Profissão: fiscôla

Eles se espalham por banheiros públicos para saciar o prazer de averiguar o pau alheio

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Sim, eu precisei ser fiscôla durante uma semana, mas com tamanha falta de vocação que se fosse uma profissão regulamentada, regida por um conselho, teria meu registro cassado em tão pouco tempo que o acesso a qualquer banheiro vagabundo de churrascaria de beira de estrada seria vetado. “Nos termos da lei, de acordo com convenções de ética e normatização, a saber, averiguar, medir, encarar, fazer carinha de quem está se deleitando e ainda se oferecer para ajudar na balançadinha, o senhor está formalmente destituído do cargo de fiscôla”.

Ser fiscôla, ao contrário de uma profissão, é uma vocação, algo como uma arte, como Michelangelo não precisou de faculdade para esculpir e nem Cuíca de Santo Amaro alisou banco de universidade para destruir reputações com sarcasmo e rimas de memorização rápida. Para motivos de apresentação, fiscôla é o nome carinhoso de um popular personagem da crônica social contemporânea: o fiscal de rola. Se você não conhece e nunca ouviu falar, sorte sua.

São despudorados que ficam ali inertes, dando olhadas para os lados enquanto fingem verter água (como diziam os velhos machos sertanejos). Ficam se massageando por minutos. Se houver cinco ou seis mictórios livres distantes de você e mesmo assim ele chegar ao seu lado, como se o resto estivesse ocupado e apertado, pode crer, é fiscôla. A definição de fiscôla não é feita a partir de uma mera observação empírica ou arbitrária para saber se alguém passa mais tempo do que o necessário em ato de micção contemplativa. É um feito comprovado pela ciência a partir de uma combinação de experimentos e pesquisas.

Sabe-se, por exemplo, que o volume máximo suportado pela bexiga humana é de 500 ml. E que um fluxo urinário menor do que 15ml/s já é indicativo de alguma obstrução da uretra ou falha no aparelho excretor. Nesse caso, 35 segundos seria tempo suficiente para executar o serviço sem maiores envolvimentos emocionais, com a frieza de um magarefe dilacerando vísceras bovinas, ou como o tenista Roger Federer ganha mais um torneio de Grand Slam. Mesmo assim, vamos dar uma margem de erro de 90 segundos regulamentares entre abrir o zíper e dar a última balançadinha. Passou de um minuto e meio, pode ter certeza, é fiscôla.

O fiscôla típico renega o olhar oblíquo que se estabelece na troca de uniforme de um time de futebol, aquela coisa meio envergonhada de quem não quer fitar diretamente o objeto da curiosidade. O fiscôla padrão tem o olhar reto e olímpico. Ele encara como se tivesse autoridade completa do ato e errado fosse quem quisesse se ocultar. O banheiro do 2° piso do Iguatemi é uma espécie de Meca da fiscôlagem. É um dos mais mencionados nas ligações anônimas para a Rádio Metrópole, ou sempre que o tema é suscitado em uma roda de meia dúzia que invariavelmente se dizem ofendidos com a atitude.

 
Um mijante solitário: vítima preferencial de um fiscola saltitante

Não há estatísticas confiáveis sobre a quantidade de fiscôlas dispersos pela capital baiana. Apesar de terem uma função fiscalizadora, não estão reunidos em entidade de classe. Vagam espalhados por banheiros sem uma rota de migração explicável. Voltaram ao banheiro do terminal rodoviário desde que a taxa de utilização (coisa de 50 centavos por uma mijadinha) deixou de ser cobrada. Naquele espaço, a existência de um tipo ainda mais inusitado: o fiscal dos fiscôlas.

É o funcionário que passa meio expediente sentado em um banquinho defronte ao átrio de mictórios, como se estivesse ali para auxiliar qualquer demanda urgente. Mas não, a real função dele é intimidar a ação invasiva dos delinqüentes visuais. Fiscôla é bom para olhar, jamais para ser olhado. O fiscôla pode não se considerar viado, exerce seu papel social sem ter traumas de masculinidade.

Para M. Carlos começou com a curiosidade de medir o pau dos outros na adolescência. Hoje, adulto, pai de um casal jovem, age como um hobby. Visita banheiros com o olhar por vezes milimétrico, já que não pode usar uma trena, prefere exercitar a capacidade de avaliar tamanhos e formas por meio de analogias: aquele parece um desodorante feminino, este fica mais para um churro pela metade.

A atuação deles geralmente é negada, mas no Iguatemi um segurança faz ronda a cada 20 minutos na porta do banheiro para verificar a normalidade no local ou se alguém esqueceu do mundo cá fora. Um gordinho no Shopping Barra só falta criar um crachá pra si mesmo com a inscrição:fiscôla oficial do perímetro. Ele cerca os usuários do WC com a vigilância de um perdigueiro farejando saciedade.

 

Fiscolando em alta

Banheiro do 3° piso do Shopping Piedade, bem vindo à fortaleza da fiscôlagem. Ou, a depender de quem olha, à visão do inferno. Quem entra num momento de mais empolgação, se assusta e lamenta ter deixado tanta cerveja acumulada para um único jorro de despedida. Alguns saem fugindo indignados, outros rindo da própria sorte. A arquitetura do espaço de 3,5m² com oito mictórios dispostos em duas fileiras de três e de cinco é, por si, uma sugestão de fiscôlagem. Algumas vezes, os cinco vasos ficam desocupados enquanto os outros três são disputados por ávidos observadores.

É mais assustador, por exemplo, ao se deparar com um rapaz manuseando o pau com um ritmo de fabricante de argila, naquilo que os fiscôlas chamam delicadamente de “esmerilhar” a pica. Mantém o membro em uma consistência “pururuca”, que é um estado físico de quase ereção, em que não se observa a flacidez de um marshmallow e nem a rigidez de uma vela de sete dias. É uma morfologia intermediária, tipo uma mangueira de gás.

Este é representante legítimo da categoria do Performático Apreciador de Olhares ou, simplesmente, o PAO. O auxiliar de serviços gerais que pega o turno de tarde e fica até às 22h convivendo com toda a silenciosa troca de olhares é como uma mulher sinuosa em pé num coletivo lotado, tamanho o desconforto que demonstra. Val, o apelido pelo qual prefere ser chamado, não aparenta tanto asco na hora de recolher o papel higiênico usado de um balde como quando entra e se depara com os olhares gulosos no mictório. “O pior é quando estão se pegando, aí tenho que chamar o segurança”, resmunga ele, um moreno magro de quase 30 anos que outro dia recebeu uma proposta no banheiro e quase responde na força bruta.

O formando em jornalismo pela Faculdade Jorge Amado, Tedson Souza, encarou a selva de azulejos e porcelanato por vontade própria para finalizar um trabalho de conclusão de curso sobre sexo público. A escolha de uma série de reportagens de rádio o levou a descobrir que alguns locais se tornam guetos de devassidão: da fiscôlagem, os mais atrevidos passam à prática. “Geralmente são homens casados, até com filhos, que vão nesses locais para extravasar o desejo reprimido pelo preconceito”, sugere Tedson, que descobriu uma comunidade no Orkut chamada Clube do Banheiro SSA para troca de confidências e experiências. No fórum, os redutos mais cotados atualmente são do Iguatemi Businness Flat, avaliado como discreto e limpinho, e do Bompreço do Chame-Chame, onde “rola de tudo na madrugada”, segundo os freqüentadores.

 

Aproveitadores de escada

Investigadores do cacete alheio fazem parte de um segmento voyeurístico cujo correspondente feminino engloba os aproveitadores da escada. São aqueles pós-adolescentes que se reuniam no ângulo privilegiado do térreo da Faculdade de Comunicação da UFBA para averiguarem toda a semiótica contida na minissaia de uma caloura indo para a aula no segundo andar. Ou no Salvador Shopping, onde as escadas translúcidas parecem ideias para esse tipo de observação. Dentro do vestiário esportivo de um clube no Costa Azul, outro dia, um nadador desautorizou o instrutor de tênis a usar o chuveiro no box ao lado. “Amigo, não ligue esse aí não porque vai deixar a água fraca aqui”. Seria um simples aviso de alguém que não quisesse ser prejudicado em uma ducha quente. Bastou um complemento de frase para revelar-se mais do que alguém tentando livrar-se dos odores de uma sessão de treinos ou do cloro impregnado no cabelo. “Você pode usar esse chuveiro aqui da frente”. Na visão do instrutor, o candidato a atleta queria que ele fosse para o vestíbulo bem na frente dele, onde oferecesse uma visão completa do material. “Eu maldei logo que era viado”. Poderia ser o caso não de homossexualismo, mas de um fiscôla aflorando. Magari é o apelido de um fiscôla assumido na cidade de Nazaré das Farinhas. Não se identifica para não atrapalhar o trabalho em uma empreiteira, onde já chegou a reunir mil homens em uma obra (“e só três mulheres, eu era uma delas”, diverte-se). Ele se sentia como se estivesse em uma Disney da fiscôlagem, quando boa parte ia para o vestiário em fim de expediente. Aí, fiscôlava em alta.

Percebia que alguns fitavam a cintura alheia com uma boa dose de interesse disfarçado. Depois, ia investigar e descobria que o cidadão era bem casado, pai de filhos. “Esses são os curiosos”.

A diferença dele para a maioria dos fiscôlas é que é bicha declarada, embora tenha uma ética própria no trato com os relacionamentos. “Mais vale uma amizade na mão do que uma penetração”. Ele é uma espécie de fiscôla ideológico, um xiita em termos de voyeurismo peniano.

Uma intervenção entrou para a antologia da crônica esportiva na Bahia. Um fotógrafo contemporâneo, depois representante de associação de classe, aguardava o final das partidas como o momento mais sublime do que o gol. Era a hora de ir para o vestiário da equipe vencedora, ver todos aqueles atletas de alma e prepúcios lavados, a pretexto de finalizar o trabalho, como se fosse do interesse público fotografar o vestiário.

O fiscôla, não com esse nome, é uma entidade que ganhou a internet por um vídeo de uma apresentação de stand up comedy do pernambucano Murilo Gun. Na esquete sobre os constrangimentos em um banheiro masculino, ele conta a dificuldade de lidar com os vizinhos de mictório sem ser considerado “fiscal de rola”. Nesse momento, a platéia delira com a lembrança.

Um fiscôla de camisa regata entra no banheiro do Iguatemi seguido por um rapaz com gel no cabelo em formato moicano. Há mictórios livres, mas os dois se posicionam lado-a-lado. Fica olhando de baixo pra cima em diagonal e depois passa a olhar desconfiado para trás, procurando perceber se alguém está espionando. Sim, ele está sendo observado em seu ato de observar, mas até com certa piedade.

Sim, porque alguns momentos, eu tive que me tornar fiscôla, por isso uma certa solidariedade aos meus pares. De tanto entrar em banheiro, terminei confundido com um dos que seriam investigados. O diálogo absolutamente surrealista foi inevitável com um segurança na porta do WC do Iguatemi:

– Senhor, por gentileza…

– Não é bem o que você está pensando, eu…

– Senhor, eu não sou pago pra pensar, apenas preciso limpar a barra. Há lugares próprios pra isso.

– Mas eu tô fazendo um trabalho…

– Tudo bem, o senhor pode considerar trabalho e tal, mas já é a quarta vez que o senhor entra aqui em 20 minutos. Aí já é trabalhar demais.

– Não, meu velho, é uma reportagem, você pode, inclusive, me ajudar com ela.

– Não, muito obrigado. Prefiro ficar de fora.

– A reportagem é sobre fiscôlas.

– Fiz o quê?

– Fiscôla, fiscal de rola, que vai pro banheiro público olhar o pau dos outros.

– Ah, sim. Hummm… o senhor tem certeza que está feliz com isso?

E com essa dúvida a reportagem termina, não sem antes um comentário de ordem da higiene pessoal. Impressionante é perceber que pelo menos metade – eu reitero, metade – dos caras que saem do banheiro público passa direto pela pia, como se a torneira fosse tóxica. Quer dizer que de cada 10 usuários, cinco vertem água sem lavar as mãos depois. E eu tenho certeza que pelo menos um destes já lhe deu um cumprimento de mão bem apertado depois de manusear o pau. Mas isso já é uma outra história.

*publicada em junho de 2008, na Revista Metrópole