Rainha das quinquilharias

Ada Tem de Tudo, pseudônimo de Iraci Brandão Cajado, comercializa antiguidades e miudezas no seu museu de novidades

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

Ada Tem de Tudo está a cada dia mais empreendedora no comércio de quinquilharias, objetos cujo valor muitas vezes não passa do sentimental, peças que para muitos não são mais do que entulhos da sociedade de consumo. Na rua do Gravatá, uma zona no centro de Salvador ladeada por sobrados históricos – alguns em ruínas -, onde violência e degradação convivem numa perversão urbana, ela já abriu três lojas praticamente vizinhas, onde oferece nostalgia em bugigangas.

Oficialmente, seu ramo é o de antiguidades, mas vamos direto para o popular: “Ela é a rainha dos cacarecos”, resume o enteado Elias, que trabalha como vendedor em uma das lojas e, como se vê, não é muito de meias palavras. Ada é imperadora de um território do pretérito, cujas fronteiras estão delimitadas por um gramofone não usado há quase 40 anos, ou uma cristaleira com cheiro e aparência de casa de vó. São objetos jamais vistos por muitos adolescentes da geração internet e que delimitam novas dimensões do espaço-tempo-custo: um telefone preto antigo de disco por R$400, qualquer volume da enciclopédia Delta Larousse por R$10, um LP de Julio Iglesias ou de Ray Conniff, de 1980, por R$1.

A bolsa de valores é toda determinada pela cotação da dona. Seus índices se baseiam na possibilidade de um lucro em cima da peça e na presunção de uma idade que muitas vezes o objeto não tem. Se muitas de suas peças são mais valorizadas pelo tempo de fabricação, o mesmo não se pode falar da proprietária. Ela não divulga a idade nem sob ameaça de penhora do seu museu de grandes novidades.

Iraci Brandão Cajado – ela revela o nome do qual não é muito fã, mas não o motivo do apelido Ada – começou nesse ramo há quase 25 anos, na década de 80, e ela diz de forma jocosa que era uma bebezinha. Como funcionária do Antiquário San Martin, na rua Ruy Barbosa, passou a se interessar pelo assunto. Depois de sete anos, abriu a própria loja, sem o mesmo requinte do antigo patrão, comprando qualquer coisa que lhe aparecesse como oferta de outrora. Entre os objetos dessa fase, um pinico de louça já tem 15 anos e hoje serve como lixeira. A foto de uma ânfora gigante, maior do que um adulto, provavelmente feita na China é o que ela usa para mostrar a aquisição mais exótica que já passou por ali. O objeto que proporcionava uma visão realmente suntuosa foi vendido por mais de R$ 10 mil.

Depósito de tralha

Em 17 anos de negócios, as mercadorias foram se entulhando ao ponto da matriz ficar pequena para tanta tralha. A primeira filial foi aberta três anos depois e também se tornou um depósito impraticável para o trânsito de clientes. Ada abriu neste mês a terceira loja no mesmo quarteirão com o dobro do tamanho da segunda e mesmo assim ainda ficou faltando espaço. “Tinha peça lá dentro que há 15 anos eu não via”, revela, dando a noção do grau de desarrumação. “Antes, no espaço para colocar 20 peças, tinham 500”. Depois do mutirão para a faxina, ela diz que tudo está um legítimo show room. Só que o ambiente relativamente clean que a loja virou ela não considera inteiramente favorável para o negócio. “Quem gosta dessas coisas, gosta de bagunça”.

A freguesia é formada por decoradores, colecionadores, artistas plásticos. A psicóloga Ana Luzia Outeiro chega no início da noite de sexta-feira trazendo um amigo para conhecer os itens do arquivo. “Eu sou cliente há muito tempo e faço questão de divulgar para os outros”, vibra Ana Luzia. Ultimamente, Ada tem sido visitada por uma classe que chama de novos-ricos. Eles buscam bibelôs atemporais, como uma imagem do Menino Jesus com não mais do que 15 centímetros de altura, oferecida por R$ 200. “Isso é valorizado porque deve ser de 1900”.

Ao ser perguntada sobre o artigo mais caro em seus domínios, Ada ensaia uma indignação calculada. “Caro? Não, aqui nada é caro”, responde ela, que dá o preço e coloca o valor em etiquetas adesivas. “Analiso pelo olhômetro e pela convivência. Não sou museóloga, mas tenho a faculdade da vida”.

Sobre relógios de parede, ela conhece um pouco mais. Mostra um do estilo oito e garante que todos os fazendeiros da Bahia nostálgica do século passado tinham o seu. Um relógio do tipo Capelinha, com duas cordas, custa R$450. Até esterilizador de ar faz parte do armazém de souvenirs depreciados. O observador um pouco mais atento e sem rinite alérgica para suportar poeira pode encontrar lustres de cristal e algumas jurássicas máquinas de datilografia, até pneu de trator e projetor de cinema.

Ética de antiquário

Para manter um tão eclético estoque de artigos pitorescos, Ada conta com o olhar experimentado para saber o que é vendável, assim como o jornalista precisa ver logo o que é notícia, e o político fica atento ao que é factóide para gerar votos. Ela garante que qualquer oferta que recebe faz questão de ir checar na casa do cliente (“vou em qualquer lugar na capital, interior, sítio, fazenda, village, veraneio, e só chamar que eu vou”) para verificar se é aquilo mesmo que está procurando. Mesmo quando não é, ela diz, marota, que sempre compra alguma outra coisa pra não voltar sem fazer negócio.

Só comprar em residências é uma espécie de código de ética nesse ramo, onde muita gente é capaz de oferecer produtos roubados ou de procedência duvidosa. “Pode ser um funcionário de uma casa que pega algum bem porque foi demitido, ou até um filho que é viciado em drogas”, diz Ada, para quem isso é uma imposição da profissão. “Isso se chama cautela”.

Sua outra transação predileta é a troca, um escambo de coisas velhas. “Às vezes, troco um ovo por uma boiada. E vice-versa”, diz a praticante da Lei de Gerson, para a qual o importante é que todos levem vantagem em tudo. Nem o funcionamento normal da loja está livre dessa ânsia de atender aos clientes. A abertura de segunda à sexta é das 8h às 19h, no sábado, das 8h às 14h. “Domingos e feriados, é só ligar que eu venho”, antecipa Ada.

A vida de uma família terminou girando em torno de miudezas e bugigangas. Ada tem um casal de filhos e a mais velha, Carolina, de 12 anos, com sonho de ser atriz e jornalista, coleciona moedas antigas. Sua paixão pela numismática alcançou 100 itens. Já a mãe não se sente à vontade de levar as peças que vende para decorar a casa. “Já convivo tanto diariamente, senão eu perco o fôlego”, explica. Falando em coisa antiga, vale até recuperar o batido adágio de casa de ferreiro, espeto de pau. Só que, no caso dela, aquele antigo gramofone até que ficaria bem na mesa da sala em jacarandá.