OPACO

Mais vale uma esquadra de homens coloridos

do que um exército inteiro de pálidos

GENGHIS KHAN

Ficou ali por alguns 35 segundos, a mão esquerda apoiando a cabeça, olhando para a unha roxa do polegar direito, até ser gritado pelo motoqueiro que passava em uma fúria de não sei quantas cilindradas: está verde, filhadaputa… Só deu pra ver naquele ângulo o tênis encardido e mais à frente o capacete rosa na cabeça.

Esses merdas agora deram para usar rosa, pensou, antes de descarregar um pouco da raiva no acelerador. Quando imaginou comprar um carro que lembrasse a tonalidade de um caminhãozinho amarelo-ovo que teve na infância, sabia que essa cor só seria respeitada no trânsito se fosse um importado de, no mínimo, 200 mil. Podia ser um esportivo rebaixado para apenas dois ocupantes, ou um utilitário extravagante, com telas de DVD atrás dos encostos das poltronas. Mas tinha que ter uma aparência de 200 mil e foi assim que se deu um presente de criança aos 52 anos de idade.

Até a chegada da curva eu alcanço ele, calculou, mas isso é quase um pensamento de psicopata. Tinha certeza que se o volante estivesse nas mãos de Bruninho a reação imediata seria essa. Bruninho é o menino que trabalha na máquina de xerox da agência, acostumado a transformar tudo que passa por suas mãos em páginas de branco e preto. Desde que vira a cabeça dele raspada cor de romã e percebera a vontade de não ficar mais do que um minuto no trabalho para não se atrasar na academia sentira a psicopatia do rapaz.

Esqueceu de Bruninho quando viu o azul em neon, a frase que ultimamente estava em quase todas as peças publicitárias da cidade, uma imposição varejista com certo estilo: longo prazo, prazer imediato. Era uma estratégia arrojada de mexer com os instintos mais hedonistas da classe média baixa que sobrevivia às custas de prestações de perder de vista, mas que pensava em ter aquela máquina digital ou uma geladeira nova agora.

Lembrou que na reunião geral para decidir a campanha de quase 80 milhões o slogan definitivo era de Adalberto Montenegro Campos de Carvalho: corra pra comprar porque sua alegria tem pressa. Todos os colaboradores da agência reunidos só iriam ratificar a idéia genial do diretor de criação mais premiado fora do eixo Rio-São Paulo. Até que a menina que havia saído da faculdade para ajudar no atendimento a uma concessionária de veículos e que terminou escrevendo e fazendo a arte para os outdoors do lançamento da linha de carros 2009 soltou a frase sem nem pedir autorização: longo prazo, prazer imediato.

Houve burburinho, Adalberto ainda tentou argumentar que estávamos em era publicitária de frases mais longas e filosóficas, até a “alegria tem pressa” remeteria ao carnaval, justamente a época em que a campanha estaria no ápice, e que a repetição de pra, pra em uma frase seria ruim de pronunciar. Só que os sócios ficaram impressionados com a receptividade que o jogo de palavras tinha provocado e assumiram a aposta da jovem. Maria Clara era o nome dela e a ousadia logo chamou a atenção. A ousadia e os olhos cor de mel.

Ele é o único diretor de fotografia daltônico que se tinha notícia. Sabia como ninguém empregar uma quentura no ambiente com essa ou aquela luz. Romeu Dourado era o nome que assinava os principais comerciais do estado, os mais comentados e inovadores, e alguns dos pouquíssimos filmes que eram rodados ali. Ganhou fama e dinheiro, teve a chance de ir trabalhar com cinema em São Paulo, mas achou que podia se acomodar.

A sociedade na agência era uma espécie de estabilidade muito bem remunerada. Tinha a sensibilidade para a área de criação, mas deixava as decisões fundamentais para Marco Aurélio, o parceiro desde que decidiram largar o curso de administração de empresas para arriscarem três meses no sertão acompanhando as filmagens de uma versão de Canudos, que jamais seria exibida depois da falência da Embrafilme. Só que a conversa bonita de Marco Aurélio tinha colocado eles em contato com outras equipes de produção e 8 meses depois já tinham participado de locações no Pantanal Matogrossense, na fronteira com a Guiana e no documentário sobre a invasão holandesa em Recife e Olinda.

Só que Romeu teria o privilégio de ver o nome nos créditos de um filme, depois de assinar uma produção pornô, rodada em uma praia da Paraíba. E ele foi notado como diretor de fotografia porque criou uma imagem alaranjada para o filme que se chamava “Maduras e Chupadas – as balzaquianas atacam no litoral”. Tudo bem que ficou sem o sobrenome original: era Romeu Goldeneye seu batismo na indústria da putaria audiovisual.

Quinze anos depois, levaria um Leão de Prata por um trabalho inédito em um comercial de televisão: o filme para a linha de perfumes era todo em branco e preto, mas no final a atriz deixava cair um lenço turquesa, que fazia um balé aéreo de arrancar suspiros de público e crítica. O mesmo efeito que seria usado – três anos depois – no filme A Lista de Schindler. Daquele dia em diante, por mais que se esforçasse, com pouco mais de 30 anos de idade, sua conta corrente jamais ficou de novo no vermelho.

Romeu era de um tempo no interior em que não entendia como tanta gente ficava fascinada pela chegada da televisão. Um quadrado que parecia sem vida diante de uma aquarela multitonal na roça, no rio, no pasto. Tinha verde, marrons claros e escuros, amarelos de amanhecer e vermelhos de sol se pôr, uma diversidade que só encontraria um paralelo no futuro ao conhecer a obra de Gaugin, embora este pintasse a tristeza.

Desde criança tinha notado que diferenciar as cores era como sentir a temperatura e a textura de superfícies, era quase necessário tocá-las, porque não entendia de imediato quando falavam pra pegar a blusa laranja ou a fita lilás. E assim, até os 12 anos, pensavam que ele era um pouco retardado.

Ela usava óculos finos grafite na primeira vez que saíram para jantar. Foi a coisa que logo notou, porque não entendia como uma pessoa que nunca aparecia de óculos tinha escolhido colocar justamente no que parecia um encontro romântico. Você tem miopia? Sim, quatro graus, mas uso lente durante o dia, respondeu, como se quisesse se justificar. Óculos é muito mais prático quando se escolhe apenas tirar para não ver as coisas do jeito certo, completou antes de beber o primeiro gole de vinho, brindando ao “senhor consumidor”.

Tinha sido marxista até pelo menos metade da faculdade, quando teve uma disciplina de design. Percebeu que, assim como um layout, o que dá a riqueza da vida é a gradação de tonalidades. Não pode ser apenas bem e mal, rico e pobre, preto e branco. Abandonei o comunismo do mesmo jeito que alguém deixa de assistir Chaplin para virar fã dos filmes de Almodóvar, concluiu, com um sorriso vasto de quem gostaria de outra garrafa de vinho tinto.

Acho que preferiria o mundo insípido a incolor, ela disse, olhando fixo para o garfo que tinha espetado um salmão grelhado ao molho de maracujá. O paladar definitivamente não é o melhor dos meus sentidos. Romeu olhou fixamente para os lábios dela e falou que a visão era até capaz de substituir alguns sabores só que nada como o tato para dar o colorido de uma vida. Ela achou que aquilo tinha sido o mais próximo de uma cantada na noite toda e fez um comentário sem sentido de que achava a decoração em bege altamente depressiva.

Quando voltaram para o carro, ela já tinha bebido o suficiente pra dizer que se o mundo não tivesse cores o carro dele não faria nenhum sentido. E se o mundo não tivesse sabores seus lábios também não, respondeu ele, no que seria a deixa perfeita para o beijo. Não houve beijo naquela hora, apenas um ensaio de assalto em que um pivete ameaçou roubar a bolsa dela e Romeu salvou a noite acionando a abertura automática da porta que chegou a tirar sangue do rosto do menino. Depois do susto, Maria Clara chegou a dizer que por causa de um assalto anterior teve sintomas de histeria e chegou a tomar remédios de tarja preta por quase um ano. Mas eu nem sou tão neurótica assim, olhe como estou calma agora. E Romeu fez um meneio com a cabeça, sugerindo um sim silencioso, com aparência tão distante que achou que ele só estava mesmo prestando atenção se a lataria amarela do carro estava arranhada. Ficaram juntos naquela noite e nos oito meses seguintes. A relação no trabalho não foi abalada, só que na intimidade ela sempre se concentrava mais nos problemas do que nas coisas em comum. A diferença de idade, a preferência dele por dormir de dia e ficar acordado de madrugada, a adoração dela por gatos e o preconceito dele por militantes da UNE, uma tatuagem no cóccix e um investimento ilegal na sociedade com um bingo. Na visão dela, pareciam carvão e tinta, não dava para misturar.

Romeu tentou fazer com que ela se mudasse para a cobertura, mas Maria Clara não aceitou sequer dormir lá uma noite. Na única vez em que visitou o apartamento fez um comentário sobre o bom gosto da iluminação em cobalto no espelho da sala e sugeriu uma parede pink com posters de Marilyn Monroe, Elke Maravilha e Madonna só para provocar. Isso foi quatro dias antes da consulta no pneumologista.

Romeu descobriu o problema de quase 40 anos de acúmulo de nicotina quando foi chamado pelo médico na sala com uma imagem enorme do que parecia ser o pulmão e uma expressão apressada. O senhor está vendo essa mancha cinza?, perguntou, apontando para uma bola do tamanho de um limão, Ali é o tumor. Romeu parecia não estar recebendo a notícia como se fosse relacionada a ele, ao corpo dele canceroso. Ficou mais interessado no modo como o doutor dizia as coisas mecanicamente, olhando para o relógio prata de marca suíça, que deveria ter custado uns 1,5 mil.

Saiu dali não com a sensação natural de que estava morrendo (“quimioterapia dolorosa ou a resignação de aproveitar intensamente os primeiros meses do resto de sua vida”, ofereceu o doutor), mas com a perturbação de achar que o jovem médico não estava fazendo o que gosta, apenas cumprindo uma obrigação entre um jogo de squash e uma orgia com prostitutas do site paraisoazul.com.br.

Quem está morto, afinal?, perguntou-se, enquanto abria a porta do seu brinquedinho de meia-idade.

Mais cedo tinha recebido no iPhone uma mensagem digitada às pressas: naum dah mais, deixo os DVDs portaria seu predio. Não conseguia admitir um final desse jeito. Estava dirigindo para o condomínio dela lembrando da vez que ela falou que só teria um filho com a certeza de que o pai seria mais rígido do que pai , ou do dia em que abriu um envelope pardo de correspondência e falou na frente dele que se todo mundo recebesse pelo correio o que pedia era muito provável que as cartas nunca saíssem de moda, ou de quando fizeram uma sessão de cinema ser reiniciada só porque um casal de velhinhos não tinha visto os créditos iniciais do filme.

Havia pensado em tudo aquilo pra dizer a Maria Clara, mas na hora simplesmente ficou com a voz embargada, o pensamento confuso: deu branco. Conseguiu apenas falar que não fazia sentido ela ir deixar os DVDs, ele estava lá para buscar tudo. Ela entregou a caixa de papelão que tinha lacrado com uma fita adesiva e escrito em hidrocor ROMEU, 1501. Só queria conseguir ter dito uma coisa: sem você, minha vida perdeu a cor. Deixou a porta se fechar e espremer o dedão, que meia hora depois estaria com o sangue pisado, completamente roxo de cair a unha.