Deitado na rede, Marinheiro Milton decifra mistérios da espionagem internacional
Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)
“Mestre, esse livro aqui está bombardeado com raios de isótopos. Toda a literatura médica, científica e clássica é bombardeada com raios de isótopos em suas páginas para ser localizada em qualquer parte do planeta.” Deitado em sua rede, com um aparentemente trivial exemplar – desses que podem ser encontrados em qualquer sebo -, o marinheiro Milton relata um dos fundamentos tecnológicos em favor da espionagem internacional e discorre sobre o tema que mais aprecia e domina: conspiração. A vela é içada para mais uma viagem em direção à ilha de exótico saber do senhor de 72 anos e uma vitalidade que parece ter ancorado em alguma fase da adolescência. O vento que sopra é a voz rouca e rascante – sempre num timbre acima do usual – empenhada em desmascarar arapongas e estratégias.
Marinheiro Milton vai falar e, uma vez que você ouça suas descobertas, será impossível olhar com parcimônia até mesmo para uma inofensiva caneta esferográfica. “Quem inventou o grampo foi o russo, quem aperfeiçoou foi o alemão. Nos anos 30, a Alemanha mantinha todos os telefones da Europa grampeados. Nos anos 40, até o telefone de Getúlio (Vargas) já tinha escuta, e o de João Goulart, nos anos 60”, acusa. É certo que não basta ter ouvidos atentos para captar as histórias que mesclam a ficção de Júlio Verne e o cientificismo de Carl Sagan, a literatice de John Grisham e o New Journalism de Truman Capote. É preciso mente aberta para velejar no oceano de imprevisibilidades por onde singra a nau do mestre Milton.
Para dar entrevista, ele impôs duas condições. A primeira, de nobilíssimo altruísmo: “Desde que a reportagem não seja para exaltar minha pessoa, mas sim a própria imprensa, que continua me educando e reeducando”. A segunda, de ardilosa prevenção: “Tem que ser em uma quarta-feira ou no dia 5 de cada mês, pois são os dias de reunião da cúpula da CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA)”, avisou, acreditando ser este o melhor método para a nossa conversar passar despercebida.
Ritual investigativo
Manhã de quarta-feira e Milton de Andrade Moraes já iniciou o ritual cotidiano de acordar junto com os primeiros raios de sol, deitar na rede da varanda da casa simples no Cabula (uma espécie de sítio com residências de outros parentes) e ler vorazmente as páginas dos três jornais de Salvador. O trabalho solitário do ex-praça da Marinha é procurar os sinais ocultos nas entrelinhas, os vestígios nas notícias, as ligações subterrâneas entre fatos aparentemente distantes, como a inauguração de uma escola em Sri-Lanka e o lançamento de um satélite no Cabo Canaveral.
“Bin Laden trabalha para a CIA desde os 19 anos, vocês (imprensa) que disseram. Um artigo de fundo da revista Seleções afirma que a Al-Qaeda é uma organização patrocinada pela CIA. O Pentágono é a pátria das corporações, a catedral das empresas. O diretor da CIA é o homem mais poderoso do mundo”, torpedeia, ligando um assunto a outro e impedindo o interlocutor de acompanhar o raciocínio. Sem sair do conforto de sua rede, Milton, o marinheiro, revela, investiga e esquadrinha todas as grandes tramóias do planeta.
“Mestre, na hora que você toma remédio genérico ou transgênico, evidentemente tem um avião espião sobrevoando ou até um satélite para registrar. As notas de dólar e as revistas são criptografadas. Quando você anda na rua com este material, as torres e plataformas estão te seguindo, estamos sendo fotografados e escutados minuciosamente. Com o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), o Brasil já está dominando essa tecnologia, pois o computador central está em Brasília, decodificando tudo”, adverte, provocando na audiência a sensação de estar ouvindo uma revisão histórica do clássico “1984”, de George Orwell.
Lavagem cerebral
Torneiro fresador formado pela escola de artífices da Marinha, Milton entrou para as Forças Armadas em 1946, levando uma carta de recomendação do major Cosme de Farias. A vida náutica durou dez anos até a aposentadoria. A bordo de navios, o marujo vivenciou histórias que poderiam render uma biografia aventureira. Fugir da polícia de Havana depois de um tripulante dar um calote em uma prostituta cubana foi uma delas. Mas a vocação para o realismo fantástico sublima suas próprias experiências. “O serviço mais inteligente é o de contra-informações, que usa muita psiquiatria para fazer lavagem cerebral. A antiga KGB (agência de espionagem russa) era useira e vezeira nisso. Às vezes eu penso que sofri uma lavagem cerebral, porque tomei 10 centímetros de insulina. Luís Carlos Prestes dizia que insulina também fazia o preso político falar. Tem insulina na cebola, cebolinha, mas tem mais no alho”, informa.
Filho de bicheiro e lavadeira, Milton saiu da pobreza absoluta e, seguindo o exemplo do pai (que só tinha dinheiro para comprar jornal aos sábados), criou um desejo incontrolável por informação. Além dos jornais, assina quatro revistas militares do Exército e da Marinha e tem uma biblioteca de 500 volumes que poderia virar referência curricular na formação do agente 007. Livros como Guerras secretas da CIA (do jornalista que investigou o escândalo de Watergate, Bob Woodward) e O FBI Por Dentro estão repletos de anotações de rodapé e até pregadores de roupa para indicar as páginas mais interessantes.
Há 42 anos, casou com Raquel, com quem teve cinco filhos e divide todas as descobertas. “Tudo que eu sei, ela sabe. Se algum araponga me pegar, vai ter que pegar ela também”, condiciona. Após uma consulta médica que seria uma prosaica revisão dentária, há uns três anos, dona Raquel ficou sabendo de uma novidade que poderia virar argumento para algum episódio da extinta série O Homem de Seis Milhões de Dólares. “Eu tenho um sensor de rastreamento em meu pré-molar do maxilar superior. Quem botou foi o capitão-tenente Washington, cirurgião-dentista. Ele disse que tinha recebido ordem superior para colocar em mim. Eu vi na hora que ele testou, o satélite deu um sinal em um computadorzinho”.
Charuto de Villa-Lobos
Os dias do marinheiro Milton são divididos entre as leituras dos jornais e releituras dos livros, em busca de alguma pista que possa ter passado despercebida. Esporadicamente vai à rua (“resolver questões de interesse”), mas prefere ficar na rede, ouvindo o cacarejar das galinhas e se enchendo de cultura. “O que eu faço no dia-a-dia? Penso no Villa-Lobos, que fez música para o cilindro da locomotiva, imitando a entrada e saída do vapor. E o som da bachiana que é da criança subindo o morro com a lata d’’água na cabeça?”, reflete o amante da dança de salão. “Era um gênio, mas aquele charuto Carbonara que ele gostava era de mafioso”, completa, voltando para seu tema favorito.
Capitão da fragata dos subtextos, Milton tem desconfianças sobre seu próprio passado. “Passei três anos dentro do navio-oficina Belmonte, que não tinha muito conforto. Então eu me recolhia em um porão abandonado, que depois fiquei sabendo que tinha armazenado material radioativo. Não sei se me afetou, mas os médicos devem saber”, admite. E, com a coragem de quem se lança ao mar revolto, revela suas próprias tormentas. “Tomo medicamento controlado e é justamente na hora da Voz do Brasil. É nesse momento que o avião do Sivam sobrevoa minha casa.”
*Publicado no Correio da Bahia, em 2005