Parnasiano centenário

Aos 103 anos, completados hoje, o poeta Bráulio de Abreu continua escrevendo sonetos e declamando poemas inteiros de cor

 

Pablo Reis (pabloreis@gmail.com)

A partir de hoje, quando receber os amigos e admiradores na casa de nº 24 da ladeira do Custódio, no Porto do Bonfim, uma espécie de meca aconchegante para a prática dos versos, Bráulio Joaquim de Abreu começa uma nova estrofe de auto apresentação: “eu arrasto comigo 103 anos”. Não bastasse carregar com bom humor e vitalidade o fardo de uma existência mais que centenária, ele também traz consigo o baú de uma obra poética primorosa. Autor de seis livros de poemas, continua escrevendo os versos líricos e heráldicos e declamando com uma rapidez de raciocínio de fazer inveja a qualquer rapper adolescente.

É um tanto improvável que as vistas nubladas de seu Bráulio permitam que ele leia o próprio escrito em um de seus livros. Mas a leitura da memória condiciona ele a declamar qualquer coisa que tenha saído de sua pena, desde que alguém ajude entoando o primeiro verso. Assim, é quase automático que ao escutar “eis-me aqui, sob o céu – minha fronde é virente” (início do poema Sonho de Árvore), ele prossiga sem pigarrear: “para, no meu silêncio, abrigar quem procura/ o sossego feliz, na esplêndida frescura/ Desta sombra que espalho, acolhedoramente”.

Se já é impressionante reconhecer a aurora do intelecto superando o crepúsculo do organismo vetusto nesse homem de 103 esplêndidos marcos, mais ainda é descobrir que o “príncipe do soneto” (como era chamado pelos contemporâneos de rodas literárias nas décadas de 30 e 40) sentou nos bancos de escola apenas até o 3º ano primário. Nascido pobre ao meio-dia do sábado 7 de março de 1903, Bráulio Joaquim cursou escola apenas o suficiente para saber os rudimentos do português. Logo, virou arrimo de família, com a morte do pai, que ao contrário dele virou tema de lápide aos 36 anos. Abandonou os estudos para se dedicar ao trabalho como alfaiate, mas não sossegou uma ânsia de aprender.

Trabalhava até o horário do último bonde da Soledade, descia no ponto para comer uma feijoada noturna e fazia a digestão na caminhada até a casa na Estrada da Rainha. À noite, Bráulio desafiava as trevas da ignorância, puxando um candeeiro de parede e colocando na mesinha em que lia compulsivamente a gramática de Carneiro Ribeiro e romances. “Eu ensinava a mim mesmo”, reflete o auto-didata, repetindo a frase ocasionalmente como se as lembranças bruxuleassem por aquele tempo como a chama vacilante do candeeiro.

Paixão etérea

Herdeiro de um encontro literário chamado Grupo da Baixinha, uma roda de intelectuais reunida sempre no Café Progresso da Baixa dos Sapateiros, que resistiu entre sonetos e versos livres, de 1925 a 1930, Bráulio era chamado de Uirapuru, porque quando declamava todos se calavam diante da voz de barítono e da inspiração de clássico. Fã de Olavo Bilac, ele costuma se referir ao mais badalado dos parnasianos pelo nome inteiro, como se evocasse um fantasma alexandrino: Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac.

Mas a paixão etérea continua mesmo por Júlia. O casamento de 54 anos com a musa inspiradora, desfeito em 3 de março de 92 com a morte da amada, deixou mais do que saudade e os cinco filhos (Sônia, Veleda, Marisa, Bráulio Filho e Eliana). Produziu uma inspiração que parece não ter estagnado com os anos de convivência e regou a florada de declarações de amor versejadas, como Carta de Amor e Soneto de Júlia: “Quando eu a conheci, era Júlia uma estrela:/ iluminou-me a vida e iluminou-me o sonho/ Hoje, se eu celebro em versos que componho/ É que meu coração nunca pôde esquecê-la”.

As homenagens, Bráulio as tem recebido paulatinamente, feito goteiras de louvor ocasionais pingando de um teto de insensatez. Em 24 de novembro de 1999, recebeu diploma da Secretaria de Cultura e Turismo por ter feito parte do grupo da primeira publicação baiana moderna, a revista Samba. Em 2003, ano do centenário, os amigos e admiradores cuidaram das celebrações religiosas e das tertúlias literárias. Uma conferência no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, uma menção na Academia de Letras, uma comenda concedida pela Associação de Moradores e Amigos de Itapagipe (com o nome do médico benemérito da região Júlio Davi) foram algumas deferências. Teve também a placa de Honra ao Mérito aprovada pela Câmara dos Vereadores, a partir de requerimento do vereador Silvoney Salles. O poema Manhã de agosto, que é a Península Itapagipana da década de 50, ficou gravado em uma placa de metal no balcão de doçuras da Sorveteria da Ribeira.

Por fim, o lançamento do livro Pentágono, com 100 páginas, em uma edição da Fundação João Fernandes da Cunha, que vendeu 100 exemplares na tarde de autógrafos. Um livro representa o auge de um exímio sonetista. As cinco coroas de soneto foram uma prova pessoal de superação, mas estimulam os seguidores a uma tentativa de reconhecimento mundial. O Grupo de Ação Cultural da Bahia chegou a fazer um pedido oficial ao Guinness Book para inscrevê-lo como recordista mundial de coroas de sonetos.

Para Cid Mascarenhas, um bacharel em Direito e funcionário aposentado do Tribunal Regional do Trabalho, mas que prefere se apresentar como fã e amigo de Bráulio de Abreu, há registros de outro brasileiro que conseguiu fazer apenas duas coroas e é considerado um fenômeno. A coroa é considerada uma filigrana da arte poética. Com seus 15 sonetos alinhavados, constitui uma vitória da persistência da inspiração.

Bráulio pede para o entusiasta Cid começar a ler os poemas, mas aos poucos os versos desabrocham na memória do centenário poeta. Cid Mascarenhas vê o carimbo da genialidade no protocolo poético de Bráulio. “Ele bate em Drummond, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Tem um poema, Mareante, que lembra Camões, sem exagero”. Bráulio de Abreu, o longevo poeta, que compõe sonetos de cabeça e quando senta para escrever já tem a obra pronta, persiste como o último dos parnasianos mesmo que o mundo esteja a cada século menos romântico. Como ele mesmo diz em um dos versos, “a velhice virá, que ela é a noite da vida”. No caso dele, a velhice veio iluminada por uma inspiração de Cruzeiro do Sul, o nababesco brilho de uma mente, uma constelação de talento que fulgura como o arco de um luar crescente.

 

*Reportagem feita em março de 2006

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