Sobre máquinas de escrever

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

No auge da Alemanha Oriental comunista, qualquer um que comprasse sua própria máquina de escrever, precisava datilografar nela um texto (não importava o conteúdo) e deixá-lo registrado em determinada seção do governo. A medida servia para que, futuramente, páginas pudessem ser rastreadas até o datilógrafo original. Pode-se imaginar a retaliação a alguém que ousasse pensar – e deixar por escrito – algo divergente do imposto pelo regime. A mão pesada do Estado iria buscá-lo nas pistas deixadas pela tinta de uma fita datilográfica marcada a cada caractere. Um absurdo, não?máquina escrever

Mais de 60 anos se passaram da divisão por um muro entre o oriente do totalitarismo e o ocidente da democracia. Apenas comentar uma medida como essa da Deutsche Demokratische Republik é capaz de provocar comichões nos ativistas das liberdades e direitos individuais. Atualmente, entre tantos que deixam registrados para a posteridade anseios e protestos, em folhas de prosa e verso, em fontes 12 ou 36, em letras coloridas, sublinhadas ou sombreadas, há poucos os que conhecem uma verdade sobre impressoras caseiras. Sejam elas a laser ou jato de tinta, sempre deixam pigmentos amarelos quase imperceptíveis nas bordas das páginas. Uma impressora nunca obedece ao mesmo padrão de rastros invisíveis de outra. Dá para saber, com muito mais rapidez do que a do regime comunista, a origem deste escrito temerário. Fabricantes sempre alegarão que se trata de uma medida para identificação e correção de equipamentos – em resumo, uma ação a favor do cliente. Nunca o contrário.

Claro que máquinas de escrever e impressoras aparecem nesse texto como alegorias. Há formas muito mais eficientes de saber o que você anda escrevendo, executando ou tramando. Potencialmente, todos os e-mails do mundo são rastreados, assim como conversas telefônicas e a localização exata de cada usuário de celular. A diferença é que, quando isso vem à tona, termina justificado sob capas de segurança, guerra contra terrorismo, nunca um palavrão, do tipo “invasão de privacidade”. A diferença entre as máquinas de datilografia da Alemanha Comunista e as multifuncionais da democracia está no discurso.

Você já deve ter ficado intrigado com a coincidência que é mudar o status de relacionamento para noivo em sua rede social e, de repente, passar a receber, no e-mail, spams de buffets para festas de casamento. Ou então comprar um tênis na internet e ver pipocar, em quase todo site, anúncios patrocinados de lojas esportivas. Tudo isso, quando questionado, é traduzido em expressões como customização, comodidade, cruzamento de dados. É proibido falar algo que lembre espionagem.escritor09

Recentemente, um aplicativo ficou notório por mostrar como o Google rastreia todos os movimentos de celulares que estão cadastrados em seu sistema. Até mesmo de quem não optou por isso. Enormes servidores armazenam, literalmente, todos os seus passos. Para minimizar o impacto de uma descoberta desse tipo, a informação é colocada até de um jeito lúdico: agora, você pode montar um mapa, colorido e interativo, de suas andanças por aí.

Se nem os governos e autoridades estão imunes – o “criminoso” Edward Snowden burlou o sistema para escandalizar o mundo com essas informações -, não é o cidadão médio que poderia se dizer livre para exercer plenamente o legado da democracia. Nesse jogo de informação e contra-informação, qualquer lenda pode ser levada em conta. Como uma que dá até o nome de Guardião a um software de monitoramento de ligações ou e-mails, protegido em uma divisão especial da Secretaria de Segurança Pública da Bahia. Em nome da proteção da sociedade, que mal há em um sofisticado Guardião, ocupando um andar confidencial de uma repartição pública?

Reflita melhor antes de colocar a fita da máquina de escrever alemã como símbolo máximo do totalitarismo. Aliás, falando em refletir, já tomou cuidado sobre o que vai pensar no dia de hoje?

* Artigo publicado no jornal A Tarde, editoria Opinião, em 27/10/2014

Democracia em crise ou políticos em xeque?

pabloreis@gmail.com

O fato ocorre num dia de inverno em um pequeno país. É a data da eleição mas, com frio e chuva, pouca gente vai às urnas. Até as 16h, ninguém aparece para votar. Nesta nação, votar é direito, não dever. O tempo melhora, as pessoas saem de casa para escolher o presidente, só que o inusitado está por vir. Após a apuração, as autoridades constatam que três em cada quatro eleitores votaram em branco. Quando 75% da população demonstra descontentamento nesse nível, governo e oposição reagem atônitos. Nova eleição é marcada com resultado ainda mais intrigante. Desta vez, 83% do eleitorado vota em branco.crisis

Isso realmente aconteceu – num romance do ganhador do Nobel José Saramago, adequadamente chamado Ensaio Sobre a Lucidez. Essa descrença pode não estar presente apenas na ficção. O sentimento é auscultado em países europeus, sobretudo onde o sufrágio não é obrigatório. Pesquisas recentes mostram que só 18% dos italianos e 15% dos gregos acreditam no valor de seus votos – que façam alguma diferença. No Brasil, mesmo sendo obrigação civil (com sanções previstas), a escolha dos dirigentes é vista mais como inconveniência em meio a um feriado do que exercício de cidadania. Os números indicam isso.

Na eleição para prefeito de Salvador, em 2012, do total de 1.881.544 eleitores, mais de 375 mil (quase 20%) se abstiveram. Além destes, 214 mil (14,2%) digitaram branco ou nulo. É alarmante que 35% dos cidadãos aptos tenham abdicado do direito de escolher o chefe do executivo municipal, autoridade capaz de resolver problemas cotidianos de infra-estrutura do bairro, a creche para os filhos, iluminação e calçamento na porta de casa.

Para governador, em 2010, a apatia foi bocejante. Mais de 2,05 milhões dos 9,5 milhões de eleitores simplesmente não apareceram na “festa da democracia”. Entre quem votou, 1,07 milhão, ou 14,2%, desprezaram candidatos. No plano federal, eleição obedece ao padrão de 20% de abstenções e 10% entre brancos e nulos. O desinteresse é refletido também no horário da propaganda política, que corrói, em média, 20% da audiência das televisões. Discursos vazios, peças entediantes: aparelhos desligados.

Alguns especialistas enxergam uma retaliação – para não dizer repulsa – ao modelo atual de democracia. O sociólogo espanhol Manuel Castells nem precisou de luneta para perceber a ligação entre movimentos tão conceitualmente díspares e geograficamente distantes como a Primavera Árabe, o acampamento de resistência na Praça Tahrir, no Cairo, e o Occupy Wall Street, em Nova Iorque. “Há uma crise de legitimidade do atual sistema político, organizado na partidocracia, na política midiática e na dominação da política pelo dinheiro, legal e ilegalmente”, respondeu Castells, por ocasião dos protestos no Brasil, em junho de 2013. “Há rejeição dos partidos e o clamor por transparência, os cidadãos lembram aos partidos que o governo não é deles, mas dos cidadãos que os elegem e pagam”, resumiu o autor do ensaio A Crise da Democracia, Governança Global e a Emergência de uma Sociedade Civil Global.democracia-participativa-e1322938827542

A professora francesa de filosofia política Simone Goyard-Fabre provoca, no livro O Que é Democracia?: “O povo soberano não se reconhece mais no aparelho de Estado que o governa”. A cena democrática está bem longe do seu melhor ato e do clímax de ovação da plateia. Mais do que isso, o público reclama o direito a não ser apenas espectador, mas também diretor, roteirista, cenógrafo. E a rejeição pode ser principalmente aos atores e não exatamente à peça que é apresentada. 

É de um discurso de Winston Churchill, como deputado na Inglaterra, em 1947, antes do segundo mandato como primeiro-ministro, a frase: “A democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. Antes que o estadista (também vencedor do Nobel) seja desmentido, é preciso saber se o modelo definha ou se são os personagens dele que viraram meras caricaturas. Para que a cena fantasiada por Saramago não saia das páginas de um bom livro e ganhe a ribalta com a surpresa das reviravoltas históricas.

*Artigo publicado originalmente na seção de Opinião de A Tarde, 2 de outubro de 2014