OS BAIANOS – A dose certa de Caldo com Limão

JOÃO EVANGELISTA BARBOSA, 49 ANOS, STELLA MARIS | Pouca gente já provou o sabor de ouvir alguma de suas 450 canções, mas inúmeros se deleitam pedindo bis a um copão refrescante e açucarado de sua mais famosa composição espremida da cana. É por isso que seu apelido tem a sonoridade e o gostinho de ser Caldo com Limão.
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Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)
É garantido que você não vai dar nada por Caldo com Limão, mas só até provar 500 ml de sua calórica biografia. Ali, em Stella Maris, ao lado de um posto de gasolina, ele instala e retira, diariamente, sua máquina de moer cana, que faz a alegria de surfistas desidratados, operários sedentos, donas de casa desesperadas com o calor. O caldo de cana fornecido por João Evangelista Barbosa, 49 anos, de tão bom e disputado, até parece sua melhor criação.Nem todo mundo acredita que ele fez letra e arranjos para 450 músicas e gravou cinco CDs por conta própria, em uma década de composições. Para ser artista, começou a tocar violão, teclado, pandeiro de forma autodidata, bebendo na fonte da boemia de Itapuã, para ficar em uma metáfora ligada à sua fonte principal de renda.caldo3

Há 16 anos, resolveu montar o ponto de caldo de cana, depois de ser pedreiro, ambulante, porteiro. Dez anos atrás, começou a imaginar músicas, a partir de situações onde faz malabarismos para encaixar duplo sentido, e descobriu a grande vocação, compondo forró, arrocha, reggae, pagode romântico.

Com algum ritmo mental e boa vontade, dá para imaginar a audição dessa letra entoada em um arranjo pé de serra:

Eu sou o caldo com limão/ Me chamam de caldo/ Você não sabe meu nome/ Digo agora quem eu sou/ Sou o mestre cuca/ Que você não conheceu/ Me chamam caldo com limão/ Na verdade Seu Cuca é eu / Seu Cuca é eu/ Seu Cuca é eu/ Sou o Mestre Cuca que você não conheceu.

Está revelando agora que o ídolo é Gilberto Gil pela inventividade e sonoridade, quando um cliente chega pedindo um “suco diet”. Não se sabe se é possível ser dietético um produto que oferece 400 calorias em meio litro. Mas o consumidor não pensava na balança, queria era um preço enxuto, magrinho. Ao invés dos R$ 3, preferia uma porção pela qual pagasse R$ 1.

“Falô, velhô”, é geralmente a saudação que Caldo usa nesta e em outras situações. Se for alguém mais próximo, aproveita para mostrar o caderno com mais de 100 letras inéditas rabiscadas.

Toma merilu, toma merilu/ Você não gosta de café/ Gosta de tomate cru/ Salada de tomate faz a pele endurecer/ Tem vitamina e te faz emagrecer/ Café é muito bom/ Toma aqui, toma no norte/ Gosta de tomar na máquina, o coado é mais forte.

“A cada 10 pessoas que eu canto a música é 100% de aceitação”, contabiliza Caldo, falando sobre este que parece ser seu sucesso unânime.

Certa vez, Caldo com Limão mandou fazer uma faixa, alugou umas caixas de som, aprontou o teclado e convidou todos os clientes para uma gravação marcada por uma emissora de televisão. A produção do programa cancelou com dois dias de antecedência, quando já não dava para desfazer o anúncio que ficou exposto por três semanas, nem os pedidos empolgados feitos para garantir mais público. Enfim, não dava mais para apagar a certeza que aquela participação na TV seria a primeira golada na nutritiva vitamina do reconhecimento.caldo2

Caldo manteve a programação, já que o carreto para os equipamentos tinha sido pago, e fez um show no seu ponto, ao lado do Clube dos Empregados da Petrobras. Naquele dia, foi artista em tempo integral, só que os aplausos custaram todo o lucro normal de um sábado, já que cantor e compositor em ação não consegue moer cana para fazer o dinheiro líquido e certo.

O público ficou tão satisfeito com a música quanto fica com aquele suco marrom-acinzentado, um exagero de doce, resfriado por gelo que toma um terço do copo. Ninguém ousou descrer do seu sonho de ribalta. Aliás, é muito raro alguém duvidar do sucesso artístico de Caldo com Limão. Quando isso acontece, ele opta por sorrir. É assim que todo mundo supõe que é feliz.

*Publicado originalmente no projeto Humanos de Salvador.

OS BAIANOS – Arioste, o atleta gentileza

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Quem vê na manhã da orla de Salvador, Arioste Jorge Fér Farias acenando a esmo, ao largo de um engarrafamento insalubre, atravessando com sorrisos a animosidade dentro do ar condicionado veicular, sente primeiro uma surpresa. A surpresa vem primeiro e é seguida –“sim ele está mesmo fazendo aquilo e, não, ele não é maluco” -, seguida por um sentimento de que as coisas vão dar certo.

Ele acena a esmo: gentileza em ação
Ele acena a esmo: gentileza em ação

Arioste, o atleta gentileza, oferece pílulas da vitamina da cordialidade contra a acidez da metrópole. Lá vai ele praticando a ginástica da bem aventurança, esta que exige mais do coração do que qualquer combinação de halteres, destes muito caros nas academias dos duros como pedra. Esportista da amabilidade, dispõe de séries capazes de dissolver os reumatismos dos rancores, amenizar as hipertensões emocionais, suavizar as isquemias de testas franzidas e aquecer as expressões faciais hipotérmicas.

A viatura da Rondesp, com quatro temidos militares da tropa de choque da polícia baiana, passa e dá duas buzinadas marotas. Arioste fica o mais ereto possível, estende perpendicularmente a mão direita na testa e presta uma continência solene de quase um minuto que só um cidadão de bem poderia imitar. Os agentes da lei seguem sorrindo. A cena pode ocorrer 3 ou 4 vezes numa mesma manhã e em todas elas Arioste irá repetir o gesto de almirante da boa vizinhança. Com um aceno, um sorriso proteticamente branco, uma saudação de meu sobrinho, ele vai oxigenando espíritos do mesmo jeito que as artérias fazem com os tecidos.

Arioste Jorge Fér Farias, 66 anos, engenheiro mecânico, há 13 anos aposentado pela Petrobrás, com uma receita de bem viver. Desde jovem, achou que fazer exercício diariamente seria um dogma, “como se fosse algo acachapante, quer dizer, indiscutível”. Para ele dogma é dogma, princípio inquestionável. Tá com febre, tá gripado, tá achando que de tão fraco vai morrer hoje, então aproveite e se exercite antes de bater as botas. Assim é o pensamento dogmático do Arioste de sorriso generoso.Arioste7Arioste6Arioste5

Ao longo do trajeto, entre Jardim de Alá e Aeroclube, que ele cumpre sem pressa (o caminho vale mais que a chegada), vai recebendo um “saudade” por ali, um “bom te ver” por cá. Esteve afastado uns dias, fez falta, mas nem sempre foi assim.

Ele chegou às caminhadas na orla disposto a conduzir uma aposentadoria produtiva e saudável. Diz que encontrou no semblante das pessoas a “fisionomia compungida”, os “rostos pesarosos de quem pecou”. Logo ele, que acredita que os “beneplácitos” da caminhada devem ser feitos “com júbilo”, para que se torne uma pessoa virtuosa e feliz. As pessoas passavam e não se cumprimentavam. Logo ele que gostava de “espargir alegria”.

Passou a acenar, chamar a todos de sobrinhos, sorrir sempre. Não foi simples e redentor como um filme de Woody Allen. Andava com passinhos de marcha atlética, alongando panturrilhas, quase nas pontas dos pés para estimular o “coração periférico” que fica na batata da perna. Convenhamos que não é uma forma de locomoção das mais másculas. Só que ele encontrou três jovens fortões, altos, que passaram olhando para baixo e falando para ele só falta um sutiã para completar o personagem. Ele reagiu da forma que convém reagir quando se trata de uma provocação por três fortões altos de academia: com uma frase de Pablo Neruda. “Não há de ser nada, até as flores mais delicadas, resistem aos ventos mais agressivos”. Eles continuaram nesta zombaria de macho alfa, mas 48 horas depois retornaram. E desta vez para pedir desculpas.

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Arioste acena para a saúde. Gosta de ter uma boa alimentação, que seria uma alimentação “comezinha, simples”. (“Não é que eu goste de usar as palavras difíceis, mas é que são as palavras certeiras”). O marido de dona Valquíria há 45 anos, com quem teve duas filhas e duas netas, resolveu fazer um check-up no dia 6 de novembro de 2012. Foi ao Hospital Espanhol achando que faria um exame e sairia dali direto para um chopinho no Shopping Barra.

Já tinha feito exames anteriores, cujo teste de esforço, ele traduziu como um recado do coração: “Arioste, eu tô bem, mas você está mandando pouco sangue e oxigênio para mim. Posso não aguentar”.

Era próximo do Natal e pensava em festividades, vinho tinto, canapés. Por isso não quis logo fazer a intervenção cirúrgica. Só que naquele dia não teve mais como sair. Operou no dia 22 de novembro, pontes de mamária, safena e revascularização cardíaca.

Enquanto isso, uma pequena comoção ocorria neste ambiente em que cliques são confundidos com doações quando uma campanha foi iniciada na internet para formar uma boa reserva de sangue que garantisse segurança cirúrgica. Dos milhares prometidos, chegou às dezenas de doadores.

Nada contra o atleta gentileza, mas é que as pessoas são hábeis e rápidas a se comprometer com o virtual sem se dar conta que é preciso uma contrapartida real. Assim, por exemplo, talvez se submetendo a uma seringada.

Operou dia 22, recebeu alta 29 de novembro, três meses depois de uma cirurgia invasiva, já estava de volta ao calçadão. Retomou os exercícios em um domingo anterior ao carnaval 2013, recebido com festa, homenagens e camisas comemorativas.

Foram 13 anos para se tornar uma unanimidade no calçadão. Se antes ele tentava romper a indiferença com golpes de ternura, hoje recebe tudo de volta em acenos, abraços, afagos, apertos de mão e meneios de cabeça pelos mais reservados. Derrotou a indiferença que parecia inatingível no pódio dos corredores da orla. Você olha Arioste, o atleta gentileza, em ação e tem aquela surpresa. Imediatamente depois, você já sabe que tudo vai dar certo.

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Bala na Agulha

Ele já foi cobrador de ônibus, vendedor de picolé, garçom e até já foi Edvaldo; hoje é apenas Ed Bala e já planeja estrear como cantor de forró

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

A glória para Edvaldo foi ter o nome pronunciado como o quinto escolhido, entre cinco vagas para cobrador de ônibus. Depois de seis tentativas em recrutamentos de diversas empresas, enfim, ouviu o gerente dizendo o nome que parecia uma senha para a riqueza imediata: Edvaldo de Jesus Barreto. “Rapaz, fiquei feliz pra caramba. Todos os meus sonhos pareciam estar se concretizando”, enuncia o esfuziante cobrador, mais de 15 anos depois do episódio.

Ele não sabia, mas iria protagonizar o que seria o caso mais rápido de contratação e demissão da história do sistema de transporte público de Salvador. Dez minutos depois, o mesmo gerente o convocou para a sala, sozinho, pegou a pasta com todos os documentos necessários para a admissão, colocou tudo na mesa em frente, deu uma respirada de pêsames e disse de forma seca: “sinto muito, mas ficou decidido que você não vai fazer parte de nosso quadro”. Edvaldo primeiro engasgou, depois tossiu, começou a perder o fôlego, imaginou que nunca iria ter uma lanchonete, passou a mão na cabeça, sentiu o chão desaparecer sob os pés, percebeu que a sala estava toda rodando e teve a certeza de que aquele filme todo é o que acontece nos relatos de quem tem uma morte iminente. “Caiu tudo ali pra mim, negão”.

De vendedor de caldo de cana a artista multimídia: ralação recompensada

Como o chefe não queria ser depois acusado de um homicídio culposo, apenas esperou ele levantar com a aparência de zumbi operário e disse que tudo não passava de uma brincadeira. “Rapaz, eu pulava, me jogava no chão, comecei a gritar, chorei, puxei o cabelo do cara, fiquei maluco”, conta Ed Bala, uma espécie de agitador cultural multimídia, que de ex-cobrador nascido na periferia passou a garoto propaganda e debochado repórter de televisão em pouco mais de 10 anos, numa trajetória de obstinação e senso de humor. “Acho que naquela hora ele fez aquilo para eu perceber a verdadeira importância de um emprego”, minimiza o paciente de uma síncope da demissão prematura.

A pegadinha não foi a primeira e nem a única vez em que gozação e realidade se encontraram na vida desse exótico personagem de si mesmo. Apenas foi uma em que ele não era o ator, mas sim a vítima. Nascido em uma família simples do bairro de Pau da Lima, o irrequieto Ed não esconde que sempre quis morar no centro da cidade e, se possível, ficar no centro das atenções. Para chegar no palco eletrônico, vestiu primeiro os figurinos de vendedor de picolé, carregador de caminhão, garçom, animador de festa infantil e até mesmo mascote do Bahia, um boneco sorridente de cabeça grande com quem ele teve a idéia de dar cambalhotas na Fonte Nova.

O primeiro emprego formal foi aos 14 anos, como menor aprendiz no gabinete do secretário estadual de saúde. Ed chama o cargo de auxiliar administrativo, o que na prática significava levar correspondências pelo órgão, transportar documentos, receber processos e requisições dos contribuintes. Resumindo, era boy, que gostava de carimbar uns protocolos com a mulherada madura. “Na época, as coroas já conspiravam dizendo que eu seria galã de televisão. Acho que porque eu sempre fui branco dos olhos claros”, sugere, assumindo ares de galanteador da puberdade.

Estréia na TV

Ainda não tinha atingido a maioridade, quando estreou na tv de forma imprevisível em 1987. Estava no Campo Grande enciumado com a namorada, que foi abordada pelos diretores Ed e Pola Ribeiro, à procura de um rosto desconhecido para um comercial. Ela recusou por se achar sem perfil para a missão, mas recomendou o irreverente namorado. “Chamem que ele tem jeito para essas coisas”.

Assim, aos 17 anos, gravou o comercial para o cursinho Einstein. Era um texto que não exigia muito da incipiente capacidade cênica do jovem:

– E aí, passou no vestibular?, perguntava a atriz.

– Não, respondia ele.

– Por quê?

– Porque estudei.

– Como assim?

– Estudei em uma sala com mais de 400 alunos.

Aí entrava o texto explicativo sobre o Einstein – o cursinho genial – cujo máximo de ocupantes em cada sala seria de 80 estudantes. E Edvaldo, o suburbano ator, voltou para Pau da Lima divulgando a todos os vizinhos que iria aparecer na televisão. Passaram-se três meses para ganhar a fama de culhudeiro. Até que a propaganda começou a ser veiculada e ele se deu conta de como o acaso foi importante em seu destino. “Estava escrito nas estrelas. Eu nem costumava sair do meu bairro e no dia que fiz isso fui descoberto por Pola”, impressiona-se.

A história poderia terminar aí com a gênese de um grande sucesso juvenil das telas. Mas, aos 19 anos, terminou o contrato como funcionário público e passou mais dois anos desempregado. Só não ficava parado em casa. Vendia sonho e banana real na rua, se oferecia para descarregar caminhão de madeira, fazia trabalho de pintura de apartamentos, arrumou caixa de picolé para vender na praia, em uma hiperatividade de quem sabe desde cedo como é difícil se sustentar. Com 20 anos, percebeu que vender sanduíche natural dava dinheiro. Olhou para uma máquina de caldo de cana que um amigo tinha desativado e começou a imaginar aquelas engrenagens funcionando como moinhos de  sobrevivência financeira.

“Néu, você me empresta essa máquina, maluco?”

Néu emprestou e, junto com Mundinho e Jacobina, ainda deu o primeiro financiamento para que ele pudesse instalar um motor na geringonça. Assim surgiu a banquinha do Rango do Val, um apelido que o jovem Edvaldo não gostava, mas que achou de uma sonoridade boa para a freguesia.

Só que a vida não era doce como o líquido que escorria dos copos direto para as gargantas ávidas dos clientes. Precisava acordar de madrugada e tomar o primeiro ônibus para a Feira de São Joaquim, onde comprava cinco feixes de cana e ainda dava um trocado para um menino voltar correndo e levar para dentro do mesmo coletivo. Esse é o tipo de episódio de infância que muita gente que venceu na vida pode até relatar, mas contado por Ed Bala vira uma verdadeira odisséia de trapalhadas e dramas.

Faltava colocar em prática uma carga artística que tinha sido herdada do pai, o ex-animador de festas de largo em Pau da Lima. Para sustentar os seis filhos, seu Manoel Barreto, o Barretinho, transportava água no lombo de um jegue e distribuía nas casas das redondezas, uma espécie de vila primitiva. Durante o carnaval, ele conseguia uma verba na prefeitura para fazer a festa no subúrbio. O próprio Barretinho assumia o microfone na atividade que parecia ser uma realização pessoal. Até os 12 anos, o menino Edvaldo acompanhava aquele delírio mambembe, misto de cabo eleitoral e Chacrinha.

Sem energia

A falência do caldo de cana fora determinada pelo corte de energia do fornecedor informal do Rango do Val, que oferecia uma fiação em troca de alguns lanches de graça. Percebeu que deveria ter a sonhada carteira profissional assinada. “Fui procurar um trampo de cobrador de ônibus”, recorda. O resto de sua saga como rodoviário já foi relatado, menos a parte em que ele decide trocar a catraca pela coxia. Empolgado com o curso livre de teatro e a possibilidade de estrear na peça Noites Vadias, entrou numa roda viva em que largava os ensaios meia-noite e tinha que acordar às 4h da madrugada para entrar no primeiro ônibus que fazia a linha de Engomadeira. Depois de duas faltas, recebeu o conselho que largasse o teatro ou então iria ganhar um aviso prévio. Só que o desejo de estar no palco superava um contra-cheque de final de mês. Terminou demitido. E feliz.

Além do mundo cênico, começou outra empreitada no ramo da gastronomia. Inaugurou a lanchonete Ed Burguer – o império dos lanches -, segundo o próprio slogan que dominou os desejos dos moradores de Pau da Lima. Especializou-se na criação de sanduíches com nomes exóticos, como Ed Glú, Glú-Glú, X Có, Corococó. Interrompeu a ascensão como comerciante de delícias na periferia justamente porque a missão artística convocava. Em uma das apresentações, foi parar em Fortaleza com uma trupe que reunia até o hoje galã de telenovelas Vladimir Brichta, mostrado para o repórter em uma foto de recordação como um esquálido adolescente. Edvaldo decidiu que ficaria um tempo na capital cearense. Esse rápido encantamento durou não menos que um ano e três meses, período em que era uma espécie de guia turístico e humorístico de um show chamado Alegria Brasil.

Na volta para a Bahia, já não tinha mais apetite para tocar a Ed Burger e começou a ganhar dinheiro fazendo animações de todos os tipos. Em aniversário infantil, telegrama animado, feiras de convenções e apresentações em perna-de-pau, lá estava Ed, promovendo a festa. “Ganhei grana na época, consegui comprar uma moto CG, de 1987. Tudo na base da comunicação, né rei”, avalia o escrachado ator.

Amor de garçom

Só não faz gracejo nenhum quando fala da companheira Mabel, a quem teve de conquistar quando ainda era garçom e ela uma estudante universitária de classe média. Há uns 10 anos, ele servia as mesas na cachaçaria Alambique, no Pelourinho, e não se intimidou em procurar graça com aquela cliente vistosa. A morena hoje admite que não levou a conversa com muito bom humor e não estava nem um pouco interessada. Mas Edvaldo conseguiu uma brecha para mostrar algumas virtudes e terminou encantando a filha de um advogado, que não gostou nem um pouco do romance improvável.

Cantor de forró: carreira definitiva ou só experiência?

Ela, entretanto, usava o dinheiro da mesada para ajudar nos sonhos do parceiro e chegou a dar de presente de aniversário uma matrícula no curso para ator de propaganda ministrado por Rada Zaverutcha. “O que eu mais incentivei ele foi a ter um celular, porque percebi que estava perdendo trabalho pela dificuldade de ser contactado”, relembra ela. “Passei a admirá-lo. Um cara que saiu da pobreza em Pau da Lima e conseguiu vencer na vida como um batalhador”, elogia a mulher, que na semana passada, enfim, ganhou um cobiçado anel de noivado.

O casal mora junto no andar de baixo da casa dos pais dela, em Brotas, onde cuida dos “filhos” Jujuba e Pitu, um afável par de pitbulls. O sogro dele só deixou de torcer o nariz quando percebeu que o genro, aparecendo na televisão, deveria realmente ser bom no que faz. Para chegar a repórter de tv, fez uma fama relativa como garçom performático do restaurante mexicano Cien Fuegos, onde incorporava o personagem El Bigodon. Em uma psicodélica Festa em Quadrinhos, foi descoberto pela turma da incipiente TV Salvador e poucos meses depois já apresentava o programa Noite a Dentro. Em seguida, a atração mudou para De Ponta Cabeça e ele, enfim, consolidava o nome artístico que queimou pestanas para bolar. Era Edvaldo Barreto, depois Edvaldo de Barreto, pensou até em Ed Bach, mas só depois de um brainstorming de letras e conceitos chegou a Ed Bala. “Se encaixa perfeitamente comigo, porque sou um cara meio espoleta. Atingiu em cheio o alvo que eu queria”, explica.

Fora de programas de televisão desde 2004, tornou-se garoto-propaganda da Comercial Ramos. Recentemente, lançou um site pessoal (www.edbala.com) com fotos, músicas e um trecho da biografia, que pretende transformar em portal de humor e civismo. “Vou colocar notícias de iniciativas culturais das comunidades”, promete. Mais urgente é seu projeto de virar forrozeiro do gênero irreverente, prometendo não apelar para a baixaria. Ele é o líder da banda Bala N´agulha, que deve regravar sucessos de Genival Lacerda e outros nomes consagrados do ritmo, como Luiz Gonzaga, mas também lançando composições próprias.

A médio prazo, Ed Bala acha que tem um espaço no universo artístico do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Mas ainda este ano pretende executar dois projetos. O primeiro é ter um monólogo de humor, um estilo chamado nos EUA de comédia standup, em que vai emendando experiências pessoais com crônicas de costumes. O outro é iniciar uma série de palestras nos bairros periféricos contando toda essa história de superação, em uma espécie de lição de auto-ajuda ao vivo, em 60 minutos. “Talvez, minha trajetória sirva de exemplo para essa moçada. Acho que o conselho principal é que é preciso arriscar, não pode ficar naquela miguelagem”, ensina. É o tipo de ensinamento que, depois de tanta aventura, ele não precisaria passar por faculdade para dar. Mas agora é hora de dar ração para Jujuba e Pitu e o melhor é ir embora, que eles não estão achando graça nenhuma.

* reportagem produzida em maio de 2006

A última subversão de Big Ben

Aos 66 anos, Waldir Serrão, o roqueiro mais longevo da Bahia, continua sua cruzada – quase solitária – contra pagode, axé e arrocha


Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

O mais gentil aposto que o roqueiro Big Ben costuma aplicar a qualquer iniciativa ligada a pagode é dizer que “não se trata de música de gente”. Sob

Com quase 70 anos, Big Ben continua roqueiro na ativa

re axé music, ele considera uma forma primitiva de fazer som em três acordes. Mais recentemente, Big Ben faz uma cara tão cinza como seus cabelos quando ouve falar de um negócio chamado arrocha. “É lixo sonoro da pior espécie. Prefiro ouvir uma serra elétrica em funcionamento”, dispara.

Com sua estatura diminuta, seus cabelos grisalhos e uma pinta escura na bochecha esquerda, tem aquela aparência de decano das artes plásticas, como se fosse um Calasans Neto à procura de marchand. Mas quando abre a boca, Waldir de Oliveira Serrão mostra que não fossilizou uma inquietude juvenil mesmo aos 66 anos de idade.

Meio século atrás, quando criou um fã-clube de Elvis Presley, junto com um menino de 12 anos chamado Raul Seixas, ele impôs o nome – e depois o apelido notório – na enciclopédia cultural da Bahia. Big Ben é uma tradição artística baiana, mesmo contra todos os estereótipos nagô para exportação.

Sabe que é odiado pelo grupo dominante do mainstream musical, produtores e empresário que podem chamá-lo de “ultrapassado” ou “maluco” com a mesma versatilidade com que mudam a banda protegida do pagode para o arrocha. “Eles me criticam, mas não sabem o que é uma banda como Eagles, Earth, Wind and Fire, nem conhecem a casa de Elvis, em Memphis, no Tenessee”, esnoba.

Os 66 anos de rebeldia de Waldir Serrão são regulados por medicamentos de tarja preta receitados por psiquiatra. Isso não é tanto segredo para alguém que incorpora o conceito de “maluco beleza”. O estigma de pioneiro é sustentado por ter sido o criador da primeira banda de rock que se tem notícia na Bahia, Waldir Serrão e seus Cometas, em 1957. Dois anos depois, comandava o programa Só Para Brotos, na rádio Cultura.

A transformação em Big Ben só ocorreu em 1967, uma paródia ao carioca Big Boy. O

Na juventude dourada, Waldir (à esquerda) ao lado de Raulzito

baiano era nada menos do que o lendário sino inglês acordando todos do marasmo musical.

Na década de 60, transformou o Cine Roma no quartel dos alternativos, o Templo da Juventude, fazendo as matinês de rock, ritmo proibido de dançar pelas garotas. De 1972 a 1984, comandou o Som do Big Ben, nas tardes de sábado da TV Itapoan. No tempo em que disputava com Chacrinha a preferência dos telespectadores nas tardes de sábado, Big Ben virou atração nacional. Chegou a ser jurado do show de calouros de Sílvio Santos, depois de se destacar como um dos maiores divulgadores do Baú da Felicidade. Na bancada, descobriu em pouco tempo que o fermento da polêmica quase sempre faz crescer o bolo da popularidade imediata. “Eu discuti com Pedro de Lara, dizendo que ele não entendia nada de música”.

Na época de seu sucesso televisivo, assediado e bajulado, recebia pedidos de artistas baianos e brasileiros. Lembra de um jovem chamado Luís Maurício, que chegou na porta da TV Itapoan com uma guitarra bem usada e uma aparência de andarilho e anos depois vestiria roupa de playboy e adotaria o nome de Lulu Santos.

Muitos candidatos a talento vindos do interior chegavam com cestas de coco, cacau, ou laranja para oferecer em troca de alguns segundos de fama. Big Ben preferia aceitar a oferta para ocupar cargos de assessoria de imprensa das prefeituras, serviço que, a rigor, não ocupava muito do seu tempo. Bastava viajar até a cidade, ficar dois ou três dias desfrutando da hospitalidade local e trazer consigo alguns bilhetes para ler durante sua atração de sábado. Estava bem pago o seu ordenado.

Baú de lembranças

Esse baú de lembranças é reaberto – e dele saem fotografias em preto e branco para exibir Big Ben e as bigbetes – justamente para mostrar como há uma certa ingratidão em ver o ícone sacolejando em ônibus coletivo, quando os seus rivais que não produzem cultura dirigem carros importados com ar condicionado e película solar nos vidros. Big Ben continua usando suas blusas florais e garantindo um sustento por causa de uma pensão pouco maior do que um salário mínimo, desde que, há uns oito anos, conseguiu “se encostar” por invalidez.

Quando ainda morava no bairro aprazível e poético de Stella Maris, colocou o transmissor à serviço de uma rádio comunitária no bairro. A Stella FM só tocava rock, como era de supor. Precisou mudar de endereço porque o senhorio tomou o prédio de volta. Seu ninho de recordações em vinis e fotografias sem cores agora fica à rua Professor Lustoza, em Itacaranha, no subúrbio ferroviário, a quase 30 quilômetros de Salvador.

Sua metralhadora giratória está parada em um alvo único. Decidiu que não vai deixar o chamado movimento arrocha tomar conta da Península Itapagipana. Nascido na Boa Viagem, Big Ben considera que o perigo musical é quase tão devastador como a pesca com bomba que aflige a região. Aliou-se ao parceiro Laudelino Celestino, o contrabaixista de sua banda há quase 40 anos, na ONG Pôr do Sol, na prática uma entidade cultural eminentemente roqueira.

O galpão onde fica a sede abriga a rádio comunitária Beira Mar FM (106,1), mas também é o centro cultural de shows quinzenais com guitarras distorcidas e cantores que fazem a voz tão potente quanto uma bateria. Big Ben é mestre de cerimônias e agitador das festas. “Ele é uma lenda viva, que abre portas”, justifica Lauzinho, como é chamado pelo amigo. O próximo plano é fazer um palco móvel em uma balsa e convidar artistas como Jerry Adriani, Ultraje a Rigor e Marcelo Nova para um show no mar. “Isso vai ter repercussão nacional e eu já falei até com Pitty, ela disse que vem”, alardeia Big, sobre a baiana que é o meteoro do rock no Brasil.

Os delírios de grandeza de Big Ben vão além do apelido, que não faz justiça aos seus 1,63m de altura. Ele planeja o lançamento de um DVD até o final do ano (embora não tenha um roteiro para isso) e até um canal de televisão, que ele diz ser no modelo da TV Assembléia, só voltado para as classes C e D. Tudo é projeto que depende de “Deus ajudar e a política no ano que vem também”.

Entra em beco

Há pouco mais de 10 anos, Big Ben investiu sua indignação contra ninguém menos que o hoje ministro Gilberto Gil. Este gravara, com grande repercussão, a música Madalena (entra em beco/ sai em beco/ há um refúgio Madalena) e registrara a letra como de domínio público. Waldir Serrão alegou que a canção era dele e de Isidoro Oliveira. Procurou a justiça para conseguir os direitos autorais. “Levei o compacto em que ela está gravada. É uma música que eu fiz como crítica social”. Até hoje, não conseguiu provar que é um dos autores da música. “Hoje, a viúva de meu parceiro recebe os direitos autorais”.

Aos pauteiros jornalísticos, uma recomendação direta. Não indiquem ele apenas como fonte de reportagens sobre o rock. Big Ben sabe quase tudo sobre cinema, mesmo sem ter uma formação além do segundo grau. É tudo acúmulo audiovisual de sessões intermináveis ao lado de Raulzito, quando entrava numa sala às 10h da manhã e podia sair mais de 10 horas depois.

Do primeiro casamento, teve dois filhos: Elvis (uma natural homenagem ao rei do rock) e Silvia (inspirada no nome de uma de suas músicas de maior sucesso). Não é que o primogênito também se interessou por esse negócio de música? Nos momentos em que não trabalha como gerente de uma unidade do Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAB), o Elvis Serrão é cantor gospel. Segundo o pai, tem a melhor voz da família, mas é capaz até de achar que esse negócio de rock é coisa do satanás.

E continua provendo suas necessidades com os shows, numa periodicidade tão casual que fica difícil acreditar no faturamento. Os mais recentes foram no Dia do Rock, 13 de julho, em Camaçari, e um pocket-show, na Saraiva Megastore do Shopping Salvador, em 21 de agosto. O próximo, ele não tem nenhuma previsão de quando será. Com um microfone nas mãos, Big Ben modula sua voz à altura de um estandarte cultural. Com sua carteira de passe livre às mãos, ele tem direito a uma entrada no ônibus e vai até onde quiser. Só não pode voltar ao ponto exato onde deixou de ser o grande Big Ben para virar uma excentricidade.

O encantador de pombos

Alberto Nascimento está desempregado, mas junta migalhas de seu dinheiro para dar de comer aos pombos

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Essa história vai começar bem aqui, no Paço Municipal, entre pássaros e gente, com o gesto amável, sensível e mudo de alimentar pombos no meio do povo, e vai terminar lá numa viela do Cabula V, em frente a um sobrado para abrigar quase 10 famílias, com uma apresentação tardia que vai aparecer pousando do nada na história. Aquele rapaz não tem nome, apenas o título de alimentador de pombos, semeando no chão de pedras migalhas de pão e milho que fazem as aves descreverem o caminho inverso ao natural de cada vôo: elas vêm de cima para encontrar a comida no solo.O gentil Alberto se curva para alimentar os pássaros

Aquele homem de calça de brim, sapatos com solado torto de quem anda muito, camisa quadriculada suada e fisionomia de deleite não liga pra toxoplasmose, nem se o sol está quente demais para ficar 20 minutos sem sombra ou se toda vez que ele joga o pão um pirralho corre para espantar os pombos. Ele apenas cumpre o ritual que se tornou uma espécie de terapia: do Pelourinho ao Campo Grande, passando por Praça Municipal, Praça Castro Alves e Piedade, ele vai a cada dois dias prestar a solidariedade alimentícia aos símbolos alados da paz.

O gesto de candura ornitológica não é inédito e pode ser enquadrado na paisagem do cotidiano como um equivalente ao do aposentado que não se descuida de regar umas orquídeas no Dique do Tororó, ou a dona de casa que se entretém dando uma ração especial aos peixes no Campo Grande. Só que para Alberto Souza Nascimento, divorciado, pai de cinco filhos com três mulheres diferentes, 37 anos, primeiro grau incompleto, o passatempo ganha uma dimensão de promessa.

O homem por trás do anônimo alimentador de pombos está sem trabalho há quatro meses, só conseguia dinheiro para comer e pagar o aluguel por causa do seguro-desemprego e mesmo assim não abdicou de sair todo dia de seu bairro para percorrer 15 quilômetros até o Centro levando os mantimentos aos seus bichos de estimação. “É uma espécie de diversão para mim. Sinto-me tranqüilo nessa hora”.

Alimento de alma

Liberado do emprego como auxiliar de serviços gerais num condomínio de classe média, Alberto, o escapista, iniciou a peregrinação por um trabalho e descobriu o hábito de alimentar pombos em um senhor no Campo Grande. Perguntou ao mestre como ele poderia fazer o mesmo e não parou mais. Aliás, ele está prestes a interromper o seu vôo solo de reverência às aves. Sem dinheiro para sustentar as próprias necessidades, ele abdicou do passeio diurno pelo Centro Histórico porque não suportaria chegar para os pombos com as mãos literalmente abanando.

A meta mais objetiva para ele, que tem a escolaridade depenada, é conseguir uma colocação como repositor de mercadorias em estabelecimentos, ou servente, ou jardineiro, qualquer coisa que exija um mínimo de perspicácia sem a necessidade de um nível escolar apurado. Pensando que a sorte pode bater asas à sua frente a qualquer momento, Alberto já anda com todos os documentos em uma carteira surrada: carteiras de trabalho, de identidade, de reservista, título de eleitor e atestado de antecedentes criminais.

Ultimamente, vendia cosméticos para faturar o mínimo da sobrevivência. Desodorantes, cremes e óleos para massagem de marcas desconhecidas eram a matéria-prima de seu ofício itinerante de mascate. Um frasco do chamado “doutorzinho” pode ser comprado na mão dele por R$8. O cubículo onde mora há quatro meses (aluguel de R$100) é um vão que separa uma porta e uma janela a quatro passos de distância.

Para os desavisados, entrar no local exatamente no mormaço vespertino é uma experiência de impressões fortes. O calor da pequena estufa que serve de quarto, cozinha e banheiro, é sufocante. Pior é o aroma indecifrável com cheiro de suco de maracujá e carne frita no óleo e calça jeans suada de três dias e resto de água sanitária e tudo que se aglomera no minúsculo lar de um homem solitário. Um colchão fino e puído, um fogão sobre as bocas tapadas por duas frigideiras sem lavar, uma fruteira com os compartimentos de cima tomados por dois frascos de desodorante, um radinho de pilha, um bloco de anotações e um telefone celular, e os de baixo com três aipins, algumas cebolas e dois pimentões, compõem o resto da decoração.

A vida de privações é confortada por livros cujo conteúdo diz aquilo que seus anseios de integrante da Assembléia de Deus querem ler. Espírito Santo – o Deus que vive em nós, do pastor e psicólogo Caio Fábio, e Medo, do missionário RR Soares, são as únicas obras no espremido lar. Ambos os autores são ídolos para o evangélico, que chegou a fundar a própria igreja, em uma experiência que não decolou direito. Em um espaço alugado no próprio Cabula, ele deu início aos cultos da Congregação Pentecostal Roda de Fogo. A freqüência de participantes ia de 50 fiéis a apenas dois, a depender do dia.

A pretensão a pastor fora o aprimoramento de um tempo como obreiro de igreja (“minha vocação é pregar a Palavra do Senhor”), mas não foi adiante por causa de dificuldades financeiras. “Tudo obra do Inimigo. Foi minha época de problemas familiares, sem poder pagar pensão e sem poder pagar o aluguel do templo”, reconhece, falando sobre um galpão com dimensões de um cômodo.

Andar com fé

Para atrair mais crentes para sua instituição, ele confessa que sempre levava aos cultos únicos, à noite, pão com manteiga e café. Alimentava os fiéis que normalmente chegavam da estafante jornada diária de trabalho, como hoje leva a comida para as aves do Centro. Parece ter trocado o rebanho de almas, pela revoada sem altar e sem gaiola.

A devoção cristã do adestrador de pombos só não fica exatamente explicada quando se percebe que na entrada do seu quartinho, um pouco de lado, em estratégica posição de esconderijo, um pires com uma vela acesa totalmente cercada de um arroz cozido. “É apenas para proteção”, explica, um pouco desconcertado, como quem é pego em flagrante de adultério.

Ao final de uma entrevista com tantas revelações sobre aquele que era um anônimo no calçamento colonial, mais de uma hora de conversa, contato telefônico, carona e tudo, o encantador de pombos despede-se com a pergunta definitiva ao repórter: “qual é mesmo o seu nome?”. Depois da resposta, ele se dá por satisfeito, como se não tivesse contado nada sobre sua vida: “e eu sou Alberto, muito prazer”.

Rainha das quinquilharias

Ada Tem de Tudo, pseudônimo de Iraci Brandão Cajado, comercializa antiguidades e miudezas no seu museu de novidades

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Ada Tem de Tudo está a cada dia mais empreendedora no comércio de quinquilharias, objetos cujo valor muitas vezes não passa do sentimental, peças que para muitos não são mais do que entulhos da sociedade de consumo. Na rua do Gravatá, uma zona no centro de Salvador ladeada por sobrados históricos – alguns em ruínas -, onde violência e degradação convivem numa perversão urbana, ela já abriu três lojas praticamente vizinhas, onde oferece nostalgia em bugigangas.

Oficialmente, seu ramo é o de antiguidades, mas vamos direto para o popular: “Ela é a rainha dos cacarecos”, resume o enteado Elias, que trabalha como vendedor em uma das lojas e, como se vê, não é muito de meias palavras. Ada é imperadora de um território do pretérito, cujas fronteiras estão delimitadas por um gramofone não usado há quase 40 anos, ou uma cristaleira com cheiro e aparência de casa de vó. São objetos jamais vistos por muitos adolescentes da geração internet e que delimitam novas dimensões do espaço-tempo-custo: um telefone preto antigo de disco por R$400, qualquer volume da enciclopédia Delta Larousse por R$10, um LP de Julio Iglesias ou de Ray Conniff, de 1980, por R$1.

A bolsa de valores é toda determinada pela cotação da dona. Seus índices se baseiam na possibilidade de um lucro em cima da peça e na presunção de uma idade que muitas vezes o objeto não tem. Se muitas de suas peças são mais valorizadas pelo tempo de fabricação, o mesmo não se pode falar da proprietária. Ela não divulga a idade nem sob ameaça de penhora do seu museu de grandes novidades.

Iraci Brandão Cajado – ela revela o nome do qual não é muito fã, mas não o motivo do apelido Ada – começou nesse ramo há quase 25 anos, na década de 80, e ela diz de forma jocosa que era uma bebezinha. Como funcionária do Antiquário San Martin, na rua Ruy Barbosa, passou a se interessar pelo assunto. Depois de sete anos, abriu a própria loja, sem o mesmo requinte do antigo patrão, comprando qualquer coisa que lhe aparecesse como oferta de outrora. Entre os objetos dessa fase, um pinico de louça já tem 15 anos e hoje serve como lixeira. A foto de uma ânfora gigante, maior do que um adulto, provavelmente feita na China é o que ela usa para mostrar a aquisição mais exótica que já passou por ali. O objeto que proporcionava uma visão realmente suntuosa foi vendido por mais de R$ 10 mil.

Depósito de tralha

Em 17 anos de negócios, as mercadorias foram se entulhando ao ponto da matriz ficar pequena para tanta tralha. A primeira filial foi aberta três anos depois e também se tornou um depósito impraticável para o trânsito de clientes. Ada abriu neste mês a terceira loja no mesmo quarteirão com o dobro do tamanho da segunda e mesmo assim ainda ficou faltando espaço. “Tinha peça lá dentro que há 15 anos eu não via”, revela, dando a noção do grau de desarrumação. “Antes, no espaço para colocar 20 peças, tinham 500”. Depois do mutirão para a faxina, ela diz que tudo está um legítimo show room. Só que o ambiente relativamente clean que a loja virou ela não considera inteiramente favorável para o negócio. “Quem gosta dessas coisas, gosta de bagunça”.

A freguesia é formada por decoradores, colecionadores, artistas plásticos. A psicóloga Ana Luzia Outeiro chega no início da noite de sexta-feira trazendo um amigo para conhecer os itens do arquivo. “Eu sou cliente há muito tempo e faço questão de divulgar para os outros”, vibra Ana Luzia. Ultimamente, Ada tem sido visitada por uma classe que chama de novos-ricos. Eles buscam bibelôs atemporais, como uma imagem do Menino Jesus com não mais do que 15 centímetros de altura, oferecida por R$ 200. “Isso é valorizado porque deve ser de 1900”.

Ao ser perguntada sobre o artigo mais caro em seus domínios, Ada ensaia uma indignação calculada. “Caro? Não, aqui nada é caro”, responde ela, que dá o preço e coloca o valor em etiquetas adesivas. “Analiso pelo olhômetro e pela convivência. Não sou museóloga, mas tenho a faculdade da vida”.

Sobre relógios de parede, ela conhece um pouco mais. Mostra um do estilo oito e garante que todos os fazendeiros da Bahia nostálgica do século passado tinham o seu. Um relógio do tipo Capelinha, com duas cordas, custa R$450. Até esterilizador de ar faz parte do armazém de souvenirs depreciados. O observador um pouco mais atento e sem rinite alérgica para suportar poeira pode encontrar lustres de cristal e algumas jurássicas máquinas de datilografia, até pneu de trator e projetor de cinema.

Ética de antiquário

Para manter um tão eclético estoque de artigos pitorescos, Ada conta com o olhar experimentado para saber o que é vendável, assim como o jornalista precisa ver logo o que é notícia, e o político fica atento ao que é factóide para gerar votos. Ela garante que qualquer oferta que recebe faz questão de ir checar na casa do cliente (“vou em qualquer lugar na capital, interior, sítio, fazenda, village, veraneio, e só chamar que eu vou”) para verificar se é aquilo mesmo que está procurando. Mesmo quando não é, ela diz, marota, que sempre compra alguma outra coisa pra não voltar sem fazer negócio.

Só comprar em residências é uma espécie de código de ética nesse ramo, onde muita gente é capaz de oferecer produtos roubados ou de procedência duvidosa. “Pode ser um funcionário de uma casa que pega algum bem porque foi demitido, ou até um filho que é viciado em drogas”, diz Ada, para quem isso é uma imposição da profissão. “Isso se chama cautela”.

Sua outra transação predileta é a troca, um escambo de coisas velhas. “Às vezes, troco um ovo por uma boiada. E vice-versa”, diz a praticante da Lei de Gerson, para a qual o importante é que todos levem vantagem em tudo. Nem o funcionamento normal da loja está livre dessa ânsia de atender aos clientes. A abertura de segunda à sexta é das 8h às 19h, no sábado, das 8h às 14h. “Domingos e feriados, é só ligar que eu venho”, antecipa Ada.

A vida de uma família terminou girando em torno de miudezas e bugigangas. Ada tem um casal de filhos e a mais velha, Carolina, de 12 anos, com sonho de ser atriz e jornalista, coleciona moedas antigas. Sua paixão pela numismática alcançou 100 itens. Já a mãe não se sente à vontade de levar as peças que vende para decorar a casa. “Já convivo tanto diariamente, senão eu perco o fôlego”, explica. Falando em coisa antiga, vale até recuperar o batido adágio de casa de ferreiro, espeto de pau. Só que, no caso dela, aquele antigo gramofone até que ficaria bem na mesa da sala em jacarandá.