Frases espalhadas em banheiros públicos refletem imaginário coletivo
Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)
Se vendado estivesse – sendo conduzido por alguma mão amiga naqueles passos tímidos e curtos de quem não conhece o caminho -, logo saberia se tratar de um banheiro público, pelo cheiro ácido de mijo seco, pelo som metálico da porta batendo e pelo eco que capta e reverbera até a respiração suspensa de quem contrai o abdomem para conter a sensação de facada diagonal de sentir apuros digestivos. Mas se estivesse vendado provavelmente perderia mais do que a noção de direção para alcançar o vaso sanitário. Perderia o melhor da decoração visual que faz o público de um banheiro: as frases sem preocupação com o politicamente correto, despidas de pudores e geralmente escritas depois daquele ahhhh aliviado de quem não via a hora de arriar as calças. “Comer mulher feia e cagar, todo mundo faz, mas ninguém faz questão de comentar”. É o melhor da leitura de fácil digestão.
Esta reportagem é uma espécie de ode ao aparelho excretor, uma peregrinação por lugares malcheirosos, que podem ser verdadeiros mictórios literários ou simplesmente murais improvisados para ofensas, denúncias, auto-elogios, todo o tipo de liberdade. Senta que lá vem a história. No Empório Arvoredo do Imbuí, a frase no biombo masculino é um exemplo de marketing pessoal no lugar errado: “George Ramiro é gostoso”. Na mesma porta de madeira escura e pesada, o Paulista se apresenta como um garanhão de coração volúvel. A poucos centímetros de distância, os escritos dão conta de que ele “come Silvia”, “come Silvana”, “come Patrícia”, e ali adiante, “come Maria… mas agora outro come Maria”.
Porta de banheiro é uma espécie de horário eleitoral gratuito sem censura, onde você pode emitir qualquer idéia sem depois ser cobrado por isso. Há os cúmulos de vaidade, as agressões, os lapsos de filosofia barata, os discursos tão pretensiosos quanto vazios. Ou seja, tudo que existe em uma campanha política, só que sem a necessidade de conquistar eleitores. Quem escreve no banheiro está bem pouco preocupado com a rejeição alheia. É possível encontrar alguma contribuição expressa em exagero anatômico mas que, ironicamente, prefere deixar tudo em estilo abreviado: “Meu K7 tem 30 cm”.
Há o verso clássico, hino dos decifradores do lirismo de latrina: “sentado na privada, sinto uma emoção profunda, a bosta bate na água e a água bate na bunda.” Ou a frase atribuída a algum banheiro da USP: “A diferença entre cagar e dar o cu é meramente vetorial.” A odisséia frasista ganha o rumo acadêmico do campus de Ondina da Universidade Federal da Bahia. No edifício que abriga a Biblioteca Central, cada andar tem banheiros masculinos e femininos e as portas brancas de fórmica são como lousas para o espírito lúbrico de universitários com excesso de hormônios. “Quero um broder malhadinho, gostoso, bonito, super ativo e com um pau bem grosso”… Até aí seria um pedido legítimo de pelo menos metade das solteiras do Yacht Club que ainda se animam com a perspectiva de um casamento duradouro, desde que no lugar da palavra “broder” estivesse escrito “marido”. Só que a continuação é bem mais comprometedora: “Sou bonito, gostoso, malhado (corpo bem-definido de surfista). Deixa algum recado aí véi”. O apelo de uma alma gêmea com tantos predicados motivou uma resposta escrita em hidrográfica mais escura, com o azul marinho contundente de uma réplica mordaz: “Pq não aluga um filme pornô? Não acha que ta pedindo muito não? Sonha, Alice! Ha ha ha”
Há um jogo democrático em que é liberado o espaço de acordo com a necessidade de quem escreve e não por alguma convenção de princípios e moralidade. “Deus é amor ! Ame e terás Deus no coração! O pastor só quer acorrentar sua alma! Se você ama não precisa de mais nada” pode ser encontrado ao lado de “Dou o cu, chupo pica e como também. Tel: 8872-8253. Márcio” ou “21 cm de puro delírio: ricardo.20@hotmail.com”. É nesse sentido que a porta ou a parede de um banheiro podem se tornar uma espécie de divã vertical, que aceita qualquer tipo de desabafo ou confissão.
Por isso que em uma televisão fictícia algum mais indignado com o resultado do trabalho pode escrever que para ser repórter basta ser surdo, para ser cinegrafista pode ser cego e mudo será um editor, mas se for isso tudo ao mesmo tempo aí terá condição de ser chefe. No banheiro feminino da Biblioteca Central da UFBA, um mais ousado conseguiu entrar para registrar os anseios mais primitivos como se fosse uma página de classificados na seção Encontros: “Quero foder sua boceta e seu cuzinho bem gostoso. 8175-3985, tenho 22 cm. Passe p/ uma amiga que queira”. Ainda no banheiro do Pavilhão de Aulas da Federação (PAF1), o recado de um jovem em busca de companheiro, dizendo-se estudar no Instituto de Biologia, o qual foi rapidamente rasurado e corrigido por outro como Instituto de Boiologia.
Um artigo publicado por três estudantes da Unicamp é uma das primeiras ponderações acadêmicas sobre o assunto: Análise do Discurso dos Escritos dos Banheiros da Universidade. O estudo aponta os “escritos sugestivos do banheiro” como “um porta-voz de uma coletividade nem sempre escutada e em um local de livre expressão de um grupo social muitas vezes submetido a um silêncio forçado.”
Alguns diálogos inteiros, redigidos com atraso de alguns dias, são capazes de entreter portador de prisão de ventre. É sempre uma sucessão de desencontros, como os exibidos no meloso filme A Casa do Lago, só que sem protagonistas tão charmosos como Sandra Bullock e Keanu Reeves.
Dia 14/04/2008 – estou aqui toda segunda e quarta. Passo por aqui sempre às 17h30. Se quiser, basta bater na porta 2 vezes. Sou versátil. Gustavo
Dia 28/04/2008, 17h40 – estive aqui e você não estava.
Dia 18/06/2008 – você é mentiroso!!!
Dia 19/06/2008 – Semana que vem eu volto!! Você chupou meu cacete como uma puta! Safado gostoso
Dia 23/06/2008 – E KD você agora? Tow aqui e vc não ta!! É melhor vc deixar seu cel quando estiver aqui. Eu dou toque pro seu cel aí você vem pra cá.
O artigo dos estudantes da Unicamp retrata essa característica: “O texto nas portas de banheiros possui em sua especial estrutura elementos próprios de uma configuração macroestrutural, tais como as pressuposições, as correferências, os tópicos de discurso, ligados ao marco, e os conectores e outros elementos ligados à coesão textual.” Da análise, é possível tirar pelo menos duas conclusões: a primeira é que deve ter algo de sociologicamente muito importante em deixar registros no banheiro, já que o tema é capaz de motivar uma tese tão cheia de pompa; a segunda é que uma frase dessas jamais seria capaz de substituir o entendimento rápido, direto e mordaz de algo como “puxe a descarga com força, há um longo caminho daqui até o Congresso”.
As letras mais usadas por quem precisa fazer o número dois não precisam obedecer a estética, ortografia ou bom comportamento. Um aviso se destaca como uma placa maiúscula e inútil no meio do caos de frases manuscritas em caligrafias nervosas e tintas opacas. ATENÇÃO! É TERMINANTEMENTE PROIBIDO ESCREVER NESTA PORTA! E ao lado, já com uma caneta clara, mas igualmente em caixa alta, a resposta de alguém que se sentiu aviltado no direito à livre expressão escatológica: VÁ SE FODER!
No Colégio Euricles Matos, no Rio Vermelho, como na maior parte das escolas públicas onde os diretores se queixam de apenas uma verba anual para manutenção e pintura, não apenas os banheiros são rabiscados. As paredes são completamente riscadas, os poucos móveis, os bebedouros, até o teto que de algum local onde o pé-direito possa ser alcançado. É lá no banheiro masculino que um romance é denunciado em toda a alegoria de sabores e imprevisibilidades: “Cereja x Chocolate, amor a 2ª vista”. Grafites de lirismo em que cagar se torna um processo de higiene também mental “É quase impossível tentar conter ou censurar esse tipo de expressão”, conforma-se o diretor Alexandre de Freitas Batista, que garante nunca ter sido alvo de qualquer manifestação rabiscada embaixo do espelho ou em cima da latrina por algum dos 1800 alunos. Ou, pelo menos, nunca ficou sabendo.
No colégio Manoel Devoto, no Rio Vermelho, Magda Suelen, 16 anos, aluna do 1° ano do ensino médio, já viu todo tipo de mensagem, desde religiosas a ofensivas, como “Yala é galinha”. Ela mesma só contribuiu com expressões autopromocionais, como “Magda, a boa”, “Magda gostosa”, sem jamais ter se dado conta de que esse tipo de propaganda no banheiro feminino não iria alcançar seus objetivos.
Muita gente já precisou fazer uma cara de total espanto, como o radialista Ramon Margiolle, ao tomar conhecimento que havia a informação de que Ramon pega Bárbara estampada na madeira escura do banheiro masculino. E logo Bárbara, a garota que dava poucas esperanças de relacionamento a ele. E muita gente também fez como ele e não revelou ser o próprio autor da informação falsa.
Com a palavra, a interpretação asséptica e universitária sobre um fenômeno tipicamente anárquico: “No banheiro, é onde ocorre a transgressão, a ruptura, e as pessoas se libertam. Por isso, ele se torna um veículo de expressão pessoal, mural de garantida audiência para nossas acertadas e espirituosas observações sobre nós mesmos, sobre o mundo, sobre tudo. Território sujo e livre, que parece oferecer-nos segurança, anonimato, intimidade, o banheiro é um dos locais onde mais se produzem grafitos em nossa sociedade”.
Uma urinada não oferece o mesmo privilégio de dar a devida atenção a imperativos de tamanha sutileza: “Os Bete no comando, quem ñ gostou dê o cu”. E depois o aviso como se ali fosse escrito não com um simples hidrocor, mas com o próprio sangue: apaga agora filhos da puta!!! No banheiro rosa do Colégio Manoel Devoto, no Rio Vermelho, um recado isolado na parede: Erivelton é gostoso, Ass: 102.
No banheiro azul, registrado na descarga, um “Jesus te ama”. Não estava em algum WC do instituto de Letras da Ufba, por sinal de paredes e portas virginais em termos de escritos, mas no poema Frases ao acaso, de Luciana de Rocio Mallon: “As frases de banheiro mostram a realidade/ Do nosso mundo imundo de verdade!/ As livres frases ao acaso/ Sempre têm um caso…” e é assim, juntando o acaso de quem escreve com o fortuito de quem lê, que se cria uma antologia própria, até que o próximo leitor em apuros intestinais tenha tempo suficiente para analisar toda a semiótica de quem grafita enquanto caga. Porque ninguém chega a um banheiro de olhos vendados, principalmente o curioso por conhecer toda a filosofia de (quem larga um) barro.