O encantador de pombos

Alberto Nascimento está desempregado, mas junta migalhas de seu dinheiro para dar de comer aos pombos

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Essa história vai começar bem aqui, no Paço Municipal, entre pássaros e gente, com o gesto amável, sensível e mudo de alimentar pombos no meio do povo, e vai terminar lá numa viela do Cabula V, em frente a um sobrado para abrigar quase 10 famílias, com uma apresentação tardia que vai aparecer pousando do nada na história. Aquele rapaz não tem nome, apenas o título de alimentador de pombos, semeando no chão de pedras migalhas de pão e milho que fazem as aves descreverem o caminho inverso ao natural de cada vôo: elas vêm de cima para encontrar a comida no solo.O gentil Alberto se curva para alimentar os pássaros

Aquele homem de calça de brim, sapatos com solado torto de quem anda muito, camisa quadriculada suada e fisionomia de deleite não liga pra toxoplasmose, nem se o sol está quente demais para ficar 20 minutos sem sombra ou se toda vez que ele joga o pão um pirralho corre para espantar os pombos. Ele apenas cumpre o ritual que se tornou uma espécie de terapia: do Pelourinho ao Campo Grande, passando por Praça Municipal, Praça Castro Alves e Piedade, ele vai a cada dois dias prestar a solidariedade alimentícia aos símbolos alados da paz.

O gesto de candura ornitológica não é inédito e pode ser enquadrado na paisagem do cotidiano como um equivalente ao do aposentado que não se descuida de regar umas orquídeas no Dique do Tororó, ou a dona de casa que se entretém dando uma ração especial aos peixes no Campo Grande. Só que para Alberto Souza Nascimento, divorciado, pai de cinco filhos com três mulheres diferentes, 37 anos, primeiro grau incompleto, o passatempo ganha uma dimensão de promessa.

O homem por trás do anônimo alimentador de pombos está sem trabalho há quatro meses, só conseguia dinheiro para comer e pagar o aluguel por causa do seguro-desemprego e mesmo assim não abdicou de sair todo dia de seu bairro para percorrer 15 quilômetros até o Centro levando os mantimentos aos seus bichos de estimação. “É uma espécie de diversão para mim. Sinto-me tranqüilo nessa hora”.

Alimento de alma

Liberado do emprego como auxiliar de serviços gerais num condomínio de classe média, Alberto, o escapista, iniciou a peregrinação por um trabalho e descobriu o hábito de alimentar pombos em um senhor no Campo Grande. Perguntou ao mestre como ele poderia fazer o mesmo e não parou mais. Aliás, ele está prestes a interromper o seu vôo solo de reverência às aves. Sem dinheiro para sustentar as próprias necessidades, ele abdicou do passeio diurno pelo Centro Histórico porque não suportaria chegar para os pombos com as mãos literalmente abanando.

A meta mais objetiva para ele, que tem a escolaridade depenada, é conseguir uma colocação como repositor de mercadorias em estabelecimentos, ou servente, ou jardineiro, qualquer coisa que exija um mínimo de perspicácia sem a necessidade de um nível escolar apurado. Pensando que a sorte pode bater asas à sua frente a qualquer momento, Alberto já anda com todos os documentos em uma carteira surrada: carteiras de trabalho, de identidade, de reservista, título de eleitor e atestado de antecedentes criminais.

Ultimamente, vendia cosméticos para faturar o mínimo da sobrevivência. Desodorantes, cremes e óleos para massagem de marcas desconhecidas eram a matéria-prima de seu ofício itinerante de mascate. Um frasco do chamado “doutorzinho” pode ser comprado na mão dele por R$8. O cubículo onde mora há quatro meses (aluguel de R$100) é um vão que separa uma porta e uma janela a quatro passos de distância.

Para os desavisados, entrar no local exatamente no mormaço vespertino é uma experiência de impressões fortes. O calor da pequena estufa que serve de quarto, cozinha e banheiro, é sufocante. Pior é o aroma indecifrável com cheiro de suco de maracujá e carne frita no óleo e calça jeans suada de três dias e resto de água sanitária e tudo que se aglomera no minúsculo lar de um homem solitário. Um colchão fino e puído, um fogão sobre as bocas tapadas por duas frigideiras sem lavar, uma fruteira com os compartimentos de cima tomados por dois frascos de desodorante, um radinho de pilha, um bloco de anotações e um telefone celular, e os de baixo com três aipins, algumas cebolas e dois pimentões, compõem o resto da decoração.

A vida de privações é confortada por livros cujo conteúdo diz aquilo que seus anseios de integrante da Assembléia de Deus querem ler. Espírito Santo – o Deus que vive em nós, do pastor e psicólogo Caio Fábio, e Medo, do missionário RR Soares, são as únicas obras no espremido lar. Ambos os autores são ídolos para o evangélico, que chegou a fundar a própria igreja, em uma experiência que não decolou direito. Em um espaço alugado no próprio Cabula, ele deu início aos cultos da Congregação Pentecostal Roda de Fogo. A freqüência de participantes ia de 50 fiéis a apenas dois, a depender do dia.

A pretensão a pastor fora o aprimoramento de um tempo como obreiro de igreja (“minha vocação é pregar a Palavra do Senhor”), mas não foi adiante por causa de dificuldades financeiras. “Tudo obra do Inimigo. Foi minha época de problemas familiares, sem poder pagar pensão e sem poder pagar o aluguel do templo”, reconhece, falando sobre um galpão com dimensões de um cômodo.

Andar com fé

Para atrair mais crentes para sua instituição, ele confessa que sempre levava aos cultos únicos, à noite, pão com manteiga e café. Alimentava os fiéis que normalmente chegavam da estafante jornada diária de trabalho, como hoje leva a comida para as aves do Centro. Parece ter trocado o rebanho de almas, pela revoada sem altar e sem gaiola.

A devoção cristã do adestrador de pombos só não fica exatamente explicada quando se percebe que na entrada do seu quartinho, um pouco de lado, em estratégica posição de esconderijo, um pires com uma vela acesa totalmente cercada de um arroz cozido. “É apenas para proteção”, explica, um pouco desconcertado, como quem é pego em flagrante de adultério.

Ao final de uma entrevista com tantas revelações sobre aquele que era um anônimo no calçamento colonial, mais de uma hora de conversa, contato telefônico, carona e tudo, o encantador de pombos despede-se com a pergunta definitiva ao repórter: “qual é mesmo o seu nome?”. Depois da resposta, ele se dá por satisfeito, como se não tivesse contado nada sobre sua vida: “e eu sou Alberto, muito prazer”.