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Já havia amanhecido, mas ainda não era sequer 8h, quando se ouviu da casa do vizinho:
– Pai, o que é tradicional?
A voz era de um menino com não mais do que 10 anos, pedindo com avidez, querendo velocidade na resposta, com a urgência de desbravar o sentido das coisas. Havia algo de magia naquele momento, transformando uma manhã de verão em Salvador num instante eterno.
Na chamada era da tecnologia da informação, com smartphones ofertando a sabedoria instantânea do mundo pelo google, com enciclopédias inteiras digitalizadas cabendo em um tablet, aquela criança buscava a segurança de uma resposta confiável. E sua pergunta, como se fora lírica metalinguagem, parecia ecoar entre passado, presente e futuro: pai, o que é tradicional?
De alguma forma, o bom pai é o dicionário do mundo para um filho. E, como os bons dicionários, ele não esgota os significados, ao contrário da pretensão da enciclopédia. Ele sugere e indica. Desafia, sem limitar. Ensina, sem tolhir a possibilidade e a riqueza do auto didatismo. O bom pai é placa de sinalização, não auto de infração. É projeto de lei, não a constituição promulgada.
Via-se o titubeio na resposta, que não surgiu imediata e nem com a firmeza em vírgulas de frase pronta. Ninguém tem vocação para oráculo antes do café da manhã. Havia ainda um receio em não ser prontamente entendido, mas desconfia-se que ali não estava em jogo a exatidão de um enunciado (não era prova final de Who Wants To Be a Millionaire). O desafio, ali, era outro: você vai estar presente quando as dúvidas surgirem?
A figura paterna, tradicionalmente, procura assegurar alimento (físico e intelectual), conforto, bem estar. Em gerações recentes, ela também tenta assegurar todos os tablets que possam responder com mais precisão e rapidez a questões semânticas ou retóricas. A qualquer hora da madrugada o google pode reagir a uma provocação, mas quem sabe a busca não seja mais por quem vai responder do que pela resposta?
A propósito do tema, o norueguês Karl Ove Knausgard presenteou o mundo com A Morte do Pai, primeiro volume de uma série autobiográfica de 3500 páginas, chamada sarcasticamente de Minha Luta (homônima à obra de Hitler). Mordaz, irônica e escrita com o primor que não te autoriza a parar de ler, a série é classificada por alguns críticos como uma narrativa proustiana. Lá, Knausgard conta que, quando criança, viu a imagem enigmática de um rosto no mar, pela televisão, e a primeira reação foi contar ao pai, alcoólatra, com quem travava uma difícil relação: “sinto um sopro de felicidade por ele se interessar de verdade”.
Perceba agora o que realmente importa na visão do filho: “A imagem que tenho do meu pai naquele entardecer de 1976 é, em outras palavras, dupla: por um lado, vejo-o como o vi daquela vez, com os olhos de um menino de oito anos: imprevisível e assustador, por outro lado o vejo como a um igual, cujo tempo de vida está sendo arrancado em grandes nacos, que carregam com eles o sentido da existência.” Bem antes de nos reconhecermos iguais a nossos pais, estamos ali implorando que eles nos expliquem o sentido do mundo. Não pensamos que eles também podem estar aguardando a chegada dessa resposta, de algum lugar, ou de alguém. Heróis existem para nos salvar.
*Artigo publicado no jornal A Tarde, em 10/01/2015