Lama e sucesso

Fama e Sucesso: Pedra foi morto por um michê em hotel de alta rotatividade no Lg Dois de Julho

Este senhor aí de olhos rutilantes e charme incandescente se chamava Jorge Pedra e desfilava, na TV Salvador, um jeito “gracinha” de fazer um programa de televisão inspirado em Amaury Jr, mas também em Jim Carey, tamanha a quantidade de caras e bocas. Fama e Sucesso despertava atenção por um momento sublime em que ele se despedia das entrevistadas desejando uma “excelente qualidade de vida”. Só que Jorge Pedra era muito mais do que um mero questionador de celebridades. Numa rápida narração, ex-muita coisa, como parceiro de dança de Cláudia Raia, empresário de pugilista, jurado de Chacrinha, empresário da noite, cantor confundido com Roberto Carlos, galã da Rede Globo, destruidor de corações e datilógrafo. E isto é apenas uma terça da parte do que ele já fez e conta.

A reportagem abaixo foi produzida em junho de 2006. Em 1º de novembro de 2009, Dia de Finados, Pedra foi encontrado morto a facadas em um hotel vagabundo no Largo Dois de Julho. Onze meses depois, um garoto de programa foi preso e confessou ter matado o apresentador em uma noitada de sexo, cocaína e calote.

 

Vivendo em sociedade

A saga de champanhe francês e delírios internacionais de Jorge Pedra, o colunista social eletrônico que só tem olhos e microfone para quem tem fama e sucesso

Jorge Pedra anda ultimamente muito emocionado com Bell Marques. Ao falar do cantor, este improvável apresentador de televisão escolhe as palavras mais carinhosas, os adjetivos mais magnânimos, os elogios mais eloqüentes que consegue lembrar do seu vocabulário, onde as palavras chique e luxo são tão usadas quanto as pausas para respiração. Quando menciona o líder da banda Chiclete com Banana (“o maior sucesso musical da Bahia há mais de 20 anos”), seu rosto se amolece em ternura, sua voz fica adocicada, o peito infla, a expressão se derrete, o canto dos olhos ganha viço. E não são raros os momentos em que isso acontece.

Bell Marques tem sido o assunto preferido de Pedra, desde que o vocalista da bandana (tradicionalmente avesso a aparições televisivas) deu uma entrevista ao programa que ele comanda há um ano e meio, chamado Fama e Sucesso. A adoração instantânea é tão explícita que ele não se contém em fazer uma confidência logo de início de conversa. “Recebi uma ligação de Bell agora. Ele disse que tinha me mandado uma lembrancinha. Era uma garrafa do melhor vinho Chicleteiro”, confessa, sobre a marca da bebida que o músico resolveu adotar como mais novo negócio. “Não custa menos de R$500”, antecipa Pedra, antes mesmo da pergunta, logo ele que se diz totalmente abstêmio, mas inteiramente extasiado com o mimo etílico.

Jorge Pedra é assim mesmo. Tem seus momentos de empolgação exacerbada. Já sentiu a mesma coisa com a própria mulher de Bell, Aninha Marques (“um amor de pessoa”), a empresária Regina Weckerle (“uma mulher guerreira”), a apresentadora Kátia Guzzo (“minha irmã, a maior musa da tevê na Bahia”). Ele sempre está, digamos, sensibilizado com o espírito empreendedor de algum empresário, ou a cordialidade de um artista, até mesmo a firmeza de um político. Jorge Pedra é assim mesmo. “Meu lado é o da sociedade. É aquela fantasia que mostro. Eu vendo emoções”, suspira.

Glamour comercial

Talvez tenha se chegado até aqui com duas grandes dúvidas: afinal, quem é este Jorge Pedra, além de um fã de Chiclete com Banana, e, principalmente, como um rosto pode se amolecer em ternura? Realmente, ele não tem nenhuma comunidade no orkut, mas a primeira pergunta pode ser respondida sintonizando na TV Salvador, às 23h30 de uma quarta-feira, ou às 18h15 de um domingo. É a melhor maneira de descobrir como seria essa tal comercialização do glamour proposta pelo dândi, que usa uma argola dourada em cada lóbulo, alguns anéis reluzentes, colares e um relógio brilhante.

O Fama e Sucesso, que dá nome à atração, parece ser o binômio de metas do criador, mas por enquanto serve apenas para caracterizar o tipo de público a que Pedra dedica toda a sua atenção. “Inicialmente, seria apenas fama. Mas vi que isso não se aplica a empresários, advogados e médicos, que podem não ser famosos, mas são muito bem sucedidos”, esclarece, bebericando uma taça de Coca-Cola, no lobby do Hotel da Bahia. Desbravando festas, residências e escritórios com câmera e microfone, o programa não está muito distante do espírito do colunismo eletrônico praticado em emissoras do sudeste nas altas rodas do Rio e de São Paulo. Mas a versão baiana terminou ganhando o tempero do inusitado.

Quem não se interessa muito pela vida dos ricos e famosos, pode se deleitar com a performance do apresentador para ser testemunha de alguma curiosidade. Ele mesmo não envergonha de suas desventuras mais leves. “Veja bem, eu usava um aparelho nos dentes e não conseguia falar a palavra ´programa´, só saía progama”, reconhece. “Recebi até sugestão de procurar uma fonoaudióloga, mas as pessoas não sabiam que era por causa do aparelho”, corrige ele, para dali a alguns minutos escorregar, involuntariamente, na mesma palavra, mesmo com os dentes livres de qualquer entrave de dicção.

Pedra também tem um jeito muito peculiar de se despedir de seus entrevistados, aqueles que muitas vezes andam a bordo de carro importado, não assistem mais tv aberta, estão com o plano de saúde em dia e colocam os filhos em dois intercâmbios anuais. Ele deseja, além do tradicional “saúde e felicidade”, muita qualidade de vida. Qualidade de vida? Parece até algum tipo de saudação de inspetores de desenvolvimento humano da ONU, mas é apenas uma forma graciosa que encontrou de manter os votos de prosperidade. “É uma coisa dita assim, de coração”, jura.

Currículo de ribalta

E ninguém pense que esse neologista dos talk-shows é um neófito da ribalta, desses que tomam um microfone hoje e amanhã já estão se achando o último cubo de gelo do whisky 12 anos. Contar a trajetória dele é coisa para quem tem fôlego de ler de uma só vez um parágrafo inteiro melhor escrito pelo português José Saramago com seu estilo sem pausas, ou pelo grego Esopo, e seu estilo fabulista. Carioca, nascido na zona norte, Jorge Luís Lopes Pedra começou a fazer pontas na Globo aos 13 anos e desde então pode ser chamado de ator, bailarino (clássico, jazz, sapateado, ex-parceiro de Cláudia Raia em Nova Iorque), cantor (confundido como filho de Roberto Carlos), músico, empresário da noite (diretor das casas Hipopotamus e Scala), promoter (organizador de uma festa para Pelé na Copa da Itália, em 90), escritor de coluna social (afilhado de Zózimo Barroso do Amaral), empresário esportivo (do ex-zagueiro do Flamengo, Rogério, e do ex-pugilista Reginaldo Hollyfield), jurado de Chacrinha , ecumênico (“sou católico por ser brasileiro, espírita, devoto de São Lázaro e São Roque, se me chamarem pra um candomblé, eu vou, mas sou mesmo messiânico que reza em japonês”), poliglota (“falo italiano, francês, inglês e espanhol”) e datilógrafo formado. Pra quem acha que é muita coisa pra apenas 48 anos de vida, a correção: “e isso não é nem a terça parte do que já fiz”. Aliás, Pedra, 48 anos de idade? “É que eu me trato, amigo”.

Poliglota, bailarino em Nova Iorque, cantor, empresário de Hollyfield, ecumênico, jurado de Chacrinha: simplesmente Pedra.

Em tanto tempo de atividade nos mais altos escalões do Brasil e do mundo (“um sheik árabe já me deu o presente de conhecer o Cairo e as pirâmides egípcias em 1992”), Pedra poderia até se sentir deslocado em região por vezes apontada como tão provinciana como a Bahia. “Pelo contrário, nunca conquistei tanta coisa, em tão pouco tempo, como aqui”, garante ele, que se intitula “baianoca”, desde 2000. Mesmo com essa espécie de gratidão de resultados, ele não se furta a uma crítica sobre a elite de ocasião, que diferencia da aristocracia de berço. “Acho que metade não é aquilo que aparenta ser”, desmascara, usando o índice de comparação entre a imagem e o saldo da conta bancária.

Até desconfiando da, por assim dizer, capacidade empreendedora de alguns membros da fina flor baiana, Jorge Pedra não sai do meio. Na verdade, ele diz que só tem acesso à escumalha se for para fazer uma boa ação. Garante que mantém uma escola de boxe e jiu jitsu no bairro do Tororó, embora, no momento, não lembre quantos garotos sejam atendidos. “Outro dia, fui dar carona a um funcionário meu, ali pela zona norte de Salvador, acho que Paripe, ou Periperi, e vi como sou reconhecido pelas pessoas humildes”, vibra. “Aliás, nem sei se ali é zona norte mesmo, deve ser zona oeste, não é?”, questiona, em busca de uma localização.

Tire os zóio

Pedra diz que tem uns débitos com banco (“é até bom porque estimula a trabalhar mais”), mas normalmente é visto como milionário. “Já sofri tentativa de seqüestro na Estrada do Coco. Uma sensação horrorosa”, indigna-se, vítima da escalada da violência. Locomove-se em um dos dois carros importados que possui, que também não são nenhum exemplo de discrição. Inteiramente plotados com as palavras “Fama e Sucesso by Jorge Pedra”, são verdadeiros chiquemóveis, veículos do glamour ambulante que ele quer transmitir via satélite. Só olhares mais atentos percebem na traseira adesivos que certamente nenhum de seus entrevistados colocaria nem no carrinho de mão do caseiro: “tire os zóio, ladrão”.

Por último, do alto de seu 1,65m de elegância auto definida como “pret-à-porter e meio cafona” (“já acordo de blazer e gravata”), Pedra confidencia o assédio de que é vítima, coisa digna de protagonista da novela das oito. “Percebo que tem muita gente que me olha de forma muito sexy nas festas”, despista. Mais detalhes, Pedra, mais detalhes, intrigas amorosas e escândalos sexuais sempre vendem jornal. “Elas me seguram com vontade pelo braço, me olham dentro dos olhos. Encontro muitos bilhetes com telefones dentro do meu carro”. E são senhoras casadas, Pedra? “Meu amigo, não diria que são casadas, são apenas amorosamente carentes”, minimiza, enigmático.

Ah, sim. Bell Marques já avisou. Não fará mais nenhum evento na Bahia, no Brasil, ou no mundo, sem pedir a presença do Fama e Sucesso. É isso o que Jorge Pedra mais usa como trunfo ultimamente. E se quiser saber como é um rosto amolecendo de ternura, basta vê-lo repetindo essa notícia.

Vida de cais

Porto, ancoradouro de todas as metáforas.

Porto, que guarda em si os signos da melancolia pela despedida, a exaltação ao eterno regresso. Algumas reportagens podem tocar para sempre quem escreve, como um prêmio e também uma cicatriz de nostalgia.

“Quer saber como confirmar se é estivador mesmo? Basta procurar o apelido. Se não tiver, pode excluir da escala porque é intruso. Podem ser os mais simples e óbvios (como Hélio Grande), outros reverentes (Urso), ou até depreciativos (Neguinho Furado). Outra regra: não fale em UMA mulher. Estivador tem sempre mais de uma, mesmo que para isso use eufemismos os mais variados: namorada, amiga, amante ou até camaradinha. Os filhos são contados de forma diferente: divididos entre os “de casa” e os “de fora”.

É lindo quando o sol dorme bem em frente ao Porto de Salvador, o porto do Brasil. Vai puxando suavemente o cobertor da claridade e ensombrecendo o atracadouro. Deixa os guindastes dourados desenhando formas alongadas no chão que tem uma feição secular. São imemoriais e perenes as pedras que calçam a via e o pôr-do-sol que testemunha a vida do cais.

Vida de cais fala de saudade… e de um lugar que é a antecipação da solidão.

A nostalgia dos trabalhadores
Profissão: estivador
A memória oral do porto
O moderno atracadouro