tempo e mais um potencial cliente. Em 30 minutos, conseguiu 22 adesões, quase um recorde do marketing one-to- one. “O produto também é bom, a gente dá 40 dias para pagar e quatro vezes sem juros, sem taxa de anuidade”, completa como exercício de modéstia.

Quando menos se espera, a circulação é atravancada, as passagens são interrompidas. Na frente de uma fileira de pessoas, um deficiente físico, apoiado em muletas, não consegue manter a mesma cadência da maioria, provocando um engarrafamento humano parecido com o de carros que acontece na pista alguns metros abaixo.

Um pouco atrás, sem perceber as razões do congestionamento, um rapaz resmunga:  “Pôxa, até parece que tem aleijado na fila”. E na ala oposta, em outro momento, uma mulher reclama com a garota da frente: “Ih, essa aí está desfilando”. Desfilar, desfilar mesmo, a estudante Carolina Santana, 16 anos, só poderia nesse tipo de passarela. Baixotinha, um pouco acima do peso, cabelos desgrenhados e rosto com espinha, não tem nada do biótipo e do glamour das modelos que desfilam suas magrezas pouco ocultas em roupas chiques no Iguatemi Collection. Lá vai Carol no mesmo passo, sem dar bola às queixas, pisando em ovos e tendo um público um pouco mais hostil do que os dos desfiles de moda. A passarela popular é assim mesmo: dinâmica, plural, sem preconceitos.

*publicado em 12 de janeiro de 2003, no Correio Repórter 

O homem que corre

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Um homem corre no contrafluxo de carros e de ônibus. Ele tem a aparência esgotada, suor escorrendo pelo torso, os ombros retos e firmes. Os olhos visam o infinito, cabeça ereta. Fone branco no ouvido, ele tem uma aparência cansada.

Quais serão os pensamentos do homem que corre no contrafluxo de carros e de ônibus? Serão pensamentos enxutos, raros, caros, putos?

Quanto de fadiga aguenta o corpo suado e cansado do homem que corre no contrafluxo? Quanto de fadiga, me diga.

De quem ele corre? Quem ele quer encontrar?

O homem que corre no contrafluxo, sempre passa no mesmo horário, caindo a noite, depois que o sol se pôs e só lhe resta correr da escuridão.

Contradição atlética esse homem que corre no contrafluxo. O corpo está ali presente, mas a imagem de ausência é o que passa rápido, na direção oposta, ameaçando o sentido único dos veículos.

Os pés calçados vencendo o asfalto, a cabeça lá no alto mais alto que o céu.

Quais as canções acompanham e guiam o homem que corre no contrafluxo? Para correr, o que ele ouve, o que houve?

Corre sem relógio, sem marcação, nem destino. Vai até o corpo avisar que já pode parar. Corre e corre mesmo para depois de lá.

Visto à distância por alguns segundos. Carros passam. Ele tem direito a ficar doente, sente dores musculares? Benvindo seria em quantos lares? Como se comportaria esse homem em outros ares?

Ele passa rente a carros, parece imune a buzinadas, não se incomoda com o braço batendo em retrovisor com a violência de um xingamento, com um ferimento redentor. O homem corre e não se incomoda, seu tornozelo batendo alto nas nádegas é mais do que moda.

Não tente encarar o homem que corre no contrafluxo. Não tente alcançar o homem que corre. Não adianta identificar quem. Parado, ele não é mais ninguém.

Um homem corre, suor escorrendo, urgência que ocorre, amor socorrendo. Um homem corre.

OS BAIANOS: Aline, sempre a um passo apenas do paraíso

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Será de manhã quando você se deparar com a jovem que corre de muletas na orla. Será uma nova manhã. Ela, que se locomove em um balé cibernético, onde os braços ganham extensões até o chão, vigas móveis, apoiando e impulsionando adiante. Será manhã naquele trecho entre Itapuã e Piatã e você será mais um na plateia informal impressionada, pode interromper a própria corrida em homenagem, ou dar uma buzinada de incentivo. aline_sorri

Como se Aline Melo, 21 anos, precisasse de algum estímulo externo. Seu ritmo é apoiado em duas muletas cor de rosa chumbo e em obstinação. E você aí, pela metade, reclamando que hoje não dá, que os músculos estão cansados, que está frio demais ou calor demais. Aline é daquelas miragens desconcertantes, como seu Arioste, que surgem na orla de Salvador, essa cidade que tem sabor de pão dormido molhado em azeite de poesia.

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– Posso fazer uma entrevista?

– Não sei muito falar.

Mas aí mesmo, com certo sorriso, já vai contando que mora no Jardim das Margaridas, um bairro próximo ao aeroporto de Salvador, dividindo a casa com uma tia. Saiu de Paulo Afonso, um ano atrás, atraída pela proposta de trabalho em um escritório de material de construção. “Estou muito feliz, me sinto em casa”. Encantou-se com a praia, com o Farol da Barra, com o Elevador Lacerda, com o Mercado Modelo. Aos fins de semana, encanta-se também com o shopping center.

Não é atleta, não visa paralimpíadas, é apenas prodígio da força de vontade, lição da natureza. Ela não pode conjugar para si mesmo membros inferiores no plural, mas vai caminhando, em passos únicos, numa altivez superior. Fone no ouvido, roupa de academia, cabelo preso, nada falta no visual de Aline Melo. O que sobra é sua exaltação diante do mar. “Essa orla é linda demais”, exclama, sábado sim, sábado não, ou feriados, quando não precisa trabalhar. É de fazer pensar se uma jovem assim, tão real quanto improvável, chegaria a musa inspiradora de Chico Buarque.

– Você se considera um exemplo?

– É o que as pessoas costumam dizer, responde, em um tom quase envergonhado de quem não quer assumir fantasia de heroína.

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Nessa Salvador, a capital exuberante, que mais impressiona do que choca, não há políticas públicas para nada e para nada, ela passa por cima, aos saltos, de uma calçada desnivelada, esburacada, torta, como a vida costuma ser. Olhares oblíquos vão fitando a jovem, são olhos que pertencem a corpos com potencial amputado pela mediocridade, vidas pererês que vão errando bípedes por aí sem direção. No caso dela, seguir adiante é também uma questão de equilíbrio.

Desnecessário é detalhar como ela teve a perna direita arrancada aos dois anos de idade em um acidente com ônibus cujos detalhes ela nem precisou de muito esforço para esquecer. Isso está no passado. No futuro, o sonho dela, que terminou o ensino médio, é passar em um concurso, qualquer que seja. Sem ser Alice, Aline considera que o país das maravilhas seria aquele em que fosse servidora pública da área administrativa de alguma estatal ou autarquia.

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– Posso tirar umas fotos?

– Só se ficar bonita, responde com um sorriso.

Mesmo em feriado, o mundo passa com pressa por Aline, em duas pernas, em duas ou quatro rodas. Mas vá procurar naqueles céleres o mesmo riso fino e perene no canto de boca. A satisfação suave de ver a praia pela primeira vez, mesmo que já seja a centésima.

Aline Melo é inteira em felicidade e encantamento pela orla, pelo mar, que é esse inconsciente coletivo em forma líquida. E você aí, reclamando que hoje acordou cansado, que está atrasado demais para coisa alguma, fazendo um glossário de “mas” e “se” só com o objetivo de se boicotar. E eu aqui, procurando o que falta, um sentimento que sirva, qualquer coisa que se sinta.

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OS BAIANOS – Arioste, o atleta gentileza

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Quem vê na manhã da orla de Salvador, Arioste Jorge Fér Farias acenando a esmo, ao largo de um engarrafamento insalubre, atravessando com sorrisos a animosidade dentro do ar condicionado veicular, sente primeiro uma surpresa. A surpresa vem primeiro e é seguida –“sim ele está mesmo fazendo aquilo e, não, ele não é maluco” -, seguida por um sentimento de que as coisas vão dar certo.

Ele acena a esmo: gentileza em ação
Ele acena a esmo: gentileza em ação

Arioste, o atleta gentileza, oferece pílulas da vitamina da cordialidade contra a acidez da metrópole. Lá vai ele praticando a ginástica da bem aventurança, esta que exige mais do coração do que qualquer combinação de halteres, destes muito caros nas academias dos duros como pedra. Esportista da amabilidade, dispõe de séries capazes de dissolver os reumatismos dos rancores, amenizar as hipertensões emocionais, suavizar as isquemias de testas franzidas e aquecer as expressões faciais hipotérmicas.

A viatura da Rondesp, com quatro temidos militares da tropa de choque da polícia baiana, passa e dá duas buzinadas marotas. Arioste fica o mais ereto possível, estende perpendicularmente a mão direita na testa e presta uma continência solene de quase um minuto que só um cidadão de bem poderia imitar. Os agentes da lei seguem sorrindo. A cena pode ocorrer 3 ou 4 vezes numa mesma manhã e em todas elas Arioste irá repetir o gesto de almirante da boa vizinhança. Com um aceno, um sorriso proteticamente branco, uma saudação de meu sobrinho, ele vai oxigenando espíritos do mesmo jeito que as artérias fazem com os tecidos.

Arioste Jorge Fér Farias, 66 anos, engenheiro mecânico, há 13 anos aposentado pela Petrobrás, com uma receita de bem viver. Desde jovem, achou que fazer exercício diariamente seria um dogma, “como se fosse algo acachapante, quer dizer, indiscutível”. Para ele dogma é dogma, princípio inquestionável. Tá com febre, tá gripado, tá achando que de tão fraco vai morrer hoje, então aproveite e se exercite antes de bater as botas. Assim é o pensamento dogmático do Arioste de sorriso generoso.Arioste7Arioste6Arioste5

Ao longo do trajeto, entre Jardim de Alá e Aeroclube, que ele cumpre sem pressa (o caminho vale mais que a chegada), vai recebendo um “saudade” por ali, um “bom te ver” por cá. Esteve afastado uns dias, fez falta, mas nem sempre foi assim.

Ele chegou às caminhadas na orla disposto a conduzir uma aposentadoria produtiva e saudável. Diz que encontrou no semblante das pessoas a “fisionomia compungida”, os “rostos pesarosos de quem pecou”. Logo ele, que acredita que os “beneplácitos” da caminhada devem ser feitos “com júbilo”, para que se torne uma pessoa virtuosa e feliz. As pessoas passavam e não se cumprimentavam. Logo ele que gostava de “espargir alegria”.

Passou a acenar, chamar a todos de sobrinhos, sorrir sempre. Não foi simples e redentor como um filme de Woody Allen. Andava com passinhos de marcha atlética, alongando panturrilhas, quase nas pontas dos pés para estimular o “coração periférico” que fica na batata da perna. Convenhamos que não é uma forma de locomoção das mais másculas. Só que ele encontrou três jovens fortões, altos, que passaram olhando para baixo e falando para ele só falta um sutiã para completar o personagem. Ele reagiu da forma que convém reagir quando se trata de uma provocação por três fortões altos de academia: com uma frase de Pablo Neruda. “Não há de ser nada, até as flores mais delicadas, resistem aos ventos mais agressivos”. Eles continuaram nesta zombaria de macho alfa, mas 48 horas depois retornaram. E desta vez para pedir desculpas.

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Arioste acena para a saúde. Gosta de ter uma boa alimentação, que seria uma alimentação “comezinha, simples”. (“Não é que eu goste de usar as palavras difíceis, mas é que são as palavras certeiras”). O marido de dona Valquíria há 45 anos, com quem teve duas filhas e duas netas, resolveu fazer um check-up no dia 6 de novembro de 2012. Foi ao Hospital Espanhol achando que faria um exame e sairia dali direto para um chopinho no Shopping Barra.

Já tinha feito exames anteriores, cujo teste de esforço, ele traduziu como um recado do coração: “Arioste, eu tô bem, mas você está mandando pouco sangue e oxigênio para mim. Posso não aguentar”.

Era próximo do Natal e pensava em festividades, vinho tinto, canapés. Por isso não quis logo fazer a intervenção cirúrgica. Só que naquele dia não teve mais como sair. Operou no dia 22 de novembro, pontes de mamária, safena e revascularização cardíaca.

Enquanto isso, uma pequena comoção ocorria neste ambiente em que cliques são confundidos com doações quando uma campanha foi iniciada na internet para formar uma boa reserva de sangue que garantisse segurança cirúrgica. Dos milhares prometidos, chegou às dezenas de doadores.

Nada contra o atleta gentileza, mas é que as pessoas são hábeis e rápidas a se comprometer com o virtual sem se dar conta que é preciso uma contrapartida real. Assim, por exemplo, talvez se submetendo a uma seringada.

Operou dia 22, recebeu alta 29 de novembro, três meses depois de uma cirurgia invasiva, já estava de volta ao calçadão. Retomou os exercícios em um domingo anterior ao carnaval 2013, recebido com festa, homenagens e camisas comemorativas.

Foram 13 anos para se tornar uma unanimidade no calçadão. Se antes ele tentava romper a indiferença com golpes de ternura, hoje recebe tudo de volta em acenos, abraços, afagos, apertos de mão e meneios de cabeça pelos mais reservados. Derrotou a indiferença que parecia inatingível no pódio dos corredores da orla. Você olha Arioste, o atleta gentileza, em ação e tem aquela surpresa. Imediatamente depois, você já sabe que tudo vai dar certo.

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Os Baianos – Nelson de fogo e de ar

Se com o litro de gasolina a R$3 já não está fácil para os privilegiados que andam em seus carros climatizados pelas ruas em Salvador, imagine para quem usa o combustível como forma de subsistência, justamente nesses semáforos gélidos de ingratidão.

Um isqueiro na mão, uma ideia na cabeça

Nestas encruzilhadas da vida, é possível topar com Nelson, seus pinos de fogo e um galão de 5 litros de gasolina, geralmente consumido em 3 ou 4 horas de trabalho. Os 30, 45 segundos de sinal fechado que para um motorista são eternidade significam o mini expediente dele com seus bastões flamejantes.

Diante da frieza glacial de muitos motoristas que não enxergam ali uma forma de arte, mas coisa de vagabundo, ele responde dizendo que é divorciado, tem dois filhos e precisa de qualquer jeito contribuir com a pensão das crianças e aliviar a cara fechada das ex-mulheres.

Não tem sido fácil. Calcula que ganha entre R$8 a R$10 por hora de apresentação, quando consegue reunir aquelas moedinhas muitas vezes oferecidas entre centímetros de vidro abaixado. Cédulas são tão raras quanto hidrantes com a adequada pressão de água na Av. Manoel Dias da Silva, na Pituba, onde faz ponto.

Os bastões flamejantes de Nelson
Os bastões flamejantes de Nelson

Gosta de fazer a barba para causar boa aparência e não se queimar com os clientes. “Quando eu fico mais novo, eles não me vêem como um cara de 30 anos e podem até ajudar mais”. Mesmo assim, alguns merecem até arder no inferno da avareza. “Tem criança que é empolgada e fica pedindo para dar o dinheiro, mas de nada adianta se o pai é pão duro”.

A cada apresentação rápida como relâmpago ele finge ser desajeitado e deixar cair um bastão apenas para mostrar que tem a habilidade de jogar para o alto com um pé. Enquanto os pinos riscam o ar em uma geometria faiscante, a cabeça dele voa para uma filha de 12 anos e um filho de 8 anos em Manaus.

Inalar o gás, dedos carbonizados, pretos por fuligem e pelo roçar constante com o acendedor do isqueiro, tudo isso com um comportamento agradável, respeitoso e gentil. Nelson José Ferreira dos Santos é mais ar do que fogo. Há 8 anos, desde o nascimento do segundo filho, não consegue comprar uma camisa ou uma calça próprias, literalmente está vestido com roupas e armas de doações. “Se você tiver alguma roupinha, pode me dar. Não é vergonha pedir”.nelson1

Em Feira de Santana, onde nasceu, deixou saudades que vêm e que vão. Como essa namorada, que bateu na porta de sua casa em Itapuã, ontem mesmo de manhã. Chegou assim, sem avisar mesmo, o que para Nelson, mais do que surpresa, é incômodo. Não gosta muito de trabalhar aos domingos (muito menos um domingo chuvoso como este), mas “agora tive que vir pra rua pra fazer um dinheiro que ela possa comprar a passagem de volta para Feira”. “Eu já disse a ela que espere eu ir para Feira que é melhor”.

"Como garantir a passagem da namorada?"
“Como garantir a passagem da namorada?”

Há isso e um problema adicional. Quando a mãe da filha mais velha de Nelson fica sabendo que ele está com mulher ou recebeu alguma visita, começam cobranças por dinheiro desproporcionais. “Acho que ela sente ciúmes, mas não tem como voltar. Não existe ex-mulher, é pra sempre. A gente apenas deixa de ´pegar´, mas ela continua lá, aporrinhando”. Para Nelson, esse negócio de ex-mulher é fogo.

A encruzilhada do artista de rua
A encruzilhada do artista de rua

Nelson trabalha em eventos e aceita convites para apresentações. O contato é (71)9669-4235

Os Baianos – Edvaldo “no sapatinho”

Sapato bicolor, muleta, calçamento de pedra, comprasSapatos bicolores conduzem o cansaço de um homem e sua muleta pelas pedras pisadas de preto do Pelourinho. É um suor de meio dia de sábado junto com um suspiro gigante de uma madrugada em claro. Camisa branca entreaberta, calça risca de giz com bainha impecável, um cumprimento, um sorriso. Edvaldo está voltando para casa, mas antes quer dar uma passadinha na Cantina da Lua, dar um alô ao amigo Clarindo Silva.

Já atrasou um pernoite inteiro, tudo que “a patroa” tiver que reclamar não vai ter agravante por causa de uma horinha a mais de conversa – muito menos pela parada para uma fotografia. “Vou falar com meu filho para acalmar a fera”, avisa, entregando como será o preâmbulo antes de ouviir todas as reclamações da esposa. “Ela não vai querer estragar um casamento de 40 anos em função de uma bobagenzinha”.

Esta bobagenzinha é partida de dominó. Não uma, porque não se conhece disputa de 28 pedras capaz de custar a vigília inteira. “Foi um dominozinho inocente”, minimiza seu Edvaldo. Mais do que inocente, deve ter sido um dominozinho de gala, a julgar pela indumentária do jogador. Um mais afoito poderia até mesmo julgar antecipadamente que ele teria se encantado mais por alguma seresta na região da Piedade do que pelas tramas de uma buchada ou lasquinê preso.

Ao saber que Edvaldo tem estreita ligação com o coreógrafo Carlinhos de Jesus e que tem outros 50 pares de calçados do mesmo gênero feitos sob encomenda, as suspeitas podem virar quase uma certeza. Ele garante que não, mas com certo sorriso malicioso e sem aquela indignação de quem é alvo de uma injúria. Edvaldo Carlos Vasconcelos, assessoria jurídica – é o que diz o cartão de visitas -, a seu dispor. E sai, rumo ao confronto com a patroa, na valsa, porque ainda tem muito lugar pra visitar até chegar em casa. Só no sapatinho. Imagem

Amendoim Torrado

A saga de um jovem, e seu paletó, para vender petiscos sob o calor e a indiferença do trânsito de Salvador

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Torrando no asfalto quente, Uélton garante que está satisfeito

No calor de meio dia do verão de Salvador, a visão de Uélton Júnior Silva dos Santos é como uma miragem às avessas. No irritante trânsito em brasas, ele surge entre carros com uma bandeja pesada de amendoins e uma farda que lembra estagiário de Direito. Você vê aquele rapaz de terno escuro, gravata apertando o pescoço, esfrega os olhos desacreditando e  – ao contrário de uma ilusão de ótica com um coqueiro e uma lagoa no deserto – você não quer estar no lugar dele.

Uélton, 23 anos, apelidado como Cinho, parece se sentir em um oásis particular dentro desta indumentária abafada, oferecendo petiscos a motoristas enquanto eles esperam os 80 segundos de um semáforo nervoso. “Não sinto esse calor todo. Uso o traje completo porque eu acho assim, muitas das vezes, usando bermuda, quer dizer, não me sinto bem, tenho sempre que ter apresentação diferente”, explica Uélton, ainda gaguejando por não acreditar que seu método de trabalho possa interessar a uma reportagem.

Paletó, gravata, calça de brim: impexável vendedor gentil
Paletó, gravata, calça de brim: impecável vendedor gentil

Os totens com termômetros nas proximidades da Pituba discordam entre si sobre a temperatura exata do momento. Alguns apontam 34°, outros, 36°, um mais exagerado, na Avenida Magalhães Neto, chega a 38°. O certo é que a chamada sensação térmica parece dizer: saia de casa com camiseta, short e sandálias e mesmo assim se prepare para uma possível desidratação. Só que o jovem vendedor não dá muita bola para esses imperativos da natureza quando a ideia é provocar uma boa impressão na clientela. “Desde 15 anos, trabalho de paletó e gravata. Comecei com a camisa social. Botei gravata, deu certo. Botei paletó, deu mais certo ainda”, recorda, mostrando que uma ascensão profissional também pode estar ligada ao guarda roupas.

A empolgação com o impacto de marketing provocado por traje incoerente com a meteorologia não disfarça as espessas gotas de suor que escorrem pelo rosto magro e moreno do ambulante elegante. No momento, 15h30, usa casaco preto, camisa vermelha, gravata de listras diagonais coloridas, calça azul marinho, sapato marrom. É provável que quando retornar para casa em Fazenda Coutos, a camisa interna esteja encharcada, mas a alma lavada com a venda de todo lote de 150 saquinhos de amendoim.

Ele também comercializa balas de café ou gengibre, jujubas, paçoca, pé de moça. A escolha da mercadoria para trabalhar depende do intricado cruzamento de dados sobre estação do ano, lucratividade do momento, demandas de cliente. Para vender doce, não pode sair de casa depois de 7h e alcançar os clientes chegando nas escolas. Quando o produto é amendoim, ele digitaria o #PartiuTrabalho (caso tivesse tempo e dinheiro sobrando para essas amenidades chamadas redes sociais) às 10h. A depender do movimento, esgota a carga de sua bandeja (saquinhos por R$1) às 18h, ou 20h30, se estiver ruim.

Uelton faz parte de um exército de batalhadores com números imprecisos em Salvador: os guerreiros do trabalho informal que podem chegar até a dezenas de milhares saindo a campo pela sobrevivência diária. Diz morar com irmão de 18 anos, outro de 8, e duas irmãs de 14 e outra de 5. A mãe é falecida. Mas nenhuma das informações dada por ele foi checada in loco pela reportagem. “Eu sou o cabeça da casa. Tenho que passar responsabilidade. Devemos instruir nossos filhos no caminho que têm que andar. Não podemos perder eles pra essa droga maldita que aí está, o crack. Dando boa educação, sendo discreto, sendo passível”, ensina o engravatado de esquina, mostrando que sabe como “dar um calor” nos irmãos mais novos.

Ele diz que é pai de uma menina de apenas um ano, Maria Vitória Nascimento da Silva, que mora com a mãe no distrito de Cachoeira dos Prazeres, na cidade de Jiquiriçá, a 250 quilômetros de Salvador. Mesmo com essa descrição, ele tem uma forma inusitada de se declarar “pai solteiro”. Parece que a situação ficou quente para o casal e o relacionamento, encerrado, segundo ele, por uma decisão própria, já que não gosta de brigar, xingar e isso estava ocorrendo. Ele garante que é melhor pensar bem, como se fosse uma coisa consensual, mas logo depois avisa que está aguardando uma decisão do juiz para entrar em acordo. Há algo impreciso na história, então é melhor voltar para a alta temperatura do momento.

Ação rápida: em alguns segundos Uélton precisa convencer motoristas apressados
Ação rápida: em alguns segundos Uélton precisa convencer motoristas apressados

Com um sotaque meio acariocado na voz, desses que se ouvem em locutores de FM populares e em todo mundo que pensa em atalhos para a fama, ele vai oferecendo “é um real o pacotinho” para Toyota Corolla, Honda Civic, taxista no Meriva. Andando, desviando de carro e de caras de espanto, suando. “Aqui é calor, mas não me incomodo muito vendendo de terno e gravata. Já sou acostumado, também não discrimino quem vende de bermuda ou de camiseta. Eu digo a eles não para se espelhar em mim. Mas na limpeza, ser cheiroso, cabelo cortado, pra as pessoas falarem bem da gente. Bote sua beleza sempre em prática para chegar em algum lugar”, ensina.

Só que Uélton não é um rapaz apenas de aparências. Ele carrega uma garrafa de água mineral de 1,5 litros e diz que é preciso pensar na “hidratação da pele, não esquecer da água, usar protetor solar. A indicação é beber pelo menos 2 litros de água por dia e cuidar da saúde para não pegar o tal câncer de pele”. Por trás daquele montinho de amendoins bege há um pequeno arquivo mental com todas as informações básicas de sobrevivência sob o sol a pino, disponíveis também para quem tem acesso ao google.

Um motorista baixa o vidro fumê do Hyundai Tucson e Uelton já saboreia o real da venda, ou quem sabe se 2 ou 3, a depender do apetite do cliente. O sopro suave do ar climatizado massageia seu rosto e junto com ele a pergunta, uma ducha de água fria: “Pra que lado fica a Praça Nossa Senhora da Luz?” O vendedor aponta o dedo pra esquerda, depois do semáforo: “É por ali”, mas não se dá por derrotado assim tão fácil. “Vai um amendoinzinho aê?” “Não mesmo, fera, estou com pressa”. E decola com sua barca deixando no rastro do verdadeiro motivo da pergunta, que está na placa de São José dos Campos-SP.

Nesse mundo de quente/frio das ruas, ele recorda da violência física no ano passado. Era uma manhã de sábado, por volta das 10h. Ele diz que um menino de rua estava bagunçando na farmácia da esquina. Foi proteger o segurança e terminou atacado por três rapazes, recebendo uma paulada na cabeça, por trás, quando segurava o adolescente. “Foi um ato de covardia”. Não tomou pontos, mas usou folha de aroeira seca e benzetacil, porque gosta de remédios naturais.

Tão dolorosa quanto a pancada é a violência psicológica dos clientes, algo que hoje deram para alertar como bullying. “Já me chamaram de maluco, de doido, perguntando se já usei remédio por causa dessa roupa. É meu jeito de trabalhar. Não discrimino ninguém. Mas eu digo pra eles que estão no ar condicionado, no escritório, que enquanto eles estão com gelinho no rosto estou dando meu duro. Podia dar pra coisa ruim, pra ladrão, mas estou aqui dizendo que é pra não discriminar que é pra ter amor no coração de quem está próximo”, reflete ele, enquanto bem ao lado trafega toda essa insanidade medicada que se chama a vida na cidade grande.

Quando todos os sinais pareciam fechados a um avanço, ele pensa em prosseguir. Pretende sair desse trabalho correndo atrás de carteira de trabalho, título de eleitor e CPF, para arrumar emprego fixo. Lá na frente ele entrega que acha bonito seguranças de terno e gravata em shoppings ou lojas. “Meu negócio é quem tá na estica, ou ser auxiliar de gerente”.

Uma miragem às avessas: engravatado sob o sol de 38°
Uma miragem às avessas: engravatado sob o sol de 38°

O trânsito, esse ecossistema predatório com armas sonoras em forma de buzinadas, xingamentos, freadas bruscas, ou faróis indevidamente altos, fechadas. Território em que Uélton se auto condicionou a pensar que só com terno e gravata para ficar à altura do aposentado que vem com sandália japonesa e camisa de botão aberta até embaixo do peito, ou a moça com roupa de academia e transpiração pelo rosto, ou dois surfistas que chegam em sungas defumadas de curtição. “Meu plano é ir trabalhar em São Paulo vendendo meu amendoim. É o local que dá pra ganhar dinheiro. Se eu for pra lá, vou me dar bem. Tem um exemplo de um cara que vende de paletó. Hoje ele continua de paletó, mas tem os funcionários todos de camisa de botão”.

Os três encontros com Uélton foram todos eles vespertinos no semáforo do cruzamento entre a Avenida Paulo VI e a Rua Almirante Carlos Paraguassu de Sá, com esquinas ocupadas por farmácias. Mas ele também pode ser acionado por algum cliente itinerante nas proximidades da Praça Nossa Senhora da Luz, perto das muitas escolas do bairro, em qualquer ponto com pouca concorrência e uma sinaleira que ofereça um intervalo útil para ele mostrar as qualidades do produto. “Olha o amendoim, é só um real”.

Na hora da despedida, Uélton é daquelas gentilezas que não pensam em lucro imediato. “Por favor, leve um amendoim para comprovar a qualidade”, oferece ao repórter. “Obrigado, mas acabei de almoçar agora”, recusa, apontando para um relógio que marca mais de 14h. É mentira, o repórter ali naquele momento tem fome. Rejeita a oferta, não se sabe se por uma questionável ética jornalística ou por ética ao próprio sistema digestivo. É que naquele calor até o saquinho de amendoim aparecia meio suado. Só que mesmo sem provar, garante-se, estava uma delícia.

O trânsito, esse ecossistema predatório, passa aos olhos do vendedor elegante
O trânsito, esse ecossistema predatório, passa aos olhos do vendedor elegante

Morte e vida no Campo Santo

Na história do cemitério mais antigo da Bahia, uma tradição de arte, saudade, mistérios e sobrevivência

Pablo Reis
pabloreis@gmail.com

Onde o senso comum se acostumou a enxergar dor e despedida, a descoberta de pequenas aventuras de alegria e sobrevivência. Desde a inauguração, em 1836, o Campo Santo coleciona mais de 170 anos de histórias que o tornam um cemitério incomum. Alvo de uma revolta popular que resultou em sua destruição parcial, em meados do século XIX, o equipamento sobreviveu à rejeição inicial para se tornar uma necrópole que reproduz signos da cidade dos vivos. Ali estão resumidos os conflitos de classes, dispostos nos imponentes mausoléus da entrada, em oposição às covas rasas dos fundos. Ali estão concentradas oportunidades de renda para milhares de famílias. Há também uma improvável coleção de episódios pitorescos, como um filho que sepultou a mãe em meio a piadas. O que nunca morre, entretanto, é a saudade pungente que domina as alamedas do Campo Santo, de tanta morte e vida.

Saudade e sutilezas, angústias e poesia se encontram no último adeus no Campo Santo

CAMPO DA SAUDADE
Sentimento primaz no mais antigo cemitério de Salvador, a melancolia rende histórias de dor e emoção

O espectro da saudade ronda as alamedas sem vida do Campo Santo. A despeito de qualquer prova científica, o sentimento é o fantasma real assombrando de tristeza os que convivem por ali. No dia de Finados, o espaço chamado Vela Votiva se torna uma concentração do luto. As chamas bruxuleiam nos pavios e em volta delas os apelos de pessoas que se comprimem no bastidor de melancolia. O estreito cercado vira um amontoado de parafina, o subproduto da passagem de milhares que acendem um pouco da memória de um ente querido.
“É… aqui acaba tudo”, reflete, de forma inequívoca, um homem com uniforme de empresa, aparentemente desviando alguns minutos do serviço para homenagear um parente morto. Em cada epitáfio, o resumo de uma saudade. No Dia de Finados, o fluxo de pessoas nem sempre atende a todos os jazigos. Ouve-se uma frase de alguém que parece só fazer uma visita anual ao Campo Santo, o cemitério mais antigo da Bahia, construído há 170 anos para abrigar o luto incessante da capital: “o que tá bem cuidado tem parente, o que não tá cuidado não tem parente”.
São 280 sepultamentos por mês, em média, e cada um deles tem sua própria caravana de melancolia. Entre os imponentes, que são sepultados em mausoléus concebidos como obra de arte, e os humildes, velados na própria capela e enfiados a sete palmos da superfície de um terreno concorrido, há a uniformização do lamento, independente de classes sociais. Só que nem tudo é dor e morte no Campo Santo, uma empresa que representa a sobrevivência para 52 funcionários diretos e centenas de agregados. Há também contemplação e alegria, embora a visão primordial seja de um ambiente lúgubre, temido e aterrador.
O vento quando sopra nas ruas da quadra 19 arrasta folhas e poeira, carrega besourinhos que insistem em pousar nas blusas dos desavisados. É lá que Valder Menezes descansa sua saudade matutina. A solidão de Valder multiplicada por 60, os anos de convivência com a esposa. Em frente ao carneiro gravado com o nome dela (uma gaveta em um dos muitos paredões), ele senta no banquinho branco que já deixa guardado na capela do Campo Santo. Só que é impossível descansar. Passa até duas horas lendo para ela, conversando com ela, lacrimejando com ela, um ritual obrigatório que parece minimizar o sofrimento de ser só. Tem sido assim há um ano e quatro meses, assiduidade comprovada por todos os funcionários. Qualquer um consegue reconhecer aquele senhor como o símbolo humano da resignação, embora ninguém tenha tido interesse em saber seu nome.

Aleluia
O homem do banquinho gosta da leitura silenciosa de livros, das preces sem voz, da conversa com a amada. O ordenamento litúrgico de até que a morte os separe não funcionou para ele. O falecimento da mulher provocou o distanciamento físico, mas ele recusa se afastar de um sentimento tão vívido como o amor. O nome dela é a glória: Aleluia.
Aleluia Farias Menezes, nascida a 2 de outubro de 1927, morta em 22 de agosto de 2006, conforme a lápide sempre limpa e ornamentada com flores e uma fotografia em moldura dourada, contou com a dedicação do esposo até o último suspiro. Ela, que começara a fumar desde a juventude, sem interrupções, terminou internada com complicações pulmonares, infarto e derrame, durante 120 dias. E, nestes quatro meses de agonia, o marido manteve a rotina de visitas vespertinas. Almoçava, tomava um ônibus do Rio Vermelho até o Bonfim, e ficava aguardando chegar 16h, horário que liberam a entrada de visitas no hospital da Sagrada Família. Permanecia ao lado da esposa até pouco depois das 18h, quando solicitavam sua saída.
Fez assim durante quatro meses e só percebia a pele cada dia mais escura, eliminando líquido, embora os médicos insistissem que ela estava evoluindo para a cura. Chegou a acreditar no prognóstico dos especialistas e decorou o quarto totalmente para quando ela voltasse para casa. Um dia, pouco depois das 5h, ligaram para sua casa pedindo que comparecesse ao hospital. Ele já sabia qual seria a notícia e por isso levou o dinheiro que havia reservado ao sepultamento. Injusto para Valder enterrar a esposa amada, logo ele que sempre insistiu nos perigos do cigarro, sempre foi contra, mas como percebeu que não valeria a pena continuar lutando depois de décadas, ele mesmo passou a comprar as três carteiras diárias para a mulher.
Valder se sacrificou pela esposa. Quando casaram, ele disse que ela não precisaria trabalhar, que ele proveria tudo. Hoje, está preocupado com o local onde o carneiro dela está localizado. Já comprou o jazigo perpétuo da companheira na quadra 13, por R$1100 à vista, mas só pode remover depois de 3 anos, tempo em que os ossos podem ser trasladados. “Tomara que ela não tenha mumificado para poder ser transferida para um lugar mais fechado, mais decente”.
Acordou cedo para ir à missa que freqüenta na Piedade ou na igreja de São Bento, mas não teve celebração neste dia da Conceição da Praia. Chegou antes do habitual ao Campo Santo, retirou o banquinho da sacristia da capela, onde é autorizado a guardar o assento, e foi para lá levando o livro Salvador dos contos, cantos e encantos, escrito por um velho amigo dele, Geraldo da Costa Leal.  Sonhou com Aleluia nesta noite. Ela estava em frente da casa na rua Fonte do Boi, como sempre ficava aguardando ele retornar para dar um abraço. Só que dessa vez estava chorando. “Será que ela tá precisando de mim para alguma coisa? Acho que está bem”.
Entre casais que convivem por muito tempo é comum notar que a morte de um geralmente abrevia a existência do outro. Este senhor já deixa o banco portátil branco guardado na capela para poder utiliza-lo todas as manhãs na companhia com a esposa, que jaz sob o mármore. “Peço a Deus que me dê pernas para que não possa deixar de vir aqui”.
Entre tantos jazigos, tantas orações silenciosas, uma despedida escrita em papel ofício encardido vai flanando entre os túmulos. É como se ela valesse de recado para cada um residente da cidade dos mortos. O texto sobrevoa lápides com suas letras escritas em um português apressado contrapondo a gravação no mármore, registrada para sempre com alguma tipologia imponente. “O preço da felicidade é a saudade”, assinado por Nilson, com a data 2 de novembro de 2007.
O soluço doído de um homem grisalho que passeia pelas moradas de entes queridos, dezenas deles, sempre tocando nas placas como se fizesse carícias nos nomes. Ele termina a peregrinação no túmulo da avó e ali ajoelha, encosta a testa na lápide, está prostrado pelo fardo de uma agonia reincidente. Apunhalado pelas lembranças, ele chora como se ninguém estivesse vendo, como se isolado do mundo em um quartinho onde lhe falta fôlego. É saudade que não passa e o Campo Santo cobra essa dívida em lágrimas.

CAMPO DA HISTÓRIA
Construção do Campo Santo obedeceu critérios de saúde pública e enfrentou resistência popular

Microcosmo da realidade, o Campo Santo é uma cidade mortuária que reproduz as condições de embate de classes da sociedade dos vivos. A partir da fundação, quando apenas os indigentes e escravos eram recolhidos para as covas rasas, até chegar na fase da compreensão burguesa sobre a necessidade de enterrar seus entes queridos longe das casas, o cemitério é um ponto de acolhimento sem distinção. Não chega a ser o caso de uma democracia do além, ou um comunismo para a eternidade – que iguala a todos no momento da despedida -, mas é uma síntese funérea das diferenças.
As noções de higiene e saúde pública exigiam a construção de um cemitério distante de zonas residenciais. E isso, na década de 30 do século XIX, poderia ser encontrado na estrada para o Rio Vermelho, já fora dos limites da cidade, no morro do Outeiro Grande. Na Fazenda São Gonçalo, em 1836 começa a construção do cemitério do Campo Santo, alvo de protestos da comunidade.
No início do século XIX, a pressão dos médicos sanitaristas era pela proibição de enterros em ambientes fechados. Os higienistas das décadas de 1810 e 1820 usavam a teoria em voga dos miasmas, espécies de vapores formados pela decomposição dos cadáveres, que seriam nocivos para a saúde humana. Uma lei do Governo Imperial de 12 de novembro de 1828 dotava as Câmaras Municipais de responsabilidade para legislar sobre o assunto.
A casa legislativa de Salvador decretou a postura n° 20 encerrando de uma vez por todas os sepultamentos em igrejas, conforme registrado pelo engenheiro Paulo Segundo da Costa no livro Campo Santo – resumo histórico.

Primórdios
A cidade dos mortos precede a criação humana de se reunir em aldeias. A idéia de um local para repouso eterno, segundo estudiosos, é mais antiga do que a fixação humana em outros sistemas de moradia. Uma caverna, uma cova marcada por um monte de pedras, eram os indicativos da reverência aos cadáveres.
Na cidade de Bizâncio, capital do antigo império romano do oriente, os cemitérios ficavam nas imediações das igrejas. Os rituais fúnebres eram feitos no terceiro, nono e quadragésimo dia após a morte, com carpideiras pagas. No Brasil colonial, os senhores de engenho eram sepultados no terreno de suas casas, em capelas feitas como continuação das sedes de habitação.
O primeiro cemitério a céu aberto que se tem notícia em Salvador é o do Campo da Pólvora, assinalado em plantas da fortaleza datadas de 1715. O terreno ocupava um retângulo murado no local conhecido como Pupileira. Na prática, funcionava como o espaço para a inumação dos cadáveres de escravos e indigentes. Com o início das atividades do Campo Santo, o Campo da Pólvora foi desativado e vendido em 22 de novembro de 1852 ao conselheiro Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos.

A cemiterada
Dois dias depois da inauguração do Campo Santo por uma empresa privada, em 25 de outubro de 1836, uma mobilização popular terminou provocando a demolição do muro frontal e de uma parte da capela. O que seria uma reação coletiva contra o novo cemitério terminou descrito pelo provedor da Santa Casa de Misericórdia, em 1912, comendador Teodoro Teixeira Gomes, como uma orquestração de interesses vilipendiados. No discurso, citado no livro Campo Santo – resumo histórico, ele relembra que confrarias e ordens terceiras “concitaram o povo a acometer contra o cemitério do Campo Santo; aí chegando, o galgaram e desmantelaram como se fora um bastião”.
Dias depois, a lei n°17 seria revogada e junto com ela cairia o contrato de concessão para a empresa, que seria indenizada em 12 de abril de 1839. A Santa Casa compraria, pela quantia de 10 contos de réis, o terreno totalizando 307.784 metros quadrados.
Até por volta de 1860, persistiu o costume de enterrar as pessoas em recintos fechados, em capelas, igrejas e outros ambientes privados. Os primeiros sepultamentos no Campo Santo, em 1° de maio de 1844, foram de escravos e indigentes. À época, o transporte da urna funerária já revelava uma distinção social: homens livres e nobres eram conduzidos em carros puxados por cavalos, com quatro rodas; os escravos mortos eram levados em veículos de duas rodas.
Macas feitas com panos e couro cru eram usadas para o transporte de cadáveres de pobres, com o nome de bangüês. A mudança para o Campo Santo implicava em uma distância de 4,5 quilômetros entre o Hospital da Santa Casa, na rua da Misericórdia, e as covas. Foi em 1846 que carroças começaram a ser utilizadas como forma de diminuir o esforço dos escravos.
No início da utilização de bondes elétricos no transporte urbano, em 1898, a linha de n° 7 tinha como destino o bairro da Federação. Em pouco tempo, a empresa adotou o bonde funerário, justamente para suprir a demanda dos sepultamentos. Uma oferta diversificada de veículos, conforme o relato da folclorista Hildergades Vianna, no livro A Bahia já foi assim: “havia bondes com formatos especiais, preços tabelados, conforme a classe, com o fim exclusivo de levar caixões de defunto para o cemitério. Os cheios de cortinas e sanefas, plumas e tapetes, eram para os ricos. Para os pobres havia o franguinho d´água, quase nu de adornos, com modestas sanefas, que voavam quando o veículo corria nos trilhos. O bonde-misto, conduzindo ao mesmo tempo o defunto e os acompanhantes, era ainda mais modesto. Para os remediados, contava-se com um discretamente decorado, com laços e cortinas pretas.”

Obras e invasões
Nas primeiras décadas de funcionamento, o cemitério do Campo Santo estava em obras constantes de ampliação com uma variação anual de 600 a 1300 enterros. Mas no exercício de 1855 a 1856, este número salta para 4225. E a explicação é dada na epidemia de cólera morbus que assolou Salvador em 1855. Apenas em dois anos da década entre 1852 e 1862, a balança entre despesa e receita esteve para o lado do lucro. A capela foi inaugurada em 7 de junho de 1874 e custou à Santa Casa 104:737$000 (104 contos e 737 mil réis).
As primeiras habitações construídas por funcionários que prestavam serviço ao cemitério também deram início ao processo de diminuição do terreno original da fazenda São Gonçalo, comprado integralmente pela Santa Casa de Misericórdia. Da planta inicial, o cemitério ficou apenas como uma ilha em volta de sua própria cartografia. Foi diminuído como se fora um picolé sendo mordido pelas laterais, até restar apenas o núcleo mais demorado de derreter. “A construção de muros cada vez mais altos foi a solução para impedir a perda de mais área até que não sobrasse nada”, explica o gerente do cemitério, Antônio Quadros, um senhor afável e gentil que até para falar de um tema polêmico como esse não consegue perder a paciência.
Em 2002, estimava-se que 90.000 m2 continuavam pertencendo à Santa Casa, dos mais de 300.000 m2 do terreno. Mas o levantamento topográfico mais recente, de 2007, calculou em pouco mais de 55.000 m2 utilizados pelo cemitério. Além disso, as áreas onde estão construídos dois postos de gasolina, na avenida Centenário e na Federação pertencem à instituição, mas são arrendadas.
Os mais de 200.000 m2 perdidos do Campo Santo serviram para originar os bairros do Alto das Pombas, a partir da década de 40, e do Calabar, a partir de 1970. A perda do terreno do é apontada como resultado de uma chaga social que é o déficit de habitação. Um dos últimos locais ocupados foi o Grotão da Mangueira, onde havia o projeto de construção de um cemitério vertical.
A partir da década de 70, a diminuição do espaço do Campo Santo começou a entrar em contradição com o problema da demanda de enterros. A expansão do cemitério esbarrava com a redução do espaço físico original. Em 1984, as notícias de jornal indicavam a asfixia de sepultamentos. Vinte anos depois, os enterros continuam sendo feitos, em ritmo controlado. O cemitério diminuiu de tamanho, mas supre o recebimento dos mortos, e responde pela sobrevivência de milhares de vivos.

CAMPO DA SOBREVIVÊNCIA
O comércio em torno do cemitério rende o sustento de centenas de famílias

A capela do Campo Santo: memória e lamentos na necrópole


O Campo Santo tem 52 funcionários, sendo que 35 deles são da equipe de inumação e exumação. Só que o mercado da morte garante a sobrevida de muita gente. “Não tenho dúvidas em afirmar que o cemitério é a maior empresa do Alto das Pombas. Praticamente todo o bairro sobrevive direta ou indiretamente de serviços relacionados a ele”, sustenta o presidente da Associação de Moradores, Rodrigo Alves. Desde o guardador de carro (pelo menos quatro disputam 14 vagas informais na rua lateral ao cemitério), até o gravador de lápide, muitos serviços ficam destinados a membros da comunidade. Um grupo de estudantes do ensino fundamental do bairro encarregado de fazer a pesquisa sobre a história e a cultura no cemitério e chegou à conclusão de que “a morte é vital para a maioria dos vizinhos”.
É um segmento que dificilmente enfrenta a recessão porque a demanda é incessante, a não ser que você seja um dos personagens do realismo fantástico imposto por José Saramago no livro Intermitências da Morte, onde, repentinamente, os falecimentos deixam de acontecer, estabelecendo um caos social. Apesar de a vida eterna ser o sonho da quase totalidade dos lúcidos poucos são os que refletem sobre a necessidade social da morte. A morte que libera os leitos de hospital e não prolonga a agonia da saúde pública, a morte que impõe uma salutar renovação de agentes sociais, reproduzindo o ciclo biológico que presume o amadurecimento e o fim do organismo. E, principalmente, a morte que garante a existência dos que orbitam a constelação funérea de um cemitério.
É a morte que há 35 anos norteia a vida e a obra de Ismael Santos Sales, um dos mais conhecidos comerciantes do Campo Santo. Desde criança, ele percebeu a oportunidade no momento de angústia e dor de seus clientes. Ficava rondando a porta do cemitério, fantasma pequenino em busca do lucro, com uma lata de manteiga na mão oferecendo flores de adornar jazigo, tentando cativar uma negociação em meio ao luto generalizado. Adulto, abriu uma portinha para a floricultura e, em 1988, comprou uma funerária.
Os crisântemos e as rosas são as flores mais usadas nesse ramo. A menor coroa custa R$40, a mais cara pode ser até R$200. O caixão mais barato é de R$300, o mais caro é vendido por R$8,5 mil, já com abatimento. Em Dia de Finados, a venda maior é de ramalhetes. “É um negócio que dá pra viver, dá para passar e ainda tomar uma cervejinha”, minimiza Sales, que hoje tem uma frota de três carros para entregas, e pode se dar ao luxo de deixar o filho gerenciando a empresa, enquanto ele toma a cervejinha do início de noite de sexta.
Com 68 anos de idade, José Cardoso, que tem o mesmo tempo de trabalho do amigo Ismael, não conseguiu fazer o mesmo pé-de-meia. Ele é do tempo antigo, quando Salvador tinha meia dúzia de funerárias: Ornamento, Duran, Fernandez, A Decorativa. Hoje, são mais de 90 empresas no ramo: o número de cadáveres multiplicou, mas a concorrência divide os lucros.
O velho Cardoso é da época em que se velava o morto em casa – a família alugava castiçais e decorava o recinto com tons lúgubres -, por isso seu apelido é Baú. Hoje, um óbito pode ser feito à prestação e pago em 10 vezes, o futuro defunto pode até antecipar seus gastos pós-vida fazendo uma espécie de convênio. Só que na prática Ismael, que encomendava dois caminhões de flores por semana, atualmente fica apenas com um terço de um caminhão. De qualquer forma, ele é dos que venceram na vida com a ajuda da morte.

Histórico comercial
A vocação comercial do Campo Santo é iniciada antes mesmo da construção do equipamento. A Fazenda São Gonçalo fora comprada por 6 contos de réis pela empresa Augusto Pereira de Matos & Cia, que obtivera concessão para administrar o cemitério pelo prazo de 30 anos. A Lei n° 17 da Assembléia Provincial da Bahia, datada de 2 de junho de 1835, estabelecia “privilégio exclusivo” para a empresa Cemitérios da Cidade.
Menos do que um ato de filantropia, a idéia de construir o cemitério já se revelava uma astuta visão comercial. Um dos sócios da empresa, Caetano Silvestre da Silva, acenava com possibilidades de lucros inescapáveis de acordo com a pesquisa feita pelo historiador João José Reis, no livro A Morte é uma Festa: “O dr. Caetano Silvestre da Silva, em 1836, era juiz de Direito da 1ª Vara Cível e cuidava dos bens de pessoas mortas sem testamento e/ou sem herdeiros e julgava as disputas sobre partilha de heranças. Com acesso privilegiado a dezenas de inventários, ele certamente pôde transmitir a seus sócios as informações exatas sobre o potencial lucrativo de uma empresa funerária na Salvador de 1836”.
Quinze dias depois da lei provincial, o contrato de concessão entre o Governo Provincial e a empresa estava assinado. A construção foi iniciada imediatamente como uma forma de sufocar a oposição ao privilégio de exploração exclusiva. A idéia era concluir a obra em um ano, com uma capela central, túmulos e jazigos para famílias de posses, além de covas rasas para os pobres. Como contrapartida, os empresários exigiram que o governo impusesse uma multa de 100 mil réis para quem fizesse sepultamentos em conventos, mosteiros ou confrarias. Os representantes de irmandades e paróquias foram justamente os primeiros a se pronunciarem contra a concessão. Um abaixo-assinado foi encaminhado ao presidente da província, Francisco de Sousa Paraíso, exigindo a revogação da lei 17. O principal argumento era ter vencido o prazo de um ano, já que era outubro de 1836.

Zeladores de covas
A vida por entre jazigos tem sido o sustento de gente como Hermínia, Nizete, Maria Rosa e Adilson. São zeladores de covas, guardiões de lápides que informalmente têm uma responsabilidade sobre a limpeza semanal do mármore que veda as gavetas. Referem-se a mortos e parentes como clientes, sempre munidos de alguma escova, uma garrafa plástica com água pela metade, para regar as plantas e lavar os túmulos.
Ganham R$5 a R$10 pela limpeza das gavetas e até R$20 por cada campa. Muitos já possuem os domicílios garantidos, outros ficam na entrada do cemitério abordando visitantes e oferecendo serviços. Hermínia de Jesus, avó de três crianças, sustenta praticamente a família toda porque o filho, que tem noções de eletricista, não arruma emprego em virtude de um envolvimento com drogas. Nizete Santos Silva começou nesse trabalho quando o filho tinha nove anos de idade. Agora, ele tem 28 anos e ela mantém a rotina cotidiana no Campo Santo. “É daqui que tiro meu pão de cada dia”. Adilson de Jesus, de 31 anos, é herdeiro da profissão da mãe Zilda. Ela adoeceu e não pode mais fazer o trabalho e por isso ele ficou com os clientes. Trabalha como vigia de um estabelecimento no Rio Vermelho à noite e durante o dia fica no cemitério. “Aqui é como se fosse uma empresa, com vários funcionários que formam uma família”. A administração não calcula o número exato desses ambulantes de serviços, mas estima-se que não são menos de 30 os que mantêm postos de trabalho constantes.
Em datas especiais, esse número pode até triplicar. Dia de Finados, dia de trabalho para Mário Daniel, de 14 anos, que com 1,70m e 90 quilos merece o apelido de Gordo. Ele é mais um soldado da legião de meninos zeladores de túmulos, que se armam com esponjas e garrafas PET contendo uma solução quase nula de detergente. Ele, Uéslei, Rafael, Matias, Rodrigo, Janaína, são todos conhecidos e momentaneamente rivais na disputa por clientes.
O Gordo está unido a um amigo de 17 anos, chamado Rafael Frank, que pela primeira vez trabalha no Dia de Finados no Campo Santo e por isso ainda tem certos pudores. Vale a pena acompanhar essa dupla. O Gordo já conseguiu mais de R$30 fazendo limpezas displicentes e apressadas em lápides. Rafael conseguiu cativar a primeira cliente só agora, depois das 15h, uma senhora que ele vai apoiando na mão, em uma caminhada lenta e respeitosa. Seu parceiro, ao contrário, vai andando rápido na frente, querendo chegar logo à campa onde pretendem limpar. Antes, ele tivera a ousadia de pedir uma carona no carrinho onde o coveiro transporta uma lápide e só não recebeu um cascudo como resposta por causa do espírito de introspecção da data.
Chester, este é o apelido de Rafael, ouve o lamento da madame até chegar ao local onde estão depositados ossos dos avós, do pai e da tia. Ali, eles trabalham por uns 10 minutos na lavagem, no plantio de novos ramos de flores e por fim estendem as mãos para não receberem nada. A senhora paga o serviço com um módico “Deus te guarde”. Nenhum valor tinha sido acertado previamente pelo neófito Chester e por isso o Gordo fica indignado. “Você me fez trabalhar de graça”, reclama, emburrado, andando com as coxas se espremendo em uma bermuda apertada. “Mas rapaz, Deus nos ajuda”.
Só que os benefícios divinos não são suficientes para o Gordo. “A bondade que você faz de graça não volta pra você de forma nenhuma”. E já segue adiante reclamando que Cabelinho está roubando uma cliente dele. É Dia de Finados e todos os meninos que ainda não pensam na morte têm pressa para ganhar uns trocados.

CAMPO DE CLASSES
A reprodução de diferenças sociais acompanha cadáveres até o abrigo da morte

Numa área marginal a ribanceira, com 5500m2, cerca de 1100 covas rasas atendem aos sepultamentos gratuitos do Campo Santo. As lápides funcionam como registro de um endereço para a eternidade e resumem o início e o fim de uma existência. Alguns têm as casas cobertas de heras, outros poderiam ser premiados com uma nova demão de tinta branca. Alguns partiram no ano passado, outros viveram pouco e deixaram pais saudosos de um maior convívio. Alguns foram sepultados há tão pouco tempo e já parecem tão abandonados.
As covas rasas estão nos fundos, escondidas dos olhos do visitante comum porque apresentam uma uniformidade triste, reduzem o cemitério a um mero local de aproveitamento de sete palmos de terra. Nas áreas mais visíveis, os mausoléus apresentam o contraponto estético e conceitual aos túmulos escavados no chão. “O cemitério é um duplo da cidade dos vivos, é como se fosse um prolongamento e um desdobramento. Então, vai-se encontrar no cemitério, além de toda a diferença de classes, a história das formas de viver e morrer na Bahia. O carneiro corresponde na Bahia ao aparecimento dos apartamentos e do apart hotel; o túmulo do casal corresponde ao sobrado, e o mausoléu às grandes mansões”, reflete o antropólogo Roberto Albergaria, que estende a associação até a tendência à cremação, que seria “uma onda de higienismo mais high tech”, com direito a uma desmaterialização asséptica.
“O Cemitério do Campo Santo é uma cidade em que se configura, de forma inusitada, a mesma divisão de classes que é vista numa cidade normal, com bairros de classes alta, média e baixa. Há também as periferias e as favelas, que são as covas rasas, as mesmas categorias sociais que se configuram nas cidades dos vivos”, opinou a professora de história da arte da Faculdade de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Maria Vidal Camargo, quando perguntada sobre o tema para uma reportagem em 2003.

A morte em castas
Os registros de sepultamentos no início das atividades do cemitério mostram a variedade que alguns utilizam como sinônimo de igualdade na morte. Além dos nomes e das datas de falecimento, dados como estado civil, profissão e causa da morte servem para identificar os cadáveres em cada degrau da pirâmide social. Domingos Borges de Barros, morto a 8 de maio de 1855, é identificado apenas como Visconde de Pedra Branca. Já sobre Luiza Maria da Piedade, falecida em 10 de dezembro de 1860, sabemos que era preta, morreu aos 50 anos, phtyzica, solteira e oriunda da África. Em 26 de Abril de 1876, morreu de “moléstia interna” Estephania Adine, 43 anos, branca, Paris, irmã de caridade, em contraposição a Anna Rita, ceifada pela mesma causa mortis, com 20 anos, África, preta.
Até 1850, a situação física do Campo Santo não tinha qualquer planejamento paisagístico e estava longe de ser um espaço atrativo ao descanso eterno das classes mais abastadas. Só em 1846, dez anos após a cemiterada, o muro frontal que havia sido derrubado foi reconstruído. Um relatório do mordomo do Campo Santo datado de 21 de julho de 1844 aborda as precariedades do espaço e remonta um ambiente que parecia ermo: “cumpre que se cuide em aformosear o cemitério, com plantações de arbustos e flores, e mandando-se buscar alguns túmulos de mármore para serem vendidos a quem os quiser, promovendo-se assim, sem muito custo, a adoção desses monumentos consagrados à dor e à saudade”.
Outro relatório, de 25 de julho de 1851, assinado pelo mordomo Manoel José de Magalhães e transcrito no livro Campo Santo – resumo histórico, dá uma noção de como evoluíra a ocupação na cidade dos mortos. “existem dois quadros, um mais novo que contém 458 sepulturas, das quais as mais antigas têm um ano; neste quadro é onde se enterram os cadáveres de pessoas livres; o quadro antigo contém 319 sepulturas, e nele já não existe nenhum lugar”.
Um dos trechos mais pitorescos trata da remuneração do capelão contratado para prestar serviços no cemitério. Além do salário, ele tinha que receber a alimentação do cavalo. “Existem dois empregados, sendo um o Capelão com o ordenado de 260$000 que foi contratado para ir a seus enterros e missas; casa de morar, e um feixe de capim diário para sustento do seu cavallo; o outro é o Guarda com o ordenado de 300$000. Convém que a Mesa mande fazer outro sumidouro; casa de morada para o Guarda.”

Nuances de atendimento
Há um embate nítido e muitas vezes hostil nos balcões onde o cemitério é tratado como negócio, onde um enterro tem que ser traduzido em um contrato e nas cifras que ele representa. A diferença é nítida quando se trata de parentes de uma pessoa que tem uma causa mortis natural e esperada. Estas mostram resignação, estão conformadas e quase sempre cumprem o ritual sem exaltação.
Os familiares de um morto de forma violenta ou muito jovem estão sempre alterados, nervosos, podem explodir como uma bomba-relógio sentimental. São eles que merecem uma atenção quase paternal dos funcionários, principalmente nas situações em que o desespero se confunde com agressões. “Ninguém vem para um lugar desses satisfeito ou para se divertir. Aqui é a consolidação da morte, o local onde geralmente cai a ficha para os parentes que vão pensar: botou na sepultura não tem mais jeito”, justifica o supervisor Ancelmo Menezes.
Essa erupção de decepções provoca episódios de grosseria, para dizer o mínimo. Um treinamento específico de atendimento para situações-limite começou em uma sala no andar superior da capela. A intenção é ensinar aos colaboradores como fazer um controle de raiva, minimizando o desgaste em casos onde um copo d´água é jogado no rosto de uma recepcionista. “É preciso muito cuidado até com a colocação de uma simples palavra, que pode ser interpretada por uma pessoa como um desrespeito à memória do falecido”.
“O Campo Santo é uma escola de atendimento”, avalia Ancelmo, que gosta de falar que no local onde trabalha não tem oportunidade de dizer “seja bem vindo” ou “volte sempre”.
As paredes de carneiros são tão uniformes de modo que algumas caixas mortuárias ficam muito parecidas. Tirando o nome ou uma ou outra característica fica difícil identificar logo de cara. Dá para perceber que alguns se atrapalham e podem dirigir as primeiras orações ao túmulo errado. Nesse ambiente onde não dá para aprimorar os conceitos de receptividade, há a partida motivada pelo erro.
Hélio Silva era funcionário há 25 anos, estava prestes a receber certificado e medalha de bons serviços prestados, mas terminou demitido por justa causa depois de ser flagrado em reportagem da TV Aratu comercializando arcadas dentárias. A venda era supostamente feita para estudantes de odontologia. A explicação dada pelo funcionário é de que retirava os ossos da cova coletiva, onde vão parar os restos mortais que não são reclamados por parentes no tempo hábil. A atividade criminosa foi punida até mesmo para servir de exemplo a outros funcionários. “Constantemente, somos assediados por estudantes que querem comprar ossadas, mas isso não é permitido. Depois desse episódio, se havia algum funcionário que fazia o mesmo, ele vai pensar duas vezes”, aposta Ancelmo Menezes.

CAMPO DA ARTE
Transformação de cemitério em circuito cultural ressalta a beleza das obras nos túmulos


Um pequeno templo à saudade, um mausoléu erguido em brancas lajes, com uma capela de dimensões reduzidas, chama a atenção na lateral da igreja do cemitério. É a homenagem de um marido apaixonado feita ainda no Anno de Nosso Senhor Cristo de 1885: “à memória de sua esposa Hermínia Ferreira Santos Alliom mandou seu marido construir este jazigo”. A reverência de 120 anos atrás perdura e continua encantando. O imóvel é parte do Circuito Cultural, onde um totem explica que a capela gótica é construída em mármore de Carrara, concebida pelo genovês Ângelo Ortelli, em 1884.
Antes mesmo de receber o status de uma espécie de museu a céu aberto, o cemitério tinha virado centro de estudos interdisciplinares. Alunos de arquitetura, belas artes, moda e, ultimamente, turismo visitam não para reverência a entes queridos que estejam sepultados, mas como pesquisa de campo.
Lucineide Bispo dos Santos percorre o Campo Santo como se participasse de um seminário. Com anotações em um papel, fotografias, ela vai finalizando o trabalho de conclusão de curso de Turismo na Faculdade São Salvador. Com as colegas Ana Patrícia Oliveira e Miriam Souza, resolveu fazer a monografia Campo Santo, um novo olhar sobre o turismo, abordando a prática como uma alternativa de atração de visitantes para Salvador. Descobriram que turistas de outros países estiveram recentemente no Campo Santo para apreciar as obras de arte sobre as lápides.
No Père-Lachaise, em Paris, no Lês Moreres, em Barcelona, e no Recoleta, em Buenos Aires, este filão já é explorado há anos. “Aqui nós temos um cemitério rico, de inestimável encanto. Vale a pena visitar não pelos mortos ilustres, mas pelas obras-primas”, recomenda Lucineide Bispo.
Patrícia Noelle e Alana Alves, ambas do 4º semestre de Decoração da Ufba, e Amine Barbuda, do 6º semestre de arquitetura, escolheram o local como cenário para um trabalho de faculdade. Elas fotografam formas e designs, vêem inspiração onde a maioria só percebe morbidez.

Socialização e arte
A museóloga Jane Palma, criadora e coordenadora do Circuito Cultural, precisou reorganizar as próprias convicções religiosas forjadas no candomblé para enxergar a riqueza da arte cemiterial. “Havia uma idéia errônea sobre transformar o cemitério em um museu. O circuito tem como objetivo desmistificar o espaço cemitério, tirar o peso e mostrar que não é apenas um local de adeus, dor e tristeza. Pode ser pesquisado e é de fundamental importância para a evolução urbana”.
Para conceber o circuito, Jane passou quase três anos assistindo a movimentação no cemitério. Nos velórios, percebia que muita gente se reencontrava e algumas pessoas iniciavam contatos, um ambiente de socialização.
A montagem do circuito não foi feita visando túmulos de personalidades, como existe em outros cemitérios do mundo. Pode ser, em casos como os mausoléus de Octávio Mangabeira e Lauro de Freitas, que estética e notoriedade se encontrem. Na análise da arte cemiterial, cada elemento é signo de um sentimento, cada imagem representa uma mensagem universal. Os desejos do falecido são expressos em esculturas que, perto de um jazigo, ganham uma interpretação própria. As colunas, que na arquitetura tradicional têm função de estrutura, na arte cemiterial podem representar a eternidade (se estiver em fundo vazado), a proteção para a alma (com fundo fechado), ou o pilar da família ter ruído (se ela aparecer quebrada).
A rosácea com oito pétalas dentro de um círculo é símbolo de poder gerador e representa equilíbrio cósmico. A morte pode ser protagonizada na imagem de um homem sem camisa com um martelo, ou então pode ser uma menina-moça com uma palma próxima a um jovem robusto carregando a chama da vida. Nesse caso, a família queria mostrar uma partida considerada prematura, como a de Lauro Farani de Freitas, morto em acidente de avião, aos 49 anos.
A Estátua da Fé, tombada em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ergue-se imponente em tamanho natural sobre o mausoléu da família do Barão de Cajahyba. A obra esculpida em bloco único de mármore Carrara, com 1,92m de altura, é a identificação do Campo Santo em todo o mundo. A mulher veste uma túnica longa e um manto, tem uma coroa de louros na cabeça e segura uma cruz na mão direita, enquanto a esquerda é apontada para o céu. O trabalho se destaca pela simetria e proporcionalidade, em que a toga parece cair com leveza sobre o corpo feminino.
Os símbolos são de fácil associação: a mulher representa a fé, e a cruz a fé cristã, a coroa de louros significa vitória e o manto é uma proteção. O trabalho feito pelo alemão Johann von Halbig, em 1865, foi comprado por Alexandre Gomes Ferrão d´Argollo, o Barão de Cajahyba, na ocasião da morte do primogênito José Joaquim, de 20 anos, na Baviera. Em 1973, o monumento foi doado pela família ao Governo da Bahia. O Barão de Cajahyba, considerado um senhor de engenho cruel, responsável pela perversidade e castigos aos escravos, tornara-se um mecenas da mais significativa dádiva da arte tumular do estado.

Campo da alegria
O último sepultamento é marcado para 16h30, mas todos sabem que até as 17h sempre há trabalho. Há um ambiente de alegria, até mesmo com confraternizações depois do expediente e comemorações dos aniversariantes do mês. Em pleno santuário de reverência à morte, os aniversariantes são brindados com uma festinha, com direito a refrigerante, brigadeiro e tortas. Há vida no Campo Santo.
Ancelmo Menezes, o prefeito da cidade dos pés juntos, ganhou esse título honorífico dos conterrâneos de São Sebastião do Passe. Ao contrário dos colegas que evitam falar que trabalham no cemitério, como se isso fosse denunciar alguma moléstia contagiosa, e geralmente despistam afirmando que são funcionários da Santa Casa de Misericórdia, ele assume a condição de supervisor do Campo Santo com a mesma empolgação com que alguém levanta a taça de campeão do torneio de futebol dos rodoviários. Há 13 anos, é dele a missão de intermediar interesses, fiscalizar o trabalho no campo e mais do que tudo colecionar as histórias que subvertem o sentido lúgubre do cemitério.
O cemitério é um local onde se guardam ossos e não jóias. Apesar desse princípio em que uma urna funerária pode ser qualquer coisa menos um cofre, muitos bens preciosos ou de valor meramente sentimental podem ser enterrados junto com um corpo. Basta uma escavação aos mais profundos esconderijos dos objetos para a surpresa e o encantamento. São itens que falam muito sobre a vida e a personalidade do defunto, como colher de pedreiro, capacete, trena, luvas, no caso de operários enterrados nas covas rasas. Entre os fidalgos, garrafas de whisky ou destiladas para o caso de não existirem botequins no além. De meninas a senhoras, muitas são as que ficam com bonecas. Há os fanáticos que são acompanhados pelos artistas representados em discos e CDs. Só que os artigos mais utilizados neste tipo de homenagem fúnebre, de acordo com os coveiros, são camisas e bandeiras do Bahia.
Houve o piadista que ficou famoso entre os funcionários porque chegou para o enterro da mãe já contando uma lorota do papagaio. Assinou o contrato do jazigo emendando a última do português. No meio do velório, alguns parentes choravam e ele, filho da defunta, se divertia falando anedotas politicamente incorretas. O pior é que o homem tinha mesmo vocação para humorista e muitos não conseguiam reprimir um riso, mesmo que fosse constrangido com a situação.
Só antes do funeral, ele resolveu explicar que tinha feito um acordo com a mãe em estado terminal e que ela pedira para ter alegria na cerimônia, nem que fosse com ele contando piadas. O filho cumpriu com requintes de comicidade a promessa. Até o fechamento da sepultura animou a cena, enquanto os mais tradicionais continuavam as orações e mostravam o desconforto com o inusitado festival de chistes. Outros tentavam controlar o riso, mesmo sabendo que o filho estava apenas executando o último desejo da falecida e não treinando para a olimpíada mundial de exóticos.
Um tipo de humor involuntário foi o que ocorreu no enterro de um senhor fidalgo, funeral bastante concorrido, que virou lembrança fácil e rápida na cartilha de gafes decorada por coveiros e auxiliares. No meio da despedida, um dos amigos com aparência que tinha afogado a saudade em algumas garrafas de cachaça pediu a palavra para recordar o companheirismo que vinha desde a infância em comum com o ilustre. E nas reminiscências juvenis do homem, ele desfilava memórias da época em que trocavam amabilidades do tipo “abaixa que lá vem p…”. O mal estar quase se transforma em gargalhadas dos funcionários, que precisaram disfarçar a vontade de rir. Uns e outros se esforçaram para abafar o discurso por demais afetuoso e tirar daquele ambiente o lastimoso amigo. É mais uma história concebida na morte, que enche de vida o Campo Santo.

O encantador de pombos

Alberto Nascimento está desempregado, mas junta migalhas de seu dinheiro para dar de comer aos pombos

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Essa história vai começar bem aqui, no Paço Municipal, entre pássaros e gente, com o gesto amável, sensível e mudo de alimentar pombos no meio do povo, e vai terminar lá numa viela do Cabula V, em frente a um sobrado para abrigar quase 10 famílias, com uma apresentação tardia que vai aparecer pousando do nada na história. Aquele rapaz não tem nome, apenas o título de alimentador de pombos, semeando no chão de pedras migalhas de pão e milho que fazem as aves descreverem o caminho inverso ao natural de cada vôo: elas vêm de cima para encontrar a comida no solo.O gentil Alberto se curva para alimentar os pássaros

Aquele homem de calça de brim, sapatos com solado torto de quem anda muito, camisa quadriculada suada e fisionomia de deleite não liga pra toxoplasmose, nem se o sol está quente demais para ficar 20 minutos sem sombra ou se toda vez que ele joga o pão um pirralho corre para espantar os pombos. Ele apenas cumpre o ritual que se tornou uma espécie de terapia: do Pelourinho ao Campo Grande, passando por Praça Municipal, Praça Castro Alves e Piedade, ele vai a cada dois dias prestar a solidariedade alimentícia aos símbolos alados da paz.

O gesto de candura ornitológica não é inédito e pode ser enquadrado na paisagem do cotidiano como um equivalente ao do aposentado que não se descuida de regar umas orquídeas no Dique do Tororó, ou a dona de casa que se entretém dando uma ração especial aos peixes no Campo Grande. Só que para Alberto Souza Nascimento, divorciado, pai de cinco filhos com três mulheres diferentes, 37 anos, primeiro grau incompleto, o passatempo ganha uma dimensão de promessa.

O homem por trás do anônimo alimentador de pombos está sem trabalho há quatro meses, só conseguia dinheiro para comer e pagar o aluguel por causa do seguro-desemprego e mesmo assim não abdicou de sair todo dia de seu bairro para percorrer 15 quilômetros até o Centro levando os mantimentos aos seus bichos de estimação. “É uma espécie de diversão para mim. Sinto-me tranqüilo nessa hora”.

Alimento de alma

Liberado do emprego como auxiliar de serviços gerais num condomínio de classe média, Alberto, o escapista, iniciou a peregrinação por um trabalho e descobriu o hábito de alimentar pombos em um senhor no Campo Grande. Perguntou ao mestre como ele poderia fazer o mesmo e não parou mais. Aliás, ele está prestes a interromper o seu vôo solo de reverência às aves. Sem dinheiro para sustentar as próprias necessidades, ele abdicou do passeio diurno pelo Centro Histórico porque não suportaria chegar para os pombos com as mãos literalmente abanando.

A meta mais objetiva para ele, que tem a escolaridade depenada, é conseguir uma colocação como repositor de mercadorias em estabelecimentos, ou servente, ou jardineiro, qualquer coisa que exija um mínimo de perspicácia sem a necessidade de um nível escolar apurado. Pensando que a sorte pode bater asas à sua frente a qualquer momento, Alberto já anda com todos os documentos em uma carteira surrada: carteiras de trabalho, de identidade, de reservista, título de eleitor e atestado de antecedentes criminais.

Ultimamente, vendia cosméticos para faturar o mínimo da sobrevivência. Desodorantes, cremes e óleos para massagem de marcas desconhecidas eram a matéria-prima de seu ofício itinerante de mascate. Um frasco do chamado “doutorzinho” pode ser comprado na mão dele por R$8. O cubículo onde mora há quatro meses (aluguel de R$100) é um vão que separa uma porta e uma janela a quatro passos de distância.

Para os desavisados, entrar no local exatamente no mormaço vespertino é uma experiência de impressões fortes. O calor da pequena estufa que serve de quarto, cozinha e banheiro, é sufocante. Pior é o aroma indecifrável com cheiro de suco de maracujá e carne frita no óleo e calça jeans suada de três dias e resto de água sanitária e tudo que se aglomera no minúsculo lar de um homem solitário. Um colchão fino e puído, um fogão sobre as bocas tapadas por duas frigideiras sem lavar, uma fruteira com os compartimentos de cima tomados por dois frascos de desodorante, um radinho de pilha, um bloco de anotações e um telefone celular, e os de baixo com três aipins, algumas cebolas e dois pimentões, compõem o resto da decoração.

A vida de privações é confortada por livros cujo conteúdo diz aquilo que seus anseios de integrante da Assembléia de Deus querem ler. Espírito Santo – o Deus que vive em nós, do pastor e psicólogo Caio Fábio, e Medo, do missionário RR Soares, são as únicas obras no espremido lar. Ambos os autores são ídolos para o evangélico, que chegou a fundar a própria igreja, em uma experiência que não decolou direito. Em um espaço alugado no próprio Cabula, ele deu início aos cultos da Congregação Pentecostal Roda de Fogo. A freqüência de participantes ia de 50 fiéis a apenas dois, a depender do dia.

A pretensão a pastor fora o aprimoramento de um tempo como obreiro de igreja (“minha vocação é pregar a Palavra do Senhor”), mas não foi adiante por causa de dificuldades financeiras. “Tudo obra do Inimigo. Foi minha época de problemas familiares, sem poder pagar pensão e sem poder pagar o aluguel do templo”, reconhece, falando sobre um galpão com dimensões de um cômodo.

Andar com fé

Para atrair mais crentes para sua instituição, ele confessa que sempre levava aos cultos únicos, à noite, pão com manteiga e café. Alimentava os fiéis que normalmente chegavam da estafante jornada diária de trabalho, como hoje leva a comida para as aves do Centro. Parece ter trocado o rebanho de almas, pela revoada sem altar e sem gaiola.

A devoção cristã do adestrador de pombos só não fica exatamente explicada quando se percebe que na entrada do seu quartinho, um pouco de lado, em estratégica posição de esconderijo, um pires com uma vela acesa totalmente cercada de um arroz cozido. “É apenas para proteção”, explica, um pouco desconcertado, como quem é pego em flagrante de adultério.

Ao final de uma entrevista com tantas revelações sobre aquele que era um anônimo no calçamento colonial, mais de uma hora de conversa, contato telefônico, carona e tudo, o encantador de pombos despede-se com a pergunta definitiva ao repórter: “qual é mesmo o seu nome?”. Depois da resposta, ele se dá por satisfeito, como se não tivesse contado nada sobre sua vida: “e eu sou Alberto, muito prazer”.

Rainha das quinquilharias

Ada Tem de Tudo, pseudônimo de Iraci Brandão Cajado, comercializa antiguidades e miudezas no seu museu de novidades

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Ada Tem de Tudo está a cada dia mais empreendedora no comércio de quinquilharias, objetos cujo valor muitas vezes não passa do sentimental, peças que para muitos não são mais do que entulhos da sociedade de consumo. Na rua do Gravatá, uma zona no centro de Salvador ladeada por sobrados históricos – alguns em ruínas -, onde violência e degradação convivem numa perversão urbana, ela já abriu três lojas praticamente vizinhas, onde oferece nostalgia em bugigangas.

Oficialmente, seu ramo é o de antiguidades, mas vamos direto para o popular: “Ela é a rainha dos cacarecos”, resume o enteado Elias, que trabalha como vendedor em uma das lojas e, como se vê, não é muito de meias palavras. Ada é imperadora de um território do pretérito, cujas fronteiras estão delimitadas por um gramofone não usado há quase 40 anos, ou uma cristaleira com cheiro e aparência de casa de vó. São objetos jamais vistos por muitos adolescentes da geração internet e que delimitam novas dimensões do espaço-tempo-custo: um telefone preto antigo de disco por R$400, qualquer volume da enciclopédia Delta Larousse por R$10, um LP de Julio Iglesias ou de Ray Conniff, de 1980, por R$1.

A bolsa de valores é toda determinada pela cotação da dona. Seus índices se baseiam na possibilidade de um lucro em cima da peça e na presunção de uma idade que muitas vezes o objeto não tem. Se muitas de suas peças são mais valorizadas pelo tempo de fabricação, o mesmo não se pode falar da proprietária. Ela não divulga a idade nem sob ameaça de penhora do seu museu de grandes novidades.

Iraci Brandão Cajado – ela revela o nome do qual não é muito fã, mas não o motivo do apelido Ada – começou nesse ramo há quase 25 anos, na década de 80, e ela diz de forma jocosa que era uma bebezinha. Como funcionária do Antiquário San Martin, na rua Ruy Barbosa, passou a se interessar pelo assunto. Depois de sete anos, abriu a própria loja, sem o mesmo requinte do antigo patrão, comprando qualquer coisa que lhe aparecesse como oferta de outrora. Entre os objetos dessa fase, um pinico de louça já tem 15 anos e hoje serve como lixeira. A foto de uma ânfora gigante, maior do que um adulto, provavelmente feita na China é o que ela usa para mostrar a aquisição mais exótica que já passou por ali. O objeto que proporcionava uma visão realmente suntuosa foi vendido por mais de R$ 10 mil.

Depósito de tralha

Em 17 anos de negócios, as mercadorias foram se entulhando ao ponto da matriz ficar pequena para tanta tralha. A primeira filial foi aberta três anos depois e também se tornou um depósito impraticável para o trânsito de clientes. Ada abriu neste mês a terceira loja no mesmo quarteirão com o dobro do tamanho da segunda e mesmo assim ainda ficou faltando espaço. “Tinha peça lá dentro que há 15 anos eu não via”, revela, dando a noção do grau de desarrumação. “Antes, no espaço para colocar 20 peças, tinham 500”. Depois do mutirão para a faxina, ela diz que tudo está um legítimo show room. Só que o ambiente relativamente clean que a loja virou ela não considera inteiramente favorável para o negócio. “Quem gosta dessas coisas, gosta de bagunça”.

A freguesia é formada por decoradores, colecionadores, artistas plásticos. A psicóloga Ana Luzia Outeiro chega no início da noite de sexta-feira trazendo um amigo para conhecer os itens do arquivo. “Eu sou cliente há muito tempo e faço questão de divulgar para os outros”, vibra Ana Luzia. Ultimamente, Ada tem sido visitada por uma classe que chama de novos-ricos. Eles buscam bibelôs atemporais, como uma imagem do Menino Jesus com não mais do que 15 centímetros de altura, oferecida por R$ 200. “Isso é valorizado porque deve ser de 1900”.

Ao ser perguntada sobre o artigo mais caro em seus domínios, Ada ensaia uma indignação calculada. “Caro? Não, aqui nada é caro”, responde ela, que dá o preço e coloca o valor em etiquetas adesivas. “Analiso pelo olhômetro e pela convivência. Não sou museóloga, mas tenho a faculdade da vida”.

Sobre relógios de parede, ela conhece um pouco mais. Mostra um do estilo oito e garante que todos os fazendeiros da Bahia nostálgica do século passado tinham o seu. Um relógio do tipo Capelinha, com duas cordas, custa R$450. Até esterilizador de ar faz parte do armazém de souvenirs depreciados. O observador um pouco mais atento e sem rinite alérgica para suportar poeira pode encontrar lustres de cristal e algumas jurássicas máquinas de datilografia, até pneu de trator e projetor de cinema.

Ética de antiquário

Para manter um tão eclético estoque de artigos pitorescos, Ada conta com o olhar experimentado para saber o que é vendável, assim como o jornalista precisa ver logo o que é notícia, e o político fica atento ao que é factóide para gerar votos. Ela garante que qualquer oferta que recebe faz questão de ir checar na casa do cliente (“vou em qualquer lugar na capital, interior, sítio, fazenda, village, veraneio, e só chamar que eu vou”) para verificar se é aquilo mesmo que está procurando. Mesmo quando não é, ela diz, marota, que sempre compra alguma outra coisa pra não voltar sem fazer negócio.

Só comprar em residências é uma espécie de código de ética nesse ramo, onde muita gente é capaz de oferecer produtos roubados ou de procedência duvidosa. “Pode ser um funcionário de uma casa que pega algum bem porque foi demitido, ou até um filho que é viciado em drogas”, diz Ada, para quem isso é uma imposição da profissão. “Isso se chama cautela”.

Sua outra transação predileta é a troca, um escambo de coisas velhas. “Às vezes, troco um ovo por uma boiada. E vice-versa”, diz a praticante da Lei de Gerson, para a qual o importante é que todos levem vantagem em tudo. Nem o funcionamento normal da loja está livre dessa ânsia de atender aos clientes. A abertura de segunda à sexta é das 8h às 19h, no sábado, das 8h às 14h. “Domingos e feriados, é só ligar que eu venho”, antecipa Ada.

A vida de uma família terminou girando em torno de miudezas e bugigangas. Ada tem um casal de filhos e a mais velha, Carolina, de 12 anos, com sonho de ser atriz e jornalista, coleciona moedas antigas. Sua paixão pela numismática alcançou 100 itens. Já a mãe não se sente à vontade de levar as peças que vende para decorar a casa. “Já convivo tanto diariamente, senão eu perco o fôlego”, explica. Falando em coisa antiga, vale até recuperar o batido adágio de casa de ferreiro, espeto de pau. Só que, no caso dela, aquele antigo gramofone até que ficaria bem na mesa da sala em jacarandá.