Facebook: dois cliques de solidão

Como o fenômeno de redes sociais pode estar mascarando um incômodo da modernidade e servindo como paliativo para o distanciamento dos seres humanos

Pablo Reis

(pabloreis@gmail.com)  

Jesus Cristo ainda demoraria 350 anos para nascer em uma manjedoura quando Aristóteles, o grego, discípulo de Platão, já sugeria que amizades se formam com tempo e intimidade: “não podem se conhecer sem que se tenham comido juntos a quantidade necessária de sal”. Na época do fenômeno chamado redes sociais, amizades iniciam e se desfazem sob um estalar de dedos, um sutil crepitar de um clique. Se isso pode não valer para a totalidade dos usuários, pelo menos serve como bom ponto de ponderações a respeito de uma maioria que observa em um recurso tecnológico uma oportunidade – talvez a única – de suprir carências, preencher lacunas emocionais, vencer o fosso da reclusão de egos feridos.

Se já é um consenso entre áreas de conhecimentos distintas, como psicologia, antropologia, publicidade, música e ditados populares que solidão não é o oposto de companhia  – e frases como ´sozinho no meio da multidão´ ganham o status de clichê, afirmar que a conectividade em redes sociais é um sintoma de solidão não aparenta sequer uma afirmação de ousadia intelectual.

O antropólogo americano Robert Weiss dizia que a solidão pode ser justamente dividida em social e emocional. A primeira é o “sentimento de tédio e marginalidade causado por falta de amizades ou de sentimento de pertencer a uma comunidade”. Já a solidão emocional é o “sentimento de vazio e inquietação causados pela falta de relacionamentos profundos”. O primeiro tema parece estar coberto em uma vastidão de códigos de programação e mais de 800 milhões de corações potencialmente unidos pela teia de contatos, mensagens instantâneas e comentários banais. O perigo está justamente na superficialidade, na lacuna de aprofundamento.

Solidão interativa é o nome do processo que o sociólogo francês Dominique Wolton dá ao momento atual que os entusiastas gostam de chamar de aldeia global, pós-modernidade. Para ele, a internet dá uma possibilidade maior das pessoas ficarem sozinhas, mascarando o isolamento (muitas vezes, voluntário) com ferramentas que aparentam favorecer a comunicabilidade. Wolton rejeita o conceito de comunicação, nesse caso. Ele acredita que há uma erupção de informações, mas que isso não se configura propriamente o diálogo. Ao invés de comungarem de uma troca de experiências, os seres humanos estão reproduzindo um padrão de troca de solidões.

Angústia do abandono

A internet parece ser o campo com acesso mais rápido e fácil para um território propício a aparente minimização da chaga que é a angústia do sentimento de abandono. Para isso, se torna um outdoor de intimidades, um bazar de frustrações, gracejos, indiscrições, comentários de mau gosto, rebeldias, grosserias, piadas internas, sub-revoluções. O pior, tudo em exagero, tudo em over, que termina esvaziando o sentido prático dos enunciados. Não há mergulhos em direção ao que é essencial, a comunicação fica anêmica como letra de Luan Santana. Pairando na superfície, sem imergir para a profundidade, todo o conteúdo da solidão.

“A solidão é uma condição psicológica caracterizada por uma profunda sensação de vazio”, define John Cacciopo, considerado um dos mais influentes psicólogos dos Estados Unidos justamente por estudar a fundo a solidão, seus sintomas e consequências. A proximidade dele com o tema levou a uma impressão particularmente otimista sobre esse fantasma que parece incomodar tanta gente. Cacciopo é do time que considera que metade deste sentimento vem de uma herança genética e a outra do contexto. Ele vai mais além, ao enxergar um movimento positivo justamente na atitude de tentar sair da solidão. Veja bem, até para o entusiasmado Cacciopo a solidão não é boa, mas sim a motivação para fugir dela.

O estudo dele sobre o impacto de redes sociais chega à conclusão de que se a utilização do site for feita para reforçar relações reais o impacto é positivo. A pergunta é se há alguém agindo dessa forma, se existe alguém usando o face para fortificar um contato já iniciado offline. Sim, existe, mas este segmento é tão minoritário em quantidade e tão obscurecido pelas filigranas da insensatez dominante que vira exceção. E aqui quero tratar é sobre a regra.

Qual a intensificação de um relacionamento ao publicar fotos em superclose de um auto-retrato ao acordar com direito a olhos inchados e tranças em dreadlocks? Ou reproduzir máximas como “me chama de Receita Federal e se declara pra mim”? (São exemplos reais que ficam disponíveis para qualquer um acompanhar, expostos como se fossem troféus, em que o paralelo na “vida real” seria alguém imprimindo e fixando com tachinhas cor de abóbora no mural do condomínio).

Plataforma para a notoriedade

Tudo isso é mais do que uma vitrine de banalidades. Para além dessa empreitada, esconde-se – ou se expõe – a perseguição a um status de liderança ou a reclamação a um suposto direito moderno à visibilidade ampla e irrestrita. Há um jogo de protagonismo social em andamento com pontos medidos em um placar de popularidade, feito a princípio pelo número de amigos (em um campeonato de sociabilidade), mas sobretudo pelo número de curtir que aparecem abaixo de frases e fotos, atestando valor, inflacionando o grau de sucesso que deverá ter a próxima iniciativa. Pessoas passam a ser examinadas e qualificadas de acordo com um escore de influência, um acordo velado por toda a comunidade. Adiante, será visto quão frágil pode ser esta avaliação.

Quanto valeria um clique na vida offline?

Neste ponto, reside a primeira expectativa de cura do sintoma solidão. Cada ato e atitude precisa ser validado no reconhecimento alheio, como o substituto tardio de uma carícia essencial. Homens e mulheres passam a construir uma personalidade lateral – com o sugestivo nome de perfil – que vai sendo moldada não mais por neuroses, psicoses, perversões (de Freud), complexos (de Jung), ou couraças vegetativas (de Wilhelm Reich). É uma estrutura que fica alicerçada por comentários, respostas, aprovações e reproduções de frases.

Perceber que a construção desta identidade digital extra ocorre a partir da aceitação no ambiente da rede social é como propor que um edifício seja construído pelo acúmulo de formas geométricas de uma animação eletrônica. Um condomínio inteiro formado por combos de Tetris. Falta robustez por causa da facilidade em oferecer um clique de presente, método que dispensa maiores investimentos empáticos. Usando a etimologia para dar a melhor definição, in = para dentro e pathos = sentimento, tem o sentido de ser levado ao lugar do outro, um movimento que exige dedicação, solidariedade, por que não dizer, legítimo interesse pessoal. Ser empático com alguém é quase um sinônimo de inteireza, de doação em plenitude. Nada disso, infelizmente, parece ser retratado no indolor e insípido clique que faz a alegria de muitos.

Basta questionar a qualquer um o grau de esforço para agradar, para concordar com um pensamento alheio, quando ele vem sublinhado na tela, e perceber que a dedicação é mínima, diferentemente do que seria empregado no cotidiano tradicional. Investir em um sorriso, um aplauso ou um elogio é mais pessoal e compromissado do que um simples movimento de mouse. No facebook, uma metonímia serve para dar um ar mais solene a procedimentos banais – os polegares, assim como no coliseu romano, podem fazer a diferença entre a vida e a morte.

O jornalista e escritor português Miguel Sousa Tavares é um dos principais pensadores e questionadores em Língua Portuguesa. Seu romance de estréia, Equador, passeia entre ficção e realidade, em uma narrativa inebriante que retrata os últimos anos da monarquia portuguesa, no início do século XX. É um talentoso apreciador de personas e hábil ao montar os caracteres de suas histórias. Aos 60 anos, declarou, não se sabe para iniciar uma polêmica farta ou por convicção catastrófica, que o facebook seria “a ameaça do século”, onde quase desconhecidos passam a ser tratados como amigos em um ambiente virtual, mas podem voltar a ser quase desconhecidos na realidade.

Rompe-se a hierarquização de informações de acordo com círculos de proximidade. Na maioria dos casos, todos os contatos (chamados de amigos) têm acesso a toda a informação, nivelados em parâmetros semelhantes, sem diferenciações tradicionais, como intimidade e tempo de convívio. Um comentário prosaico que cabe em uma mesa de jantar termina sendo direcionado a um primo, um chefe e até o zelador do prédio que estão em uma mesma seta de conversa. É como imaginar que você dirige um carro rumo a uma viagem de férias, conduzindo sua terapeuta, seu padrinho e o instalador da TV a cabo (grupo tão heterogêneo), todos compartilhando das mesmas anedotas.

Querido face

O melhor amigo do homem?

Outro registro que pode estar associado a uma solidão endêmica é fazer a apropriação de recursos tecnológicos como elemento afetivo. A abreviação mais comum, conhecida como ‘face’, pode ser considerada uma nomenclatura carinhosa e, por si, um indicativo da urgência de familiarização com o produto. Neste ponto, a abordagem funciona como um código para diferenciar círculos distintos de clientes (supostamente, quem chama facebook estabelece certo distanciamento, enquanto os utilizadores do face reivindicam intimidade). Na síntese, há um processo de personificação do objeto. O face ganha contornos de ente querido.

Em uma remissão aos contos de fadas, às fábulas, seres inanimados ganham vida com o sopro divino ou com o desejo humano acompanhado da ação (o expoente maior seria Pinóquio, transmutado da madeira para carne, osso, sangue e desejos por um amor profundo do Criador). No caso de nosso estudo, o objeto sem vida (o Face) é o que parece animar os humanos, na completa inversão do sentido original dos mitos da criação. O homem deixa de ser sujeito para se tornar subjugado. Algumas frases marcam esta mudança paradigmática, como “não sei mais viver sem meu face”.

O ambiente virtual passa a fazer parte indissociável de vidas e até nortear biografias. O que dizer de alguém que divulga 25 fotos do parto, em um frame a frame cheio de sangues, gazes, camadas de gordura e placenta, tripas, tesouras e uma bebê coberta de gelatina cinza com cara amassada? Tudo isso para qualquer espectador que chegue até o álbum da princesinha, aberto e entregue para os olhares ávidos de extravagâncias e/ou bizarrices. Alguém há mais de reivindicar, depois disso, o título de exposição visceral?

A doença se revela em sintomas como aumento do stress e da ansiedade. Isso pode explicar uma estatística da empresa de que a média mundial de utilização chega a mais de 6 horas por dia de cada usuário (no Brasil, em um ano, houve aumento de 28 minutos para 2 horas e 24 minutos por dia). Será, realmente, que alguém colocaria seu perfil do face no fogo para dizer que passar um terço do dia útil relatando o que acontece nos outros dois terços é um sintoma de saúde psíquica, e não o oposto? Mas como o elemento apaziguador pode estar facilmente à mão, sem ilegalidades ou intermediários, não fica configurado o vício tradicional das drogas, tão condenado socialmente.

Americanos já são diagnosticados com “fadiga facebook”

Uma ansiedade de ficar sempre plugado para sufocar a impressão de que se está perdendo algo. Décadas atrás, não se podia perder alguma coisa interessante ou, para entrar em uma tautologia, não se podia perder o que era imperdível. Agora, não se sabe responder mais à pergunta: na internet, o que é imperdível?

O doutor em filosofia e articulista do jornal Folha de São Paulo, Luiz Felipe Pondé, que mantém uma conta no facebook, tem uma opinião crítica, que chega ao limite do sarcasmo. Para tratar com muito boa vontade a forma como ele adjetiva o fenômeno “redes sociais”, pode-se dizer que é uma “absurda bobagem”. Ele considera uma usina de frivolidades, com frases como “eu vou ao banheiro”, “vomitei”, que “expõe de forma obscena o fato de que gostamos de falar mal dos outros”. Ao retirar o que ele chama de histeria típica quando o assunto é rede social sobra apenas uma tentativa de fugir da monotonia com uma avalanche de banalidades da espécie.

Vale reproduzir um texto da editora da revista Época online, Letícia Sorg, que aparentemente por um acaso teve um insight sobre o turbilhão a que os seduzidos pelo face são tragados e não percebem:

Neste fim de semana tomei um susto ao olhar a caixa de e-mail. O Facebook tinha me escrito.

“Olá, Letícia, você não acessou o Facebook nos últimos dias; várias coisas aconteceram na sua ausência.”

De fato. Vários amigos – muito ou nada próximos – dividiram seus pensamentos, suas atividades, suas fotos. Suas alegrias, tristezas, reclamações. Seus gostos e desgostos. E eu não estava lá para ler.

Pensei: “Que bom”. Cogitei até responder à mensagem automática: “Olá, Facebook, várias coisas aconteceram na minha vida na sua ausência.”

Ficar um pouco consigo mesmo, lendo, refletindo, meditando, numa fila de cinema, na sala de espera do dentista, não significa, necessariamente, solidão. Só que este é um assunto que vale ponderações futuras. A questão é perceber se a massa de usuários (hoje, 800 milhões, em breve 1 bilhão) está realmente criando novas demandas de existência ou simplesmente tentando evitar esses cruciais instantes de auto-encontro.

Quando você perceber que alguma pessoa próxima está dedicando tempo demais ao Facebook, no computador, no celular, provavelmente fugindo daquele reflexivo momento que pode ser estar consigo mesmo, não se considere o estranho, o deslocado. Provavelmente, você ainda está suficientemente absorto pelas coisas reais para se enlevar por um canto de sereia ilustrado em moldura azul (não à toa uma cor com efeitos neutralizantes e anestésicos, que pode ter resultados hipnóticos no sistema nervoso central). E nisso, com certeza, você não vai estar só.

 

Um comentário sobre “Facebook: dois cliques de solidão

  1. Parabéns pela explanação, muito bom o texto e realista. Te confesso que ao ler determinadas partes minha pessoa aparecia em meio às letras e com certeza ao término do mesmo pude perceber que se faz necessário algumas mudanças. Ainda há tempo!

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