Senhor Conspiração

Deitado na rede, Marinheiro Milton decifra mistérios da espionagem internacional

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

“Mestre, esse livro aqui está bombardeado com raios de isótopos. Toda a literatura médica, científica e clássica é bombardeada com raios de isótopos em suas páginas para ser localizada em qualquer parte do planeta.” Deitado em sua rede, com um aparentemente trivial exemplar – desses que podem ser encontrados em qualquer sebo -, o marinheiro Milton relata um dos fundamentos tecnológicos em favor da espionagem internacional e discorre sobre o tema que mais aprecia e domina: conspiração. A vela é içada para mais uma viagem em direção à ilha de exótico saber do senhor de 72 anos e uma vitalidade que parece ter ancorado em alguma fase da adolescência. O vento que sopra é a voz rouca e rascante – sempre num timbre acima do usual – empenhada em desmascarar arapongas e estratégias.

Marinheiro Milton vai falar e, uma vez que você ouça suas descobertas, será impossível olhar com parcimônia até mesmo para uma inofensiva caneta esferográfica. “Quem inventou o grampo foi o russo, quem aperfeiçoou foi o alemão. Nos anos 30, a Alemanha mantinha todos os telefones da Europa grampeados. Nos anos 40, até o telefone de Getúlio (Vargas) já tinha escuta, e o de João Goulart, nos anos 60”, acusa. É certo que não basta ter ouvidos atentos para captar as histórias que mesclam a ficção de Júlio Verne e o cientificismo de Carl Sagan, a literatice de John Grisham e o New Journalism de Truman Capote. É preciso mente aberta para velejar no oceano de imprevisibilidades por onde singra a nau do mestre Milton.

Para dar entrevista, ele impôs duas condições. A primeira, de nobilíssimo altruísmo: “Desde que a reportagem não seja para exaltar minha pessoa, mas sim a própria imprensa, que continua me educando e reeducando”. A segunda, de ardilosa prevenção: “Tem que ser em uma quarta-feira ou no dia 5 de cada mês, pois são os dias de reunião da cúpula da CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA)”, avisou, acreditando ser este o melhor método para a nossa conversar passar despercebida.

Ritual investigativo

Manhã de quarta-feira e Milton de Andrade Moraes já iniciou o ritual cotidiano de acordar junto com os primeiros raios de sol, deitar na rede da varanda da casa simples no Cabula (uma espécie de sítio com residências de outros parentes) e ler vorazmente as páginas dos três jornais de Salvador. O trabalho solitário do ex-praça da Marinha é procurar os sinais ocultos nas entrelinhas, os vestígios nas notícias, as ligações subterrâneas entre fatos aparentemente distantes, como a inauguração de uma escola em Sri-Lanka e o lançamento de um satélite no Cabo Canaveral.

“Bin Laden trabalha para a CIA desde os 19 anos, vocês (imprensa) que disseram. Um artigo de fundo da revista Seleções afirma que a Al-Qaeda é uma organização patrocinada pela CIA. O Pentágono é a pátria das corporações, a catedral das empresas. O diretor da CIA é o homem mais poderoso do mundo”, torpedeia, ligando um assunto a outro e impedindo o interlocutor de acompanhar o raciocínio. Sem sair do conforto de sua rede, Milton, o marinheiro, revela, investiga e esquadrinha todas as grandes tramóias do planeta.

“Mestre, na hora que você toma remédio genérico ou transgênico, evidentemente tem um avião espião sobrevoando ou até um satélite para registrar. As notas de dólar e as revistas são criptografadas. Quando você anda na rua com este material, as torres e plataformas estão te seguindo, estamos sendo fotografados e escutados minuciosamente. Com o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), o Brasil já está dominando essa tecnologia, pois o computador central está em Brasília, decodificando tudo”, adverte, provocando na audiência a sensação de estar ouvindo uma revisão histórica do clássico “1984”, de George Orwell.

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Lavagem cerebral

Torneiro fresador formado pela escola de artífices da Marinha, Milton entrou para as Forças Armadas em 1946, levando uma carta de recomendação do major Cosme de Farias. A vida náutica durou dez anos até a aposentadoria. A bordo de navios, o marujo vivenciou histórias que poderiam render uma biografia aventureira. Fugir da polícia de Havana depois de um tripulante dar um calote em uma prostituta cubana foi uma delas. Mas a vocação para o realismo fantástico sublima suas próprias experiências. “O serviço mais inteligente é o de contra-informações, que usa muita psiquiatria para fazer lavagem cerebral. A antiga KGB (agência de espionagem russa) era useira e vezeira nisso. Às vezes eu penso que sofri uma lavagem cerebral, porque tomei 10 centímetros de insulina. Luís Carlos Prestes dizia que insulina também fazia o preso político falar. Tem insulina na cebola, cebolinha, mas tem mais no alho”, informa.

Filho de bicheiro e lavadeira, Milton saiu da pobreza absoluta e, seguindo o exemplo do pai (que só tinha dinheiro para comprar jornal aos sábados), criou um desejo incontrolável por informação. Além dos jornais, assina quatro revistas militares do Exército e da Marinha e tem uma biblioteca de 500 volumes que poderia virar referência curricular na formação do agente 007. Livros como Guerras secretas da CIA (do jornalista que investigou o escândalo de Watergate, Bob Woodward) e O FBI Por Dentro estão repletos de anotações de rodapé e até pregadores de roupa para indicar as páginas mais interessantes.

Há 42 anos, casou com Raquel, com quem teve cinco filhos e divide todas as descobertas. “Tudo que eu sei, ela sabe. Se algum araponga me pegar, vai ter que pegar ela também”, condiciona. Após uma consulta médica que seria uma prosaica revisão dentária, há uns três anos, dona Raquel ficou sabendo de uma novidade que poderia virar argumento para algum episódio da extinta série O Homem de Seis Milhões de Dólares. “Eu tenho um sensor de rastreamento em meu pré-molar do maxilar superior. Quem botou foi o capitão-tenente Washington, cirurgião-dentista. Ele disse que tinha recebido ordem superior para colocar em mim. Eu vi na hora que ele testou, o satélite deu um sinal em um computadorzinho”.

Charuto de Villa-Lobos

Os dias do marinheiro Milton são divididos entre as leituras dos jornais e releituras dos livros, em busca de alguma pista que possa ter passado despercebida. Esporadicamente vai à rua (“resolver questões de interesse”), mas prefere ficar na rede, ouvindo o cacarejar das galinhas e se enchendo de cultura. “O que eu faço no dia-a-dia? Penso no Villa-Lobos, que fez música para o cilindro da locomotiva, imitando a entrada e saída do vapor. E o som da bachiana que é da criança subindo o morro com a lata d’’água na cabeça?”, reflete o amante da dança de salão. “Era um gênio, mas aquele charuto Carbonara que ele gostava era de mafioso”, completa, voltando para seu tema favorito.

Capitão da fragata dos subtextos, Milton tem desconfianças sobre seu próprio passado. “Passei três anos dentro do navio-oficina Belmonte, que não tinha muito conforto. Então eu me recolhia em um porão abandonado, que depois fiquei sabendo que tinha armazenado material radioativo. Não sei se me afetou, mas os médicos devem saber”, admite. E, com a coragem de quem se lança ao mar revolto, revela suas próprias tormentas. “Tomo medicamento controlado e é justamente na hora da Voz do Brasil. É nesse momento que o avião do Sivam sobrevoa minha casa.”

 

*Publicado no Correio da Bahia, em 2005

 

 

A Voa Voa

Comumente, as pessoas se comprazem cochichando por aí que a Voa Voa só pode ser consumidora de substâncias psicoativas. A Voa Voa tem filhos mas pode ser que não. A Voa Voa é jovem só que sempre aparenta menos idade ainda.

À distância, ela está sempre alegre. Os cabelos esvoaçam e o sorriso é fácil e contagiante. A Voa Voa enxerga a vida como aquelas festas all inclusive, mas tem certa dificuldade com aritmética e questões básicas de prevenção.

Certa vez, disseram que ela daria uma excelente engenheira mecatrônica, mas foi apenas uma piada que ela custou a entender. A Voa Voa tem sempre um emprego novo, é fotógrafa, da produção, promoter, dançarina burlesca, guia de turismo, coordenadora de ONG, mas logo cansa de toda essa exploração materialista, embora alguns aleguem que é o patrão quem antes cansa dela.

A Voa Voa balbucia pensamentos profundos como a relação oculta de antagonismo entre o cronômetro do semáforo e a fricção do pneu contra o asfalto, mas em seguida dá uma gargalhada exagerada. Dificilmente, chega-se a uma conclusão sobre onde ela vai e de onde ela vem.

A Voa Voa gosta de saias longas que cobrem até os dedos dos pés e se engana frequentemente sobre dúvidas de menor interesse, como o sobrenome do presidente da República.

*trecho do livro O Comedido Numismata (no prelo)

OS BAIANOS: Aline, sempre a um passo apenas do paraíso

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Será de manhã quando você se deparar com a jovem que corre de muletas na orla. Será uma nova manhã. Ela, que se locomove em um balé cibernético, onde os braços ganham extensões até o chão, vigas móveis, apoiando e impulsionando adiante. Será manhã naquele trecho entre Itapuã e Piatã e você será mais um na plateia informal impressionada, pode interromper a própria corrida em homenagem, ou dar uma buzinada de incentivo. aline_sorri

Como se Aline Melo, 21 anos, precisasse de algum estímulo externo. Seu ritmo é apoiado em duas muletas cor de rosa chumbo e em obstinação. E você aí, pela metade, reclamando que hoje não dá, que os músculos estão cansados, que está frio demais ou calor demais. Aline é daquelas miragens desconcertantes, como seu Arioste, que surgem na orla de Salvador, essa cidade que tem sabor de pão dormido molhado em azeite de poesia.

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– Posso fazer uma entrevista?

– Não sei muito falar.

Mas aí mesmo, com certo sorriso, já vai contando que mora no Jardim das Margaridas, um bairro próximo ao aeroporto de Salvador, dividindo a casa com uma tia. Saiu de Paulo Afonso, um ano atrás, atraída pela proposta de trabalho em um escritório de material de construção. “Estou muito feliz, me sinto em casa”. Encantou-se com a praia, com o Farol da Barra, com o Elevador Lacerda, com o Mercado Modelo. Aos fins de semana, encanta-se também com o shopping center.

Não é atleta, não visa paralimpíadas, é apenas prodígio da força de vontade, lição da natureza. Ela não pode conjugar para si mesmo membros inferiores no plural, mas vai caminhando, em passos únicos, numa altivez superior. Fone no ouvido, roupa de academia, cabelo preso, nada falta no visual de Aline Melo. O que sobra é sua exaltação diante do mar. “Essa orla é linda demais”, exclama, sábado sim, sábado não, ou feriados, quando não precisa trabalhar. É de fazer pensar se uma jovem assim, tão real quanto improvável, chegaria a musa inspiradora de Chico Buarque.

– Você se considera um exemplo?

– É o que as pessoas costumam dizer, responde, em um tom quase envergonhado de quem não quer assumir fantasia de heroína.

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Nessa Salvador, a capital exuberante, que mais impressiona do que choca, não há políticas públicas para nada e para nada, ela passa por cima, aos saltos, de uma calçada desnivelada, esburacada, torta, como a vida costuma ser. Olhares oblíquos vão fitando a jovem, são olhos que pertencem a corpos com potencial amputado pela mediocridade, vidas pererês que vão errando bípedes por aí sem direção. No caso dela, seguir adiante é também uma questão de equilíbrio.

Desnecessário é detalhar como ela teve a perna direita arrancada aos dois anos de idade em um acidente com ônibus cujos detalhes ela nem precisou de muito esforço para esquecer. Isso está no passado. No futuro, o sonho dela, que terminou o ensino médio, é passar em um concurso, qualquer que seja. Sem ser Alice, Aline considera que o país das maravilhas seria aquele em que fosse servidora pública da área administrativa de alguma estatal ou autarquia.

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– Posso tirar umas fotos?

– Só se ficar bonita, responde com um sorriso.

Mesmo em feriado, o mundo passa com pressa por Aline, em duas pernas, em duas ou quatro rodas. Mas vá procurar naqueles céleres o mesmo riso fino e perene no canto de boca. A satisfação suave de ver a praia pela primeira vez, mesmo que já seja a centésima.

Aline Melo é inteira em felicidade e encantamento pela orla, pelo mar, que é esse inconsciente coletivo em forma líquida. E você aí, reclamando que hoje acordou cansado, que está atrasado demais para coisa alguma, fazendo um glossário de “mas” e “se” só com o objetivo de se boicotar. E eu aqui, procurando o que falta, um sentimento que sirva, qualquer coisa que se sinta.

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OS BAIANOS – Arioste, o atleta gentileza

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Quem vê na manhã da orla de Salvador, Arioste Jorge Fér Farias acenando a esmo, ao largo de um engarrafamento insalubre, atravessando com sorrisos a animosidade dentro do ar condicionado veicular, sente primeiro uma surpresa. A surpresa vem primeiro e é seguida –“sim ele está mesmo fazendo aquilo e, não, ele não é maluco” -, seguida por um sentimento de que as coisas vão dar certo.

Ele acena a esmo: gentileza em ação
Ele acena a esmo: gentileza em ação

Arioste, o atleta gentileza, oferece pílulas da vitamina da cordialidade contra a acidez da metrópole. Lá vai ele praticando a ginástica da bem aventurança, esta que exige mais do coração do que qualquer combinação de halteres, destes muito caros nas academias dos duros como pedra. Esportista da amabilidade, dispõe de séries capazes de dissolver os reumatismos dos rancores, amenizar as hipertensões emocionais, suavizar as isquemias de testas franzidas e aquecer as expressões faciais hipotérmicas.

A viatura da Rondesp, com quatro temidos militares da tropa de choque da polícia baiana, passa e dá duas buzinadas marotas. Arioste fica o mais ereto possível, estende perpendicularmente a mão direita na testa e presta uma continência solene de quase um minuto que só um cidadão de bem poderia imitar. Os agentes da lei seguem sorrindo. A cena pode ocorrer 3 ou 4 vezes numa mesma manhã e em todas elas Arioste irá repetir o gesto de almirante da boa vizinhança. Com um aceno, um sorriso proteticamente branco, uma saudação de meu sobrinho, ele vai oxigenando espíritos do mesmo jeito que as artérias fazem com os tecidos.

Arioste Jorge Fér Farias, 66 anos, engenheiro mecânico, há 13 anos aposentado pela Petrobrás, com uma receita de bem viver. Desde jovem, achou que fazer exercício diariamente seria um dogma, “como se fosse algo acachapante, quer dizer, indiscutível”. Para ele dogma é dogma, princípio inquestionável. Tá com febre, tá gripado, tá achando que de tão fraco vai morrer hoje, então aproveite e se exercite antes de bater as botas. Assim é o pensamento dogmático do Arioste de sorriso generoso.Arioste7Arioste6Arioste5

Ao longo do trajeto, entre Jardim de Alá e Aeroclube, que ele cumpre sem pressa (o caminho vale mais que a chegada), vai recebendo um “saudade” por ali, um “bom te ver” por cá. Esteve afastado uns dias, fez falta, mas nem sempre foi assim.

Ele chegou às caminhadas na orla disposto a conduzir uma aposentadoria produtiva e saudável. Diz que encontrou no semblante das pessoas a “fisionomia compungida”, os “rostos pesarosos de quem pecou”. Logo ele, que acredita que os “beneplácitos” da caminhada devem ser feitos “com júbilo”, para que se torne uma pessoa virtuosa e feliz. As pessoas passavam e não se cumprimentavam. Logo ele que gostava de “espargir alegria”.

Passou a acenar, chamar a todos de sobrinhos, sorrir sempre. Não foi simples e redentor como um filme de Woody Allen. Andava com passinhos de marcha atlética, alongando panturrilhas, quase nas pontas dos pés para estimular o “coração periférico” que fica na batata da perna. Convenhamos que não é uma forma de locomoção das mais másculas. Só que ele encontrou três jovens fortões, altos, que passaram olhando para baixo e falando para ele só falta um sutiã para completar o personagem. Ele reagiu da forma que convém reagir quando se trata de uma provocação por três fortões altos de academia: com uma frase de Pablo Neruda. “Não há de ser nada, até as flores mais delicadas, resistem aos ventos mais agressivos”. Eles continuaram nesta zombaria de macho alfa, mas 48 horas depois retornaram. E desta vez para pedir desculpas.

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Arioste acena para a saúde. Gosta de ter uma boa alimentação, que seria uma alimentação “comezinha, simples”. (“Não é que eu goste de usar as palavras difíceis, mas é que são as palavras certeiras”). O marido de dona Valquíria há 45 anos, com quem teve duas filhas e duas netas, resolveu fazer um check-up no dia 6 de novembro de 2012. Foi ao Hospital Espanhol achando que faria um exame e sairia dali direto para um chopinho no Shopping Barra.

Já tinha feito exames anteriores, cujo teste de esforço, ele traduziu como um recado do coração: “Arioste, eu tô bem, mas você está mandando pouco sangue e oxigênio para mim. Posso não aguentar”.

Era próximo do Natal e pensava em festividades, vinho tinto, canapés. Por isso não quis logo fazer a intervenção cirúrgica. Só que naquele dia não teve mais como sair. Operou no dia 22 de novembro, pontes de mamária, safena e revascularização cardíaca.

Enquanto isso, uma pequena comoção ocorria neste ambiente em que cliques são confundidos com doações quando uma campanha foi iniciada na internet para formar uma boa reserva de sangue que garantisse segurança cirúrgica. Dos milhares prometidos, chegou às dezenas de doadores.

Nada contra o atleta gentileza, mas é que as pessoas são hábeis e rápidas a se comprometer com o virtual sem se dar conta que é preciso uma contrapartida real. Assim, por exemplo, talvez se submetendo a uma seringada.

Operou dia 22, recebeu alta 29 de novembro, três meses depois de uma cirurgia invasiva, já estava de volta ao calçadão. Retomou os exercícios em um domingo anterior ao carnaval 2013, recebido com festa, homenagens e camisas comemorativas.

Foram 13 anos para se tornar uma unanimidade no calçadão. Se antes ele tentava romper a indiferença com golpes de ternura, hoje recebe tudo de volta em acenos, abraços, afagos, apertos de mão e meneios de cabeça pelos mais reservados. Derrotou a indiferença que parecia inatingível no pódio dos corredores da orla. Você olha Arioste, o atleta gentileza, em ação e tem aquela surpresa. Imediatamente depois, você já sabe que tudo vai dar certo.

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Os Baianos – Nelson de fogo e de ar

Se com o litro de gasolina a R$3 já não está fácil para os privilegiados que andam em seus carros climatizados pelas ruas em Salvador, imagine para quem usa o combustível como forma de subsistência, justamente nesses semáforos gélidos de ingratidão.

Um isqueiro na mão, uma ideia na cabeça

Nestas encruzilhadas da vida, é possível topar com Nelson, seus pinos de fogo e um galão de 5 litros de gasolina, geralmente consumido em 3 ou 4 horas de trabalho. Os 30, 45 segundos de sinal fechado que para um motorista são eternidade significam o mini expediente dele com seus bastões flamejantes.

Diante da frieza glacial de muitos motoristas que não enxergam ali uma forma de arte, mas coisa de vagabundo, ele responde dizendo que é divorciado, tem dois filhos e precisa de qualquer jeito contribuir com a pensão das crianças e aliviar a cara fechada das ex-mulheres.

Não tem sido fácil. Calcula que ganha entre R$8 a R$10 por hora de apresentação, quando consegue reunir aquelas moedinhas muitas vezes oferecidas entre centímetros de vidro abaixado. Cédulas são tão raras quanto hidrantes com a adequada pressão de água na Av. Manoel Dias da Silva, na Pituba, onde faz ponto.

Os bastões flamejantes de Nelson
Os bastões flamejantes de Nelson

Gosta de fazer a barba para causar boa aparência e não se queimar com os clientes. “Quando eu fico mais novo, eles não me vêem como um cara de 30 anos e podem até ajudar mais”. Mesmo assim, alguns merecem até arder no inferno da avareza. “Tem criança que é empolgada e fica pedindo para dar o dinheiro, mas de nada adianta se o pai é pão duro”.

A cada apresentação rápida como relâmpago ele finge ser desajeitado e deixar cair um bastão apenas para mostrar que tem a habilidade de jogar para o alto com um pé. Enquanto os pinos riscam o ar em uma geometria faiscante, a cabeça dele voa para uma filha de 12 anos e um filho de 8 anos em Manaus.

Inalar o gás, dedos carbonizados, pretos por fuligem e pelo roçar constante com o acendedor do isqueiro, tudo isso com um comportamento agradável, respeitoso e gentil. Nelson José Ferreira dos Santos é mais ar do que fogo. Há 8 anos, desde o nascimento do segundo filho, não consegue comprar uma camisa ou uma calça próprias, literalmente está vestido com roupas e armas de doações. “Se você tiver alguma roupinha, pode me dar. Não é vergonha pedir”.nelson1

Em Feira de Santana, onde nasceu, deixou saudades que vêm e que vão. Como essa namorada, que bateu na porta de sua casa em Itapuã, ontem mesmo de manhã. Chegou assim, sem avisar mesmo, o que para Nelson, mais do que surpresa, é incômodo. Não gosta muito de trabalhar aos domingos (muito menos um domingo chuvoso como este), mas “agora tive que vir pra rua pra fazer um dinheiro que ela possa comprar a passagem de volta para Feira”. “Eu já disse a ela que espere eu ir para Feira que é melhor”.

"Como garantir a passagem da namorada?"
“Como garantir a passagem da namorada?”

Há isso e um problema adicional. Quando a mãe da filha mais velha de Nelson fica sabendo que ele está com mulher ou recebeu alguma visita, começam cobranças por dinheiro desproporcionais. “Acho que ela sente ciúmes, mas não tem como voltar. Não existe ex-mulher, é pra sempre. A gente apenas deixa de ´pegar´, mas ela continua lá, aporrinhando”. Para Nelson, esse negócio de ex-mulher é fogo.

A encruzilhada do artista de rua
A encruzilhada do artista de rua

Nelson trabalha em eventos e aceita convites para apresentações. O contato é (71)9669-4235

Os Baianos – Edvaldo “no sapatinho”

Sapato bicolor, muleta, calçamento de pedra, comprasSapatos bicolores conduzem o cansaço de um homem e sua muleta pelas pedras pisadas de preto do Pelourinho. É um suor de meio dia de sábado junto com um suspiro gigante de uma madrugada em claro. Camisa branca entreaberta, calça risca de giz com bainha impecável, um cumprimento, um sorriso. Edvaldo está voltando para casa, mas antes quer dar uma passadinha na Cantina da Lua, dar um alô ao amigo Clarindo Silva.

Já atrasou um pernoite inteiro, tudo que “a patroa” tiver que reclamar não vai ter agravante por causa de uma horinha a mais de conversa – muito menos pela parada para uma fotografia. “Vou falar com meu filho para acalmar a fera”, avisa, entregando como será o preâmbulo antes de ouviir todas as reclamações da esposa. “Ela não vai querer estragar um casamento de 40 anos em função de uma bobagenzinha”.

Esta bobagenzinha é partida de dominó. Não uma, porque não se conhece disputa de 28 pedras capaz de custar a vigília inteira. “Foi um dominozinho inocente”, minimiza seu Edvaldo. Mais do que inocente, deve ter sido um dominozinho de gala, a julgar pela indumentária do jogador. Um mais afoito poderia até mesmo julgar antecipadamente que ele teria se encantado mais por alguma seresta na região da Piedade do que pelas tramas de uma buchada ou lasquinê preso.

Ao saber que Edvaldo tem estreita ligação com o coreógrafo Carlinhos de Jesus e que tem outros 50 pares de calçados do mesmo gênero feitos sob encomenda, as suspeitas podem virar quase uma certeza. Ele garante que não, mas com certo sorriso malicioso e sem aquela indignação de quem é alvo de uma injúria. Edvaldo Carlos Vasconcelos, assessoria jurídica – é o que diz o cartão de visitas -, a seu dispor. E sai, rumo ao confronto com a patroa, na valsa, porque ainda tem muito lugar pra visitar até chegar em casa. Só no sapatinho. Imagem

Amendoim Torrado

A saga de um jovem, e seu paletó, para vender petiscos sob o calor e a indiferença do trânsito de Salvador

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Torrando no asfalto quente, Uélton garante que está satisfeito

No calor de meio dia do verão de Salvador, a visão de Uélton Júnior Silva dos Santos é como uma miragem às avessas. No irritante trânsito em brasas, ele surge entre carros com uma bandeja pesada de amendoins e uma farda que lembra estagiário de Direito. Você vê aquele rapaz de terno escuro, gravata apertando o pescoço, esfrega os olhos desacreditando e  – ao contrário de uma ilusão de ótica com um coqueiro e uma lagoa no deserto – você não quer estar no lugar dele.

Uélton, 23 anos, apelidado como Cinho, parece se sentir em um oásis particular dentro desta indumentária abafada, oferecendo petiscos a motoristas enquanto eles esperam os 80 segundos de um semáforo nervoso. “Não sinto esse calor todo. Uso o traje completo porque eu acho assim, muitas das vezes, usando bermuda, quer dizer, não me sinto bem, tenho sempre que ter apresentação diferente”, explica Uélton, ainda gaguejando por não acreditar que seu método de trabalho possa interessar a uma reportagem.

Paletó, gravata, calça de brim: impexável vendedor gentil
Paletó, gravata, calça de brim: impecável vendedor gentil

Os totens com termômetros nas proximidades da Pituba discordam entre si sobre a temperatura exata do momento. Alguns apontam 34°, outros, 36°, um mais exagerado, na Avenida Magalhães Neto, chega a 38°. O certo é que a chamada sensação térmica parece dizer: saia de casa com camiseta, short e sandálias e mesmo assim se prepare para uma possível desidratação. Só que o jovem vendedor não dá muita bola para esses imperativos da natureza quando a ideia é provocar uma boa impressão na clientela. “Desde 15 anos, trabalho de paletó e gravata. Comecei com a camisa social. Botei gravata, deu certo. Botei paletó, deu mais certo ainda”, recorda, mostrando que uma ascensão profissional também pode estar ligada ao guarda roupas.

A empolgação com o impacto de marketing provocado por traje incoerente com a meteorologia não disfarça as espessas gotas de suor que escorrem pelo rosto magro e moreno do ambulante elegante. No momento, 15h30, usa casaco preto, camisa vermelha, gravata de listras diagonais coloridas, calça azul marinho, sapato marrom. É provável que quando retornar para casa em Fazenda Coutos, a camisa interna esteja encharcada, mas a alma lavada com a venda de todo lote de 150 saquinhos de amendoim.

Ele também comercializa balas de café ou gengibre, jujubas, paçoca, pé de moça. A escolha da mercadoria para trabalhar depende do intricado cruzamento de dados sobre estação do ano, lucratividade do momento, demandas de cliente. Para vender doce, não pode sair de casa depois de 7h e alcançar os clientes chegando nas escolas. Quando o produto é amendoim, ele digitaria o #PartiuTrabalho (caso tivesse tempo e dinheiro sobrando para essas amenidades chamadas redes sociais) às 10h. A depender do movimento, esgota a carga de sua bandeja (saquinhos por R$1) às 18h, ou 20h30, se estiver ruim.

Uelton faz parte de um exército de batalhadores com números imprecisos em Salvador: os guerreiros do trabalho informal que podem chegar até a dezenas de milhares saindo a campo pela sobrevivência diária. Diz morar com irmão de 18 anos, outro de 8, e duas irmãs de 14 e outra de 5. A mãe é falecida. Mas nenhuma das informações dada por ele foi checada in loco pela reportagem. “Eu sou o cabeça da casa. Tenho que passar responsabilidade. Devemos instruir nossos filhos no caminho que têm que andar. Não podemos perder eles pra essa droga maldita que aí está, o crack. Dando boa educação, sendo discreto, sendo passível”, ensina o engravatado de esquina, mostrando que sabe como “dar um calor” nos irmãos mais novos.

Ele diz que é pai de uma menina de apenas um ano, Maria Vitória Nascimento da Silva, que mora com a mãe no distrito de Cachoeira dos Prazeres, na cidade de Jiquiriçá, a 250 quilômetros de Salvador. Mesmo com essa descrição, ele tem uma forma inusitada de se declarar “pai solteiro”. Parece que a situação ficou quente para o casal e o relacionamento, encerrado, segundo ele, por uma decisão própria, já que não gosta de brigar, xingar e isso estava ocorrendo. Ele garante que é melhor pensar bem, como se fosse uma coisa consensual, mas logo depois avisa que está aguardando uma decisão do juiz para entrar em acordo. Há algo impreciso na história, então é melhor voltar para a alta temperatura do momento.

Ação rápida: em alguns segundos Uélton precisa convencer motoristas apressados
Ação rápida: em alguns segundos Uélton precisa convencer motoristas apressados

Com um sotaque meio acariocado na voz, desses que se ouvem em locutores de FM populares e em todo mundo que pensa em atalhos para a fama, ele vai oferecendo “é um real o pacotinho” para Toyota Corolla, Honda Civic, taxista no Meriva. Andando, desviando de carro e de caras de espanto, suando. “Aqui é calor, mas não me incomodo muito vendendo de terno e gravata. Já sou acostumado, também não discrimino quem vende de bermuda ou de camiseta. Eu digo a eles não para se espelhar em mim. Mas na limpeza, ser cheiroso, cabelo cortado, pra as pessoas falarem bem da gente. Bote sua beleza sempre em prática para chegar em algum lugar”, ensina.

Só que Uélton não é um rapaz apenas de aparências. Ele carrega uma garrafa de água mineral de 1,5 litros e diz que é preciso pensar na “hidratação da pele, não esquecer da água, usar protetor solar. A indicação é beber pelo menos 2 litros de água por dia e cuidar da saúde para não pegar o tal câncer de pele”. Por trás daquele montinho de amendoins bege há um pequeno arquivo mental com todas as informações básicas de sobrevivência sob o sol a pino, disponíveis também para quem tem acesso ao google.

Um motorista baixa o vidro fumê do Hyundai Tucson e Uelton já saboreia o real da venda, ou quem sabe se 2 ou 3, a depender do apetite do cliente. O sopro suave do ar climatizado massageia seu rosto e junto com ele a pergunta, uma ducha de água fria: “Pra que lado fica a Praça Nossa Senhora da Luz?” O vendedor aponta o dedo pra esquerda, depois do semáforo: “É por ali”, mas não se dá por derrotado assim tão fácil. “Vai um amendoinzinho aê?” “Não mesmo, fera, estou com pressa”. E decola com sua barca deixando no rastro do verdadeiro motivo da pergunta, que está na placa de São José dos Campos-SP.

Nesse mundo de quente/frio das ruas, ele recorda da violência física no ano passado. Era uma manhã de sábado, por volta das 10h. Ele diz que um menino de rua estava bagunçando na farmácia da esquina. Foi proteger o segurança e terminou atacado por três rapazes, recebendo uma paulada na cabeça, por trás, quando segurava o adolescente. “Foi um ato de covardia”. Não tomou pontos, mas usou folha de aroeira seca e benzetacil, porque gosta de remédios naturais.

Tão dolorosa quanto a pancada é a violência psicológica dos clientes, algo que hoje deram para alertar como bullying. “Já me chamaram de maluco, de doido, perguntando se já usei remédio por causa dessa roupa. É meu jeito de trabalhar. Não discrimino ninguém. Mas eu digo pra eles que estão no ar condicionado, no escritório, que enquanto eles estão com gelinho no rosto estou dando meu duro. Podia dar pra coisa ruim, pra ladrão, mas estou aqui dizendo que é pra não discriminar que é pra ter amor no coração de quem está próximo”, reflete ele, enquanto bem ao lado trafega toda essa insanidade medicada que se chama a vida na cidade grande.

Quando todos os sinais pareciam fechados a um avanço, ele pensa em prosseguir. Pretende sair desse trabalho correndo atrás de carteira de trabalho, título de eleitor e CPF, para arrumar emprego fixo. Lá na frente ele entrega que acha bonito seguranças de terno e gravata em shoppings ou lojas. “Meu negócio é quem tá na estica, ou ser auxiliar de gerente”.

Uma miragem às avessas: engravatado sob o sol de 38°
Uma miragem às avessas: engravatado sob o sol de 38°

O trânsito, esse ecossistema predatório com armas sonoras em forma de buzinadas, xingamentos, freadas bruscas, ou faróis indevidamente altos, fechadas. Território em que Uélton se auto condicionou a pensar que só com terno e gravata para ficar à altura do aposentado que vem com sandália japonesa e camisa de botão aberta até embaixo do peito, ou a moça com roupa de academia e transpiração pelo rosto, ou dois surfistas que chegam em sungas defumadas de curtição. “Meu plano é ir trabalhar em São Paulo vendendo meu amendoim. É o local que dá pra ganhar dinheiro. Se eu for pra lá, vou me dar bem. Tem um exemplo de um cara que vende de paletó. Hoje ele continua de paletó, mas tem os funcionários todos de camisa de botão”.

Os três encontros com Uélton foram todos eles vespertinos no semáforo do cruzamento entre a Avenida Paulo VI e a Rua Almirante Carlos Paraguassu de Sá, com esquinas ocupadas por farmácias. Mas ele também pode ser acionado por algum cliente itinerante nas proximidades da Praça Nossa Senhora da Luz, perto das muitas escolas do bairro, em qualquer ponto com pouca concorrência e uma sinaleira que ofereça um intervalo útil para ele mostrar as qualidades do produto. “Olha o amendoim, é só um real”.

Na hora da despedida, Uélton é daquelas gentilezas que não pensam em lucro imediato. “Por favor, leve um amendoim para comprovar a qualidade”, oferece ao repórter. “Obrigado, mas acabei de almoçar agora”, recusa, apontando para um relógio que marca mais de 14h. É mentira, o repórter ali naquele momento tem fome. Rejeita a oferta, não se sabe se por uma questionável ética jornalística ou por ética ao próprio sistema digestivo. É que naquele calor até o saquinho de amendoim aparecia meio suado. Só que mesmo sem provar, garante-se, estava uma delícia.

O trânsito, esse ecossistema predatório, passa aos olhos do vendedor elegante
O trânsito, esse ecossistema predatório, passa aos olhos do vendedor elegante

O segredo de Jayme Figura

O que estará por trás daquela máscara de metal enferrujado: um artista querendo ser cult, um indigente, ou apenas um atormentado com armaduras para se proteger da maldade mundana?

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

 

Jayme Figura é uma imagem negra e metalizada que transita pelas ruas de Salvador há um quarto de século e é visto, temido e apontado por boa parte das crianças que brincam no Passeio Público, dos aposentados na Praça da Piedade e dos alternativos que se jogam madrugada adentro nos Barris ou no Largo Dois de Julho. É conhecido em toda Salvador, embora a expressão conhecido seja mais um exagero, uma figura de linguagem para dizer que alguém sabe a quem se está referindo.

O que menos esse andarilho esdrúxulo quer é ser conhecido, mas isto não significa que ele sonhe com o anonimato. De toda uma cidade que o avista e até pára diante de seus passos firmes de desbravador alienígena, ninguém sabe dizer nada a seu respeito, além de futilidades como a necessidade das unhas do seu pé serem apresentadas a uma manicure, ou o fato de andar por aí mudo e sequer responder a um bom dia para não ter a voz identificada. Afinal, ninguém conhece Jayme Figura.

O mundo não se interessou em saber que, dentro do ateliê declaradamente bizarro que possui, vizinho às escadarias da Igreja do Carmo, Jayme jaz – isso mesmo, ele jaz – dentro de um caixão, um móvel que ele mesmo fabricou e carinhosamente chama de sarcófago. E que seu melhor amigo é Billy, um gato pé-duro de coloração escura (como tudo em sua vida tem trevas), que se aproveita das rações espalhadas pelo cômodo caótico de sua vida, considerado um exímio felino na arte da traição. O melhor é que sobre isso tudo Jayme discorre de forma tão empolgada que torna o papo muito interessante de ouvir. “Billy é um traidor, alisou aí, ele logo me esquece. Mas eu coloquei ele aqui não pra pegar rato. Botei pra fazer parte da interação espiritual. Gatos são muito sensíveis. Ali mesmo é o meu sarcófago, onde durmo. O espírito mandou que eu relaxasse num caixão e deitasse minha carne. Se eu me cansasse, que já ficasse por lá”, conta, emendando assuntos, falando com a oratória do tribuno de um espectador só.

 

Jayme de cara limpa

Jayme Figura está à vontade no que restou de seus domínios no térreo de um sobrado no Centro Histórico. Está tão à vontade que se permite tirar um dos elmos que usa, feitos com metais que recolhe dos detritos e impedem a sociedade de conhecer a sua face humana. Antes de abrir a porta, ele pede licença por dois minutos e coloca o capacete cheio de perfurações. Apenas para não correr o risco de ser surpreendido pelos passantes. Dentro de seu império do bizarro, protegido por grades, panos na porta e uma iluminação débil de gambiarra, ele deixa o rosto à mostra. Só que o véu nunca será totalmente descoberto.

Assim como o protagonista do célebre perfil que o repórter Joseph Mitchell escreveu para a revista The New Yorker em duas etapas (em 1942 e em 1967), O Segredo de Joe Gould, Jayme é um personagem cheio de mistérios que guarda um grande segredo sob suas tiras de borracha, correntes, alpercatas de pneu carcomidas e ferragens. Para muitos, uma indumentária reciclável, feita em delírios de ficção científica com baixo orçamento. Para ele, a extensão do próprio corpo, que aumenta seu sacrifício cotidiano em mais de 35 quilos. “Não consigo viver sem isso. Sempre busquei essa proteção”, esclarece, olhando para as lanças pontiagudas sustentadas por seus ombros. “Isso tudo representa a cruz que eu tenho que carregar”.

Há perguntas simples que podem se transformar em tabus para o artista plástico que não consegue vender um quadro há anos e que pode gastar até dois quilos de tinta para concluir uma tela. Na rua, ele é interceptado por um admirador anônimo que pede para ver o rosto e recebe uma negativa. Em seguida, o homem questiona se ele usa sempre a mesma roupa e qual a periodicidade dos banhos. Em um raro momento a que se presta a um diálogo, Jayme desconversa: “sobre essas coisas, me reservo ao direito de não comentar”.

Capacete metalizado, armadura: do que a Figura se protege?

Ele prefere mesmo discorrer sobre projetos artísticos. A sua oficina lembra a senzala de uma criatividade, escombros da guerra travada entre ele e ele mesmo. As paredes descascadas, muito barro na parte de dentro, tudo lembra uma gruta que se recupera, em lento processo, da devastação de um ciclone. Jayme tem dificuldades para comprar a própria alimentação (faz refeições no restaurante Prato do Povo, ou pede frutas na Feira de São Joaquim), quanto mais deixar todo o ambiente dentro da ordem que estabeleceu para transformar tudo em um templo do grotesco.

Nos desenhos do projeto arquitetônico e cultural, ele concebeu uma instalação em que demonstra, no papel, uma engenhosidade de erudito. Bolou uma estrutura de ferro que serviria como sua caverna suspensa, por onde poderia se movimentar sem ser visto por visitantes. Escondido, ele ficaria pintando um tecido que rolaria para a visão dos apreciadores.

Jayme agora se vira para arrumar pisos e argamassa para tentar transformar as paredes e o teto em um branco glacial, numa limpidez que não combinaria, a princípio, com seu estilo de gladiador. Seria para dar mais ênfase ao aspecto bizarro da obra, como se a casa toda se tornasse uma moldura.

 

Personalidade dupla

Jayme vive sempre naquela dicotomia típica dos superheróis, que se digladiam internamente com identidades díspares, com uma imagem pública de mito e a biografia que nenhuma relação tem com sua epopéia. Um dos sete filhos de um casal negro e pobre de Conceição do Almeida, município próximo de Santo Antônio de Jesus, a 150 quilômetros de Salvador, mudou-se criança para a capital. Estudou em escola pública no Alto do Peru e chegou até a fazer desenhos para agências de publicidade, época em que tinha dinheiro, prestígio e até carro do ano. Casou, teve filhos e até hoje mantém a família em um apartamento de conjunto popular (quatro famílias por andar) em bairro periférico.

Há um pai e marido que está por aí, sem o uniforme, quando precisa ir a uma delegacia ou hospital, porque sabe que “o impacto da roupa é muito forte”. Talvez, em algum lugar de sua pasta de documentos, apareça até algum ofício ou registro com os sobrenomes Andrade ou Dias, mas isso não é seguro de afirmar. A segurança para ele é permanecer oculto no seu traje cósmico que começou a ser costurado ainda na juventude. “Sempre fui muito bonito, magrinho e esbelto, paparicado pelas garotas. Os caras me abusavam e achavam que eu era viado porque não reagia às provocações deles. Aí passei a usar braçadeiras metálicas para me proteger, depois coloquei perneiras para me livrar das mordidas dos cachorros. Quando surgiu o movimento punk, eu já estava vestido”, recorda ele, enquanto um rádio velho, com um alto falante ainda mais antigo, emite um ruído infinito de estática. Até o som no ateliê está em busca de alguma sintonia.

 

A maldade do mundo

Jayme confessa que tem medo da maldade do mundo, é a explicação encontrada para colocar tantos obstáculos entre ele mesmo e a vida que passa. Sente solidão quando os turistas estrangeiros o fotografam, sente calafrios quando lhe praticam agressões na rua, sente ódio quando um vizinho ruim de ritmo resolve praticar percussão.

“Desde pequeno, eu sempre vivi sozinho e com medo da maldade das pessoas. Eu era enganado e perseguido. Quanto mais quieto eu ficava, mais problema eu atraía. Começaram a buscar por minha carne, pra saber se eu era homem ou mulher. Não foram os brancos que me subjugaram. Foi minha própria raça que me tirou sangue e mexeu na minha carne”, ele fala tudo isso, mas Billy, o melhor amigo, nem dá atenção.

Jayme não vai ceder ao apelo público de mostrar o rosto. “Eu quero tirar a máscara e poder mostrar rugas, quero tempo de vida para mostrar”. Só que na penumbra de seu ateliê implodido, ele se revela. É uma aparência que qualquer um pode ter visto na fila do banco, ou ter sido servido no restaurante, ou ter gritado gol para ele na Fonte Nova. Jaime – nessa hora sem o Y – é um comum que se despe das armas do sagrado. Um negro de nariz ligeiramente fino, barba falhada, olhos escuros, dois dentes frontais quebrados.

Poderia ser um guardador de carro ou um advogado, a depender de como se vestisse. Tudo é comum na sua aparência, menos a incompatibilidade entre a idade anunciada e a figura de sua imagem. Ele diz que tem 53 anos, mas qualquer um, sem ver os cabelos grisalhos, apostaria em 35. “Eu não tomo sol no rosto, isso rejuvenesce”, despista. Só que este, definitivamente, não é o grande segredo de Jayme Figura.

 

Lama e sucesso

Fama e Sucesso: Pedra foi morto por um michê em hotel de alta rotatividade no Lg Dois de Julho

Este senhor aí de olhos rutilantes e charme incandescente se chamava Jorge Pedra e desfilava, na TV Salvador, um jeito “gracinha” de fazer um programa de televisão inspirado em Amaury Jr, mas também em Jim Carey, tamanha a quantidade de caras e bocas. Fama e Sucesso despertava atenção por um momento sublime em que ele se despedia das entrevistadas desejando uma “excelente qualidade de vida”. Só que Jorge Pedra era muito mais do que um mero questionador de celebridades. Numa rápida narração, ex-muita coisa, como parceiro de dança de Cláudia Raia, empresário de pugilista, jurado de Chacrinha, empresário da noite, cantor confundido com Roberto Carlos, galã da Rede Globo, destruidor de corações e datilógrafo. E isto é apenas uma terça da parte do que ele já fez e conta.

A reportagem abaixo foi produzida em junho de 2006. Em 1º de novembro de 2009, Dia de Finados, Pedra foi encontrado morto a facadas em um hotel vagabundo no Largo Dois de Julho. Onze meses depois, um garoto de programa foi preso e confessou ter matado o apresentador em uma noitada de sexo, cocaína e calote.

 

Vivendo em sociedade

A saga de champanhe francês e delírios internacionais de Jorge Pedra, o colunista social eletrônico que só tem olhos e microfone para quem tem fama e sucesso

Jorge Pedra anda ultimamente muito emocionado com Bell Marques. Ao falar do cantor, este improvável apresentador de televisão escolhe as palavras mais carinhosas, os adjetivos mais magnânimos, os elogios mais eloqüentes que consegue lembrar do seu vocabulário, onde as palavras chique e luxo são tão usadas quanto as pausas para respiração. Quando menciona o líder da banda Chiclete com Banana (“o maior sucesso musical da Bahia há mais de 20 anos”), seu rosto se amolece em ternura, sua voz fica adocicada, o peito infla, a expressão se derrete, o canto dos olhos ganha viço. E não são raros os momentos em que isso acontece.

Bell Marques tem sido o assunto preferido de Pedra, desde que o vocalista da bandana (tradicionalmente avesso a aparições televisivas) deu uma entrevista ao programa que ele comanda há um ano e meio, chamado Fama e Sucesso. A adoração instantânea é tão explícita que ele não se contém em fazer uma confidência logo de início de conversa. “Recebi uma ligação de Bell agora. Ele disse que tinha me mandado uma lembrancinha. Era uma garrafa do melhor vinho Chicleteiro”, confessa, sobre a marca da bebida que o músico resolveu adotar como mais novo negócio. “Não custa menos de R$500”, antecipa Pedra, antes mesmo da pergunta, logo ele que se diz totalmente abstêmio, mas inteiramente extasiado com o mimo etílico.

Jorge Pedra é assim mesmo. Tem seus momentos de empolgação exacerbada. Já sentiu a mesma coisa com a própria mulher de Bell, Aninha Marques (“um amor de pessoa”), a empresária Regina Weckerle (“uma mulher guerreira”), a apresentadora Kátia Guzzo (“minha irmã, a maior musa da tevê na Bahia”). Ele sempre está, digamos, sensibilizado com o espírito empreendedor de algum empresário, ou a cordialidade de um artista, até mesmo a firmeza de um político. Jorge Pedra é assim mesmo. “Meu lado é o da sociedade. É aquela fantasia que mostro. Eu vendo emoções”, suspira.

Glamour comercial

Talvez tenha se chegado até aqui com duas grandes dúvidas: afinal, quem é este Jorge Pedra, além de um fã de Chiclete com Banana, e, principalmente, como um rosto pode se amolecer em ternura? Realmente, ele não tem nenhuma comunidade no orkut, mas a primeira pergunta pode ser respondida sintonizando na TV Salvador, às 23h30 de uma quarta-feira, ou às 18h15 de um domingo. É a melhor maneira de descobrir como seria essa tal comercialização do glamour proposta pelo dândi, que usa uma argola dourada em cada lóbulo, alguns anéis reluzentes, colares e um relógio brilhante.

O Fama e Sucesso, que dá nome à atração, parece ser o binômio de metas do criador, mas por enquanto serve apenas para caracterizar o tipo de público a que Pedra dedica toda a sua atenção. “Inicialmente, seria apenas fama. Mas vi que isso não se aplica a empresários, advogados e médicos, que podem não ser famosos, mas são muito bem sucedidos”, esclarece, bebericando uma taça de Coca-Cola, no lobby do Hotel da Bahia. Desbravando festas, residências e escritórios com câmera e microfone, o programa não está muito distante do espírito do colunismo eletrônico praticado em emissoras do sudeste nas altas rodas do Rio e de São Paulo. Mas a versão baiana terminou ganhando o tempero do inusitado.

Quem não se interessa muito pela vida dos ricos e famosos, pode se deleitar com a performance do apresentador para ser testemunha de alguma curiosidade. Ele mesmo não envergonha de suas desventuras mais leves. “Veja bem, eu usava um aparelho nos dentes e não conseguia falar a palavra ´programa´, só saía progama”, reconhece. “Recebi até sugestão de procurar uma fonoaudióloga, mas as pessoas não sabiam que era por causa do aparelho”, corrige ele, para dali a alguns minutos escorregar, involuntariamente, na mesma palavra, mesmo com os dentes livres de qualquer entrave de dicção.

Pedra também tem um jeito muito peculiar de se despedir de seus entrevistados, aqueles que muitas vezes andam a bordo de carro importado, não assistem mais tv aberta, estão com o plano de saúde em dia e colocam os filhos em dois intercâmbios anuais. Ele deseja, além do tradicional “saúde e felicidade”, muita qualidade de vida. Qualidade de vida? Parece até algum tipo de saudação de inspetores de desenvolvimento humano da ONU, mas é apenas uma forma graciosa que encontrou de manter os votos de prosperidade. “É uma coisa dita assim, de coração”, jura.

Currículo de ribalta

E ninguém pense que esse neologista dos talk-shows é um neófito da ribalta, desses que tomam um microfone hoje e amanhã já estão se achando o último cubo de gelo do whisky 12 anos. Contar a trajetória dele é coisa para quem tem fôlego de ler de uma só vez um parágrafo inteiro melhor escrito pelo português José Saramago com seu estilo sem pausas, ou pelo grego Esopo, e seu estilo fabulista. Carioca, nascido na zona norte, Jorge Luís Lopes Pedra começou a fazer pontas na Globo aos 13 anos e desde então pode ser chamado de ator, bailarino (clássico, jazz, sapateado, ex-parceiro de Cláudia Raia em Nova Iorque), cantor (confundido como filho de Roberto Carlos), músico, empresário da noite (diretor das casas Hipopotamus e Scala), promoter (organizador de uma festa para Pelé na Copa da Itália, em 90), escritor de coluna social (afilhado de Zózimo Barroso do Amaral), empresário esportivo (do ex-zagueiro do Flamengo, Rogério, e do ex-pugilista Reginaldo Hollyfield), jurado de Chacrinha , ecumênico (“sou católico por ser brasileiro, espírita, devoto de São Lázaro e São Roque, se me chamarem pra um candomblé, eu vou, mas sou mesmo messiânico que reza em japonês”), poliglota (“falo italiano, francês, inglês e espanhol”) e datilógrafo formado. Pra quem acha que é muita coisa pra apenas 48 anos de vida, a correção: “e isso não é nem a terça parte do que já fiz”. Aliás, Pedra, 48 anos de idade? “É que eu me trato, amigo”.

Poliglota, bailarino em Nova Iorque, cantor, empresário de Hollyfield, ecumênico, jurado de Chacrinha: simplesmente Pedra.

Em tanto tempo de atividade nos mais altos escalões do Brasil e do mundo (“um sheik árabe já me deu o presente de conhecer o Cairo e as pirâmides egípcias em 1992”), Pedra poderia até se sentir deslocado em região por vezes apontada como tão provinciana como a Bahia. “Pelo contrário, nunca conquistei tanta coisa, em tão pouco tempo, como aqui”, garante ele, que se intitula “baianoca”, desde 2000. Mesmo com essa espécie de gratidão de resultados, ele não se furta a uma crítica sobre a elite de ocasião, que diferencia da aristocracia de berço. “Acho que metade não é aquilo que aparenta ser”, desmascara, usando o índice de comparação entre a imagem e o saldo da conta bancária.

Até desconfiando da, por assim dizer, capacidade empreendedora de alguns membros da fina flor baiana, Jorge Pedra não sai do meio. Na verdade, ele diz que só tem acesso à escumalha se for para fazer uma boa ação. Garante que mantém uma escola de boxe e jiu jitsu no bairro do Tororó, embora, no momento, não lembre quantos garotos sejam atendidos. “Outro dia, fui dar carona a um funcionário meu, ali pela zona norte de Salvador, acho que Paripe, ou Periperi, e vi como sou reconhecido pelas pessoas humildes”, vibra. “Aliás, nem sei se ali é zona norte mesmo, deve ser zona oeste, não é?”, questiona, em busca de uma localização.

Tire os zóio

Pedra diz que tem uns débitos com banco (“é até bom porque estimula a trabalhar mais”), mas normalmente é visto como milionário. “Já sofri tentativa de seqüestro na Estrada do Coco. Uma sensação horrorosa”, indigna-se, vítima da escalada da violência. Locomove-se em um dos dois carros importados que possui, que também não são nenhum exemplo de discrição. Inteiramente plotados com as palavras “Fama e Sucesso by Jorge Pedra”, são verdadeiros chiquemóveis, veículos do glamour ambulante que ele quer transmitir via satélite. Só olhares mais atentos percebem na traseira adesivos que certamente nenhum de seus entrevistados colocaria nem no carrinho de mão do caseiro: “tire os zóio, ladrão”.

Por último, do alto de seu 1,65m de elegância auto definida como “pret-à-porter e meio cafona” (“já acordo de blazer e gravata”), Pedra confidencia o assédio de que é vítima, coisa digna de protagonista da novela das oito. “Percebo que tem muita gente que me olha de forma muito sexy nas festas”, despista. Mais detalhes, Pedra, mais detalhes, intrigas amorosas e escândalos sexuais sempre vendem jornal. “Elas me seguram com vontade pelo braço, me olham dentro dos olhos. Encontro muitos bilhetes com telefones dentro do meu carro”. E são senhoras casadas, Pedra? “Meu amigo, não diria que são casadas, são apenas amorosamente carentes”, minimiza, enigmático.

Ah, sim. Bell Marques já avisou. Não fará mais nenhum evento na Bahia, no Brasil, ou no mundo, sem pedir a presença do Fama e Sucesso. É isso o que Jorge Pedra mais usa como trunfo ultimamente. E se quiser saber como é um rosto amolecendo de ternura, basta vê-lo repetindo essa notícia.

O homem que “ressuscitou” Luís Eduardo Magalhães

O que mais quer um estudante de jornalismo, sem pretensão ou vocação para ser mestre ou doutor, do que emplacar uma reportagem exclusiva em algum veículo impresso, mesmo que isso não renda sequer um centavo? No final da década de 90, na Faculdade de Comunicação da UFBa, mais do que o jornal laboratório era A Província da Bahia que conseguia atrair os mais relevantes textos e entrevistas que saíam dos bloquinhos e laudas datilografadas por mentes calouras e virgens de redações. Debochado, cáustico, imprevisível e polêmico, o hebdomadário costumava apresentar uma pauta que ia da sátira de costumes à crítica social, assim, meio intelectual, meio de esquerda. Às vezes dava para ser bombástico, e o melhor, a um custo quase zero, porque a remuneração de todos costumava ser um fechamento com meia dúzia de cervejas, pagas por cada um.

Nesta pretensão vã de querer salvar o mundo – e a Província – com algumas linhas na imprensa, estreei como repórter especial e editor assistente, sem nem mesmo chegar a ser foca (só um jornal onde três colaboradores se revezavam entre fotografia, comercial, diagramação e motorista permitiria tal acinte). Foi assim que eu mesmo sugeri a pauta, aprovei, investiguei, e ainda paguei a minha própria diária para descobrir quem foi o senhor que “ressuscitou” Luís Eduardo Magalhães. No dia do enterro do deputado federal baiano, diante das câmeras, ele conseguiu até rivalizar em notoriedade com o morto e o pai do morto. Durante a despedida, ele fez uma exortação e disse que poderiam abrir a tampa do caixão porque dali sairia um homem renovado. Ninguém teve coragem e pairou aquele ar de desmoralização para o anônimo calvo e com aparência de jardineiro antigo.

Foi difícil encontrar o irmão Vitório, mesmo para um graduando desocupado como eu. Até porque ninguém sabia que ele se chamava Vitório. O certo é que só uns 90 dias depois do sepultamento em abril de 1998, ele foi localizado no Engenho Velho de Brotas. E sua situação bem que merece uma intervenção divina. Depois do episódio, estava ameaçado de ser expulso da congregação dos Adventistas do Sétimo Dia, no Campo da Pólvora, e estava prestes a sofrer o trigésimo assalto. Mesmo assim, era dono de uma fé inabalável. Após três encontros, aceitou ser fotografado e contar tudo o que aconteceu naquele dia, como testemunho de que aos tementes a Deus nada é impossível. Seu Vitório garantiu: faltou fé às pessoas, porque se o caixão fosse aberto um milagre seria exibido em rede nacional. As palavras de um homem bom, ressuscitadas 14 anos depois.