Leitura de fácil digestão

Frases espalhadas em banheiros públicos refletem imaginário coletivo

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Se vendado estivesse – sendo conduzido por alguma mão amiga naqueles passos tímidos e curtos de quem não conhece o caminho -, logo saberia se tratar de um banheiro público, pelo cheiro ácido de mijo seco, pelo som metálico da porta batendo e pelo eco que capta e reverbera até a respiração suspensa de quem contrai o abdomem para conter a sensação de facada diagonal de sentir apuros digestivos. Mas se estivesse vendado provavelmente perderia mais do que a noção de direção para alcançar o vaso sanitário. Perderia o melhor da decoração visual que faz o público de um banheiro: as frases sem preocupação com o politicamente correto, despidas de pudores e geralmente escritas depois daquele ahhhh aliviado de quem não via a hora de arriar as calças. “Comer mulher feia e cagar, todo mundo faz, mas ninguém faz questão de comentar”. É o melhor da leitura de fácil digestão.

Esta reportagem é uma espécie de ode ao aparelho excretor, uma peregrinação por lugares malcheirosos, que podem ser verdadeiros mictórios literários ou simplesmente murais improvisados para ofensas, denúncias, auto-elogios, todo o tipo de liberdade. Senta que lá vem a história. No Empório Arvoredo do Imbuí, a frase no biombo masculino é um exemplo de marketing pessoal no lugar errado: “George Ramiro é gostoso”. Na mesma porta de madeira escura e pesada, o Paulista se apresenta como um garanhão de coração volúvel. A poucos centímetros de distância, os escritos dão conta de que ele “come Silvia”, “come Silvana”, “come Patrícia”, e ali adiante, “come Maria… mas agora outro come Maria”.

Porta de banheiro é uma espécie de horário eleitoral gratuito sem censura, onde você pode emitir qualquer idéia sem depois ser cobrado por isso. Há os cúmulos de vaidade, as agressões, os lapsos de filosofia barata, os discursos tão pretensiosos quanto vazios. Ou seja, tudo que existe em uma campanha política, só que sem a necessidade de conquistar eleitores. Quem escreve no banheiro está bem pouco preocupado com a rejeição alheia. É possível encontrar alguma contribuição expressa em exagero anatômico mas que, ironicamente, prefere deixar tudo em estilo abreviado: “Meu K7 tem 30 cm”.

Há o verso clássico, hino dos decifradores do lirismo de latrina: “sentado na privada, sinto uma emoção profunda, a bosta bate na água e a água bate na bunda.” Ou a frase atribuída a algum banheiro da USP: “A diferença entre cagar e dar o cu é meramente vetorial.” A odisséia frasista ganha o rumo acadêmico do campus de Ondina da Universidade Federal da Bahia. No edifício que abriga a Biblioteca Central, cada andar tem banheiros masculinos e femininos e as portas brancas de fórmica são como lousas para o espírito lúbrico de universitários com excesso de hormônios. “Quero um broder malhadinho, gostoso, bonito, super ativo e com um pau bem grosso”… Até aí seria um pedido legítimo de pelo menos metade das solteiras do Yacht Club que ainda se animam com a perspectiva de um casamento duradouro, desde que no lugar da palavra “broder” estivesse escrito “marido”. Só que a continuação é bem mais comprometedora: “Sou bonito, gostoso, malhado (corpo bem-definido de surfista). Deixa algum recado aí véi”. O apelo de uma alma gêmea com tantos predicados motivou uma resposta escrita em hidrográfica mais escura, com o azul marinho contundente de uma réplica mordaz: “Pq não aluga um filme pornô? Não acha que ta pedindo muito não? Sonha, Alice! Ha ha ha”

Há um jogo democrático em que é liberado o espaço de acordo com a necessidade de quem escreve e não por alguma convenção de princípios e moralidade. “Deus é amor ! Ame e terás Deus no coração! O pastor só quer acorrentar sua alma! Se você ama não precisa de mais nada” pode ser encontrado ao lado de “Dou o cu, chupo pica e como também. Tel: 8872-8253. Márcio” ou “21 cm de puro delírio: ricardo.20@hotmail.com”. É nesse sentido que a porta ou a parede de um banheiro podem se tornar uma espécie de divã vertical, que aceita qualquer tipo de desabafo ou confissão.

Por isso que em uma televisão fictícia algum mais indignado com o resultado do trabalho pode escrever que para ser repórter basta ser surdo, para ser cinegrafista pode ser cego e mudo será um editor, mas se for isso tudo ao mesmo tempo aí terá condição de ser chefe. No banheiro feminino da Biblioteca Central da UFBA, um mais ousado conseguiu entrar para registrar os anseios mais primitivos como se fosse uma página de classificados na seção Encontros: “Quero foder sua boceta e seu cuzinho bem gostoso. 8175-3985, tenho 22 cm. Passe p/ uma amiga que queira”. Ainda no banheiro do Pavilhão de Aulas da Federação (PAF1), o recado de um jovem em busca de companheiro, dizendo-se estudar no Instituto de Biologia, o qual foi rapidamente rasurado e corrigido por outro como Instituto de Boiologia.

Um artigo publicado por três estudantes da Unicamp é uma das primeiras ponderações acadêmicas sobre o assunto: Análise do Discurso dos Escritos dos Banheiros da Universidade. O estudo aponta os “escritos sugestivos do banheiro” como “um porta-voz de uma coletividade nem sempre escutada e em um local de livre expressão de um grupo social muitas vezes submetido a um silêncio forçado.”

Alguns diálogos inteiros, redigidos com atraso de alguns dias, são capazes de entreter portador de prisão de ventre. É sempre uma sucessão de desencontros, como os exibidos no meloso filme A Casa do Lago, só que sem protagonistas tão charmosos como Sandra Bullock e Keanu Reeves.

Dia 14/04/2008 – estou aqui toda segunda e quarta. Passo por aqui sempre às 17h30. Se quiser, basta bater na porta 2 vezes. Sou versátil. Gustavo

Dia 28/04/2008, 17h40 – estive aqui e você não estava.

Dia 18/06/2008 – você é mentiroso!!!

Dia 19/06/2008 – Semana que vem eu volto!! Você chupou meu cacete como uma puta! Safado gostoso

Dia 23/06/2008 – E KD você agora? Tow aqui e vc não ta!! É melhor vc deixar seu cel quando estiver aqui. Eu dou toque pro seu cel aí você vem pra cá.

O artigo dos estudantes da Unicamp retrata essa característica: “O texto nas portas de banheiros possui em sua especial estrutura elementos próprios de uma configuração macroestrutural, tais como as pressuposições, as correferências, os tópicos de discurso, ligados ao marco, e os conectores e outros elementos ligados à coesão textual.” Da análise, é possível tirar pelo menos duas conclusões: a primeira é que deve ter algo de sociologicamente muito importante em deixar registros no banheiro, já que o tema é capaz de motivar uma tese tão cheia de pompa; a segunda é que uma frase dessas jamais seria capaz de substituir o entendimento rápido, direto e mordaz de algo como “puxe a descarga com força, há um longo caminho daqui até o Congresso”.

As letras mais usadas por quem precisa fazer o número dois não precisam obedecer a estética, ortografia ou bom comportamento. Um aviso se destaca como uma placa maiúscula e inútil no meio do caos de frases manuscritas em caligrafias nervosas e tintas opacas. ATENÇÃO! É TERMINANTEMENTE PROIBIDO ESCREVER NESTA PORTA! E ao lado, já com uma caneta clara, mas igualmente em caixa alta, a resposta de alguém que se sentiu aviltado no direito à livre expressão escatológica: VÁ SE FODER!

No Colégio Euricles Matos, no Rio Vermelho, como na maior parte das escolas públicas onde os diretores se queixam de apenas uma verba anual para manutenção e pintura, não apenas os banheiros são rabiscados. As paredes são completamente riscadas, os poucos móveis, os bebedouros, até o teto que de algum local onde o pé-direito possa ser alcançado. É lá no banheiro masculino que um romance é denunciado em toda a alegoria de sabores e imprevisibilidades: “Cereja x Chocolate, amor a 2ª vista”. Grafites de lirismo em que cagar se torna um processo de higiene também mental “É quase impossível tentar conter ou censurar esse tipo de expressão”, conforma-se o diretor Alexandre de Freitas Batista, que garante nunca ter sido alvo de qualquer manifestação rabiscada embaixo do espelho ou em cima da latrina por algum dos 1800 alunos. Ou, pelo menos, nunca ficou sabendo.

No colégio Manoel Devoto, no Rio Vermelho, Magda Suelen, 16 anos, aluna do 1° ano do ensino médio, já viu todo tipo de mensagem, desde religiosas a ofensivas, como “Yala é galinha”. Ela mesma só contribuiu com expressões autopromocionais, como “Magda, a boa”, “Magda gostosa”, sem jamais ter se dado conta de que esse tipo de propaganda no banheiro feminino não iria alcançar seus objetivos.

Muita gente já precisou fazer uma cara de total espanto, como o radialista Ramon Margiolle, ao tomar conhecimento que havia a informação de que Ramon pega Bárbara estampada na madeira escura do banheiro masculino. E logo Bárbara, a garota que dava poucas esperanças de relacionamento a ele. E muita gente também fez como ele e não revelou ser o próprio autor da informação falsa.

Com a palavra, a interpretação asséptica e universitária sobre um fenômeno tipicamente anárquico: “No banheiro, é onde ocorre a transgressão, a ruptura, e as pessoas se libertam. Por isso, ele se torna um veículo de expressão pessoal, mural de garantida audiência para nossas acertadas e espirituosas observações sobre nós mesmos, sobre o mundo, sobre tudo. Território sujo e livre, que parece oferecer-nos segurança, anonimato, intimidade, o banheiro é um dos locais onde mais se produzem grafitos em nossa sociedade”.

Uma urinada não oferece o mesmo privilégio de dar a devida atenção a imperativos de tamanha sutileza: “Os Bete no comando, quem ñ gostou dê o cu”. E depois o aviso como se ali fosse escrito não com um simples hidrocor, mas com o próprio sangue: apaga agora filhos da puta!!! No banheiro rosa do Colégio Manoel Devoto, no Rio Vermelho, um recado isolado na parede: Erivelton é gostoso, Ass: 102.

No banheiro azul, registrado na descarga, um “Jesus te ama”. Não estava em algum WC do instituto de Letras da Ufba, por sinal de paredes e portas virginais em termos de escritos, mas no poema Frases ao acaso, de Luciana de Rocio Mallon: “As frases de banheiro mostram a realidade/ Do nosso mundo imundo de verdade!/ As livres frases ao acaso/ Sempre têm um caso…” e é assim, juntando o acaso de quem escreve com o fortuito de quem lê, que se cria uma antologia própria, até que o próximo leitor em apuros intestinais tenha tempo suficiente para analisar toda a semiótica de quem grafita enquanto caga. Porque ninguém chega a um banheiro de olhos vendados, principalmente o curioso por conhecer toda a filosofia de (quem larga um) barro.

Páginas viradas

Amores eternos são entregues às traças nas dedicatórias que enchem folhas de rosto de livros nos sebos

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Era uma tarde de verão baiano quando Octávio experimentou um jeito próprio de exprimir um sentimento infinito de querer bem, a devoção e dependência orgânica que é estar apaixonado. Pegou um livro de Vinícius de Moraes e escreveu no topo da segunda página, com uma letra sobrescrita, a sua versão do “infinito enquanto dure”.  No volume com versos inflamados, como O Mais-que-perfeito, (“Ah, quem me dera ver-te/ Sempre a meu lado/ Sem precisar dizer-te/ Jamais: cuidado/ Ah, quem me dera ver-te”), o título definitivo: Para Viver um Grande Amor.

Na folha de rosto, com a convulsão emotiva dos febris, o amador completou o título com sua dedicatória: “… e continuar vivendo, eu só preciso de você. Não quero ficar sem o meu grande amor (você). Te amo, Octávio, 30/01/88”. Vinte anos depois, provavelmente sem o grande amor, e talvez enchendo outras páginas com o ardor do coração, o legado de Octávio repousa, sem dono, em uma das prateleiras do sebo Brandão, o maior de Salvador, no Centro Histórico da capital. Está acompanhado por milhares de outras declarações perdidas em corredores que são uma ode ao pretérito. Livros, livros à mancheia, como tijolos de um castelo em homenagem a amores que ficaram para trás.  

“Para minha amiga e mestre, que você ‘encine’ por muitos e muitos anos”

Octávio é real, não é daqueles nomes fictícios inventados por repórteres que têm um lead utópico na cabeça mas não o personagem ideal para preenchê-lo. Mais que um nome a caneta esferográfica, ele representa o anti-herói romântico contra o dragão da insensibilidade. Aquele livro de brochura manchada e carcomida significa a página virada na vida de alguém. Há um pouco de comédia, ironia e melancolia nessas demonstrações de afeto que são entregues às traças.

Décadas de espera por alguém que mereça ter nas mãos um volume impregnado de paixões: o livro Amo! (assim mesmo, quase um imperativo), coletânea de poesias assinadas por JG de Araújo Jorge. “A EP, para que você possa conhecer e deleitar-se com a poesia de Araújo Jorge, um poeta que deve ter empolgado muita gente tanto quanto empolgou essa sua Eva. Bahia, 3 de julho de 1949”.

Letras redondas, letras pontudas, frases ventias, paixões agudas. Tanta dedicação que vai parar num sebo, à disposição de qualquer um que queira pagar 15 reais. Ecologia, a Ciência da Sobrevivência, de Lawrence Pringle, editado pela Biblioteca do Exército Editora, presenteado por um avô, se destaca não apenas pela dedicatória curta: “Para minha neta ‘n°1’, também conhecida como Silien Álvares Coelho, com carinho do vô, SP, dezembro de 1977”. O inusitado são os retalhos de textos largados ao longo do volume, como se fossem pistas para encontrar um coelhinho da Páscoa. São notas de rodapé, com detalhes de etimologia ou referências. Onde está escrito a palavra apêndice, o avô grifa de caneta, faz uma seta e leva até o canto da página para explicar: “parte anexa a uma obra, acessória à obra (do latim, appendix)”. Parece um discurso de um avô e possivelmente biólogo para já deixar um legado de preservação para a neta com duas décadas de antecedência ao assunto se tornar item da cartilha do politicamente correto.

Autoria desmerecida

Um capítulo de constrangimentos à parte é oferecido pelos autógrafos de escritores que são desprezados no primeiro caminhão de mudanças. Na orelha de O Gozo das Feiticeiras, livro classificado como de bruxaria, com capítulos do tipo Amuletos de Poder, Amores Mágicos, o reconhecimento de que “Márcia Frazão se entrega inteira ao prazer de contar suas experiências compartilhadas com a avó Vitalina, que a iniciou no suave caminho de amor pela natureza.” Mesmo ela sendo bruxa não poderia prever que o bibelô para Vânia, com a frase “que bom que você existe, mil beijos”, cairia no caldeirão de rejeitados.

Há situações datadas, como “Beto, nossa URV está cotada num tempo que não existe. No presente, chama-se cortesia. Me conheça me lendo, um abraço. Carlos Alberto. “ O signatário é o mesmo C.A. Pacheco, autor do livro de poesias Como o Diabo Gosta. A data do presente é que não inspira muita certeza: 1° de abril de 1994.

O jornalista Paolo Marconi, atualmente conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios, já foi surpreendido com o descarte de uma obra sua. Autografou o livro Censura Política na Imprensa Brasileira – de 1968 a 1978 para um colega também jornalista e quatro ou cinco anos depois encontrou o material no sebo. “Não dei muita importância. Vai ver o cara estava precisando de dinheiro ou então não deu o devido valor”, minimiza Marconi, que, elegantemente, não cita o nome do presenteado e nem se ele se tornou um ex-amigo.

Para não vivenciar situações semelhantes, o jornalista Elio Gaspari justificou recusar sessões de autógrafos para os quatro volumes lançados sobre a ditadura afirmando que não gostaria ver exemplares com sua assinatura por sebos.

Escrever um livro, publicar, ser elogiado pelo trabalho. A essa sucessão de glórias poderia ser adicionada a etapa da decadência: ser jogado na vala comum dos desprezados, enterrado em vida como mais um ocupante nas prateleiras dos proscritos.  Anatomia do Ódio é o título do livro escrito pelo bacharel em Direito, deputado federal constituinte, relator do Código de Defesa do Consumidor, Joaci Góes. Uma obra descrita como “o mais completo ensaio sobre esse inquietante tema”, tratado pelo psicólogo cubano Mira y López como “o gigante rubro”. Ele autografa o livro “ao eminente amigo Ursicino Queiroz, com as homenagens, os agradecimentos e o eterno abraço de Joaci Góes, Salvador, 15 de setembro de 2002”. Sabe-se que Ursicino, ex-prefeito de Santo Antônio de Jesus, ex-deputado federal e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, faleceu no ano passado. É um caso que parece pacífico admitir que a família, sem qualquer ligação emocional com a dedicatória, resolve se desfazer do livro, como se fora uma camisa manchada, de gola esgarçada, que pode servir melhor a alguém que se contente com a segunda mão.

Cemitério de sentimentos

De alguma forma, os sebos são cemitérios de sentimentos e as páginas amareladas da quarta capa são sepulturas de amizades, romances, intimidades. Algumas amizades viram caricatura como a que foi lembrada no livro Sucessão – Charges no Jornal do Brasil, oferecido com toda a formalidade de uma caligrafia cursiva “ao amigo Rafael, com os cumprimentos de Paulo Marques”.

Uma edição de O Diabo Veste Prada, o livro escrito por Lauren Weisberg, que originou o filme, tem o agradecimento pela reconciliação familiar. “Que bom que você veio passar este natal comigo, que para mãe não tem presente melhor do que a presença de uma filha querida! Melhor ainda, as três filhas juntas! Mãe, 25 de dezembro de 2006” Ao que parece, a emoção materna não chegou a sensibilizar por muito tempo. Menos de dois anos depois estava como destaque na prateleira principal de promoções.

Tomás de Aquino Queiroz dedicou os últimos 15 anos ao trabalho diligente de recolher edições antigas, pagar por elas, vender ou alugar para leitores. No Cantinho do Sebo, na Pituba, ele abona uma espécie de locação mensal, ao custo de R$30, que dá direito a pegar quantos livros quiser.  Não estabelece qualquer tipo de valor diferencial a exemplares com dedicatórias.  Clientes buscam livros com autógrafos dos autores, principalmente Jorge Amado, só que mesmo que eles estivessem nas prateleiras Tomás garante que os preços não seriam aumentados, continuariam entre 15 e 20 reais, independentemente da escrita do ídolo. “Procuramos não nos envolver com essas coisas emocionais”, justifica Tomás de Aquino. “Tem sebo que ainda dá mais valor se tiver dedicatória, o que eu acho uma coisa meio doentia”, desanca o jornalista Paolo Marconi.

Para a psicóloga Graziela Aguiar, o descarte do objeto é resultado do desgaste de uma relação ou da necessidade de distanciamento de alguém. “O afastamento proposital faz com que os sentidos da relação se percam ou saíam da memória aparente. Mas isso não significa que entrar em contato com o objeto (no caso, o livro) não vai provocar a recordação de várias cenas associadas àquele significante”, explica ela, mostrando como a venda daquele volume presenteado especialmente no Dia dos Namorados pode ser uma auto-defesa.

Palimpsestos de afeições

Nas prateleiras do sebo mais famoso de Salvador, uns 20 mil volumes expostos são como afrodisíacos visuais para amantes de literatura e nostalgia. E chegam a ser poucos em comparação com as fotos de galpões da empresa que abrigam quase 200 mil obras, exibidas pelo dono Eurico Brandão. De cada 10 livros, pelo menos dois apresentam alguma dedicatória personalizada, embora o funcionário Batista, com quase 20 anos trabalhando naquela necrópole de emoções, confesse que os mais precavidos pedem para que os textos caligrafados sejam apagados dos livros, como se fossem palimpsestos de afeições. Eles nunca cumprem esses pedidos com uma óbvia justificativa de que quem realmente deseja isso pode arrancar a página ou apagar por si só. Há também outra razão: a depender de quem assina, um simples exemplar de guia de receitas pode valer tanto quanto uma bíblia medieval. É o caso de um lote inteiro de livros que pertenceram ao ex-governador Luiz Vianna Filho que acaba de ser vendido para um comprador tão feliz que só se deu conta que havia esquecido seis exemplares da lista, quando já estava no carro.

Só que ali nem todos ficariam contentes. Por exemplo, o que sentiria a poeta Regina Espinheira ao tomar conhecimento de que a obra Contando Estrelas – e outras poesias, dedicada “para a adorável Ingrid, com afeto cordial”, foi parar na prateleira 140/5 do sebo?

No site Mercado Livre, uma edição de poesias de um certo Jules Supervielle, intitulada Gravitations, de 1966, custa 225 reais, um valor pelo menos o dobro do que seria a coletânea em algum sebo. A inflação é determinada por oito palavras riscadas na quarta capa: “Ao Manuel, do velho Di Cavalcanti. Paris. 1966”. É creditado como um presente do famoso artista plástico ao amigo Manuel Bandeira.

O fascínio das frases soltas ao bem querer de quem folheia um livro já inspirou o curta-metragem Dedicatórias, de 1997, de Eduardo Vaisman. Depois da morte do marido, a personagem de Zezé Polessa passa a extravasar o romantismo recolhido pelas linhas caligrafadas em contracapa comprando livros usados no sebo para colecionar as dedicatórias e comparar com o número de palavras do recado de cinco palavras deixado pelo finado Octávio. “Setenta palavras, ai que lindo”, suspira ao encontrar uma declaração um pouco mais robusta.

Emoções carcomidas

Muitos sugerem que a página seja rasgada ou a mensagem apagada. Mas nada garante que a curiosidade vai ficar menos aguçada. O que teria ficado oculto pelo Liquid Paper cuidadosamente passado naquelas quatro linhas de dedicatória do livro Lendo no Escuro, de Seamus Deane, sobre um garoto que passa para a fase adulta na conturbada Irlanda dos anos 40 e 50, dentro de uma família numerosa, cheio de medos?

Raros são os livros sem as digitais de uma personalização, sem uma dedicatória, um nome de propriedade. Na seção de eróticos do sebo Brandão, jaz o romance Escritora Maldita?, que a partir do dia 7 de junho de 1989 passou a pertencer à “jovem Guel”, com um aviso cândido incompatível com as tórridas descrições das páginas seguintes: “emprestar é um prazer, ter cuidado é um dever, portanto, se você não tem, não insista”.

Uma ironia de matar é receber o livro Histórias de Morte, autografado pelo próprio autor: “à Lúcia e Sandra, com a consideração, o apreço e o abraço de Paulo de Tarso, 2/10/05”. Ou o apreço já não era mais tão vivo assim, ou o texto era mesmo de morrer.

Há incongruências de estilo, uma espécie de gafe em termos de presente. Como dar um livro de Sidney Sheldon chamado Nada Dura para Sempre a alguém que, enfim, conseguiu se empregar: “Maggy, tenho muita certeza que terá muito sucesso no novo emprego. Deus que lhe ajude, 29/10/94”. O exemplar foi parar no sebo, o melhor sinal de que a amizade ou o contrato de trabalho não foram definitivos.

O estudante Cledson A. Cruz presenteou uma professora com o livro O Falso Traidor – história real do espião dos Aliados que simula converter-se ao nazismo e carimbou a dedicatória: “Para minha amiga e mestre que voçê (sic) encine (sic) por muitos e muitos anos. I Love you teacher”. Aparentemente, uma professora de inglês, porque se fosse de português o próprio resultado do trabalho pedagógico estaria colocado em xeque depois de uma mensagem como essa.

Do mesmo jeito, o analista de sistemas, leitor compulsivo e agnóstico Marco Aurélio dos Santos registra no blog Jesus, me chicoteia (www.jesusmechicoteia.com.br) a montanha-russa de emoções que é fazer compras em sebos. “Um dia uma pessoa comprou o livro, escreveu uma dedicatória e o deu de presente para alguém que tinha algum significado. O destinatário não gostou do livro, ou o perdeu, ou lhe roubaram o volume, ou morreu e, passando de mão em mão, o livro foi parar num sebo, com sua dedicatória totalmente despida de sentido e calor”.

Nos livros, afetos parecem envelhecer ou morrer, como se seguissem um curso natural de desgaste: “Vó, espero que este livro possa lhe proporcionar momentos de reflexão, tranqüilidade e pez. Beijos da neta, afilhada, amiga e filha, Pati”, é o que está registrado na segunda página de O Sucesso é Ser Feliz, de Roberto Shinyashiki.

Solidariedade e pena por quem escreveu aquilo. O elogio, a declaração de amor ficam de domínio público, não têm dono, nem destinatário. Largar um livro de dedicatória ao destino incerto de um sebo, enfim, é uma espécie de adultério compartilhado. Que essa reportagem faça justiça a Octávio, o anti-herói que merece ser vingado em sua traição literária. E você? Sabe onde pode estar agora aquele livro que dedicou com tanto carinho a uma pessoa que ama?

*produzida em agosto de 2008