Morte e vida no Campo Santo

Na história do cemitério mais antigo da Bahia, uma tradição de arte, saudade, mistérios e sobrevivência

Pablo Reis
pabloreis@gmail.com

Onde o senso comum se acostumou a enxergar dor e despedida, a descoberta de pequenas aventuras de alegria e sobrevivência. Desde a inauguração, em 1836, o Campo Santo coleciona mais de 170 anos de histórias que o tornam um cemitério incomum. Alvo de uma revolta popular que resultou em sua destruição parcial, em meados do século XIX, o equipamento sobreviveu à rejeição inicial para se tornar uma necrópole que reproduz signos da cidade dos vivos. Ali estão resumidos os conflitos de classes, dispostos nos imponentes mausoléus da entrada, em oposição às covas rasas dos fundos. Ali estão concentradas oportunidades de renda para milhares de famílias. Há também uma improvável coleção de episódios pitorescos, como um filho que sepultou a mãe em meio a piadas. O que nunca morre, entretanto, é a saudade pungente que domina as alamedas do Campo Santo, de tanta morte e vida.

Saudade e sutilezas, angústias e poesia se encontram no último adeus no Campo Santo

CAMPO DA SAUDADE
Sentimento primaz no mais antigo cemitério de Salvador, a melancolia rende histórias de dor e emoção

O espectro da saudade ronda as alamedas sem vida do Campo Santo. A despeito de qualquer prova científica, o sentimento é o fantasma real assombrando de tristeza os que convivem por ali. No dia de Finados, o espaço chamado Vela Votiva se torna uma concentração do luto. As chamas bruxuleiam nos pavios e em volta delas os apelos de pessoas que se comprimem no bastidor de melancolia. O estreito cercado vira um amontoado de parafina, o subproduto da passagem de milhares que acendem um pouco da memória de um ente querido.
“É… aqui acaba tudo”, reflete, de forma inequívoca, um homem com uniforme de empresa, aparentemente desviando alguns minutos do serviço para homenagear um parente morto. Em cada epitáfio, o resumo de uma saudade. No Dia de Finados, o fluxo de pessoas nem sempre atende a todos os jazigos. Ouve-se uma frase de alguém que parece só fazer uma visita anual ao Campo Santo, o cemitério mais antigo da Bahia, construído há 170 anos para abrigar o luto incessante da capital: “o que tá bem cuidado tem parente, o que não tá cuidado não tem parente”.
São 280 sepultamentos por mês, em média, e cada um deles tem sua própria caravana de melancolia. Entre os imponentes, que são sepultados em mausoléus concebidos como obra de arte, e os humildes, velados na própria capela e enfiados a sete palmos da superfície de um terreno concorrido, há a uniformização do lamento, independente de classes sociais. Só que nem tudo é dor e morte no Campo Santo, uma empresa que representa a sobrevivência para 52 funcionários diretos e centenas de agregados. Há também contemplação e alegria, embora a visão primordial seja de um ambiente lúgubre, temido e aterrador.
O vento quando sopra nas ruas da quadra 19 arrasta folhas e poeira, carrega besourinhos que insistem em pousar nas blusas dos desavisados. É lá que Valder Menezes descansa sua saudade matutina. A solidão de Valder multiplicada por 60, os anos de convivência com a esposa. Em frente ao carneiro gravado com o nome dela (uma gaveta em um dos muitos paredões), ele senta no banquinho branco que já deixa guardado na capela do Campo Santo. Só que é impossível descansar. Passa até duas horas lendo para ela, conversando com ela, lacrimejando com ela, um ritual obrigatório que parece minimizar o sofrimento de ser só. Tem sido assim há um ano e quatro meses, assiduidade comprovada por todos os funcionários. Qualquer um consegue reconhecer aquele senhor como o símbolo humano da resignação, embora ninguém tenha tido interesse em saber seu nome.

Aleluia
O homem do banquinho gosta da leitura silenciosa de livros, das preces sem voz, da conversa com a amada. O ordenamento litúrgico de até que a morte os separe não funcionou para ele. O falecimento da mulher provocou o distanciamento físico, mas ele recusa se afastar de um sentimento tão vívido como o amor. O nome dela é a glória: Aleluia.
Aleluia Farias Menezes, nascida a 2 de outubro de 1927, morta em 22 de agosto de 2006, conforme a lápide sempre limpa e ornamentada com flores e uma fotografia em moldura dourada, contou com a dedicação do esposo até o último suspiro. Ela, que começara a fumar desde a juventude, sem interrupções, terminou internada com complicações pulmonares, infarto e derrame, durante 120 dias. E, nestes quatro meses de agonia, o marido manteve a rotina de visitas vespertinas. Almoçava, tomava um ônibus do Rio Vermelho até o Bonfim, e ficava aguardando chegar 16h, horário que liberam a entrada de visitas no hospital da Sagrada Família. Permanecia ao lado da esposa até pouco depois das 18h, quando solicitavam sua saída.
Fez assim durante quatro meses e só percebia a pele cada dia mais escura, eliminando líquido, embora os médicos insistissem que ela estava evoluindo para a cura. Chegou a acreditar no prognóstico dos especialistas e decorou o quarto totalmente para quando ela voltasse para casa. Um dia, pouco depois das 5h, ligaram para sua casa pedindo que comparecesse ao hospital. Ele já sabia qual seria a notícia e por isso levou o dinheiro que havia reservado ao sepultamento. Injusto para Valder enterrar a esposa amada, logo ele que sempre insistiu nos perigos do cigarro, sempre foi contra, mas como percebeu que não valeria a pena continuar lutando depois de décadas, ele mesmo passou a comprar as três carteiras diárias para a mulher.
Valder se sacrificou pela esposa. Quando casaram, ele disse que ela não precisaria trabalhar, que ele proveria tudo. Hoje, está preocupado com o local onde o carneiro dela está localizado. Já comprou o jazigo perpétuo da companheira na quadra 13, por R$1100 à vista, mas só pode remover depois de 3 anos, tempo em que os ossos podem ser trasladados. “Tomara que ela não tenha mumificado para poder ser transferida para um lugar mais fechado, mais decente”.
Acordou cedo para ir à missa que freqüenta na Piedade ou na igreja de São Bento, mas não teve celebração neste dia da Conceição da Praia. Chegou antes do habitual ao Campo Santo, retirou o banquinho da sacristia da capela, onde é autorizado a guardar o assento, e foi para lá levando o livro Salvador dos contos, cantos e encantos, escrito por um velho amigo dele, Geraldo da Costa Leal.  Sonhou com Aleluia nesta noite. Ela estava em frente da casa na rua Fonte do Boi, como sempre ficava aguardando ele retornar para dar um abraço. Só que dessa vez estava chorando. “Será que ela tá precisando de mim para alguma coisa? Acho que está bem”.
Entre casais que convivem por muito tempo é comum notar que a morte de um geralmente abrevia a existência do outro. Este senhor já deixa o banco portátil branco guardado na capela para poder utiliza-lo todas as manhãs na companhia com a esposa, que jaz sob o mármore. “Peço a Deus que me dê pernas para que não possa deixar de vir aqui”.
Entre tantos jazigos, tantas orações silenciosas, uma despedida escrita em papel ofício encardido vai flanando entre os túmulos. É como se ela valesse de recado para cada um residente da cidade dos mortos. O texto sobrevoa lápides com suas letras escritas em um português apressado contrapondo a gravação no mármore, registrada para sempre com alguma tipologia imponente. “O preço da felicidade é a saudade”, assinado por Nilson, com a data 2 de novembro de 2007.
O soluço doído de um homem grisalho que passeia pelas moradas de entes queridos, dezenas deles, sempre tocando nas placas como se fizesse carícias nos nomes. Ele termina a peregrinação no túmulo da avó e ali ajoelha, encosta a testa na lápide, está prostrado pelo fardo de uma agonia reincidente. Apunhalado pelas lembranças, ele chora como se ninguém estivesse vendo, como se isolado do mundo em um quartinho onde lhe falta fôlego. É saudade que não passa e o Campo Santo cobra essa dívida em lágrimas.

CAMPO DA HISTÓRIA
Construção do Campo Santo obedeceu critérios de saúde pública e enfrentou resistência popular

Microcosmo da realidade, o Campo Santo é uma cidade mortuária que reproduz as condições de embate de classes da sociedade dos vivos. A partir da fundação, quando apenas os indigentes e escravos eram recolhidos para as covas rasas, até chegar na fase da compreensão burguesa sobre a necessidade de enterrar seus entes queridos longe das casas, o cemitério é um ponto de acolhimento sem distinção. Não chega a ser o caso de uma democracia do além, ou um comunismo para a eternidade – que iguala a todos no momento da despedida -, mas é uma síntese funérea das diferenças.
As noções de higiene e saúde pública exigiam a construção de um cemitério distante de zonas residenciais. E isso, na década de 30 do século XIX, poderia ser encontrado na estrada para o Rio Vermelho, já fora dos limites da cidade, no morro do Outeiro Grande. Na Fazenda São Gonçalo, em 1836 começa a construção do cemitério do Campo Santo, alvo de protestos da comunidade.
No início do século XIX, a pressão dos médicos sanitaristas era pela proibição de enterros em ambientes fechados. Os higienistas das décadas de 1810 e 1820 usavam a teoria em voga dos miasmas, espécies de vapores formados pela decomposição dos cadáveres, que seriam nocivos para a saúde humana. Uma lei do Governo Imperial de 12 de novembro de 1828 dotava as Câmaras Municipais de responsabilidade para legislar sobre o assunto.
A casa legislativa de Salvador decretou a postura n° 20 encerrando de uma vez por todas os sepultamentos em igrejas, conforme registrado pelo engenheiro Paulo Segundo da Costa no livro Campo Santo – resumo histórico.

Primórdios
A cidade dos mortos precede a criação humana de se reunir em aldeias. A idéia de um local para repouso eterno, segundo estudiosos, é mais antiga do que a fixação humana em outros sistemas de moradia. Uma caverna, uma cova marcada por um monte de pedras, eram os indicativos da reverência aos cadáveres.
Na cidade de Bizâncio, capital do antigo império romano do oriente, os cemitérios ficavam nas imediações das igrejas. Os rituais fúnebres eram feitos no terceiro, nono e quadragésimo dia após a morte, com carpideiras pagas. No Brasil colonial, os senhores de engenho eram sepultados no terreno de suas casas, em capelas feitas como continuação das sedes de habitação.
O primeiro cemitério a céu aberto que se tem notícia em Salvador é o do Campo da Pólvora, assinalado em plantas da fortaleza datadas de 1715. O terreno ocupava um retângulo murado no local conhecido como Pupileira. Na prática, funcionava como o espaço para a inumação dos cadáveres de escravos e indigentes. Com o início das atividades do Campo Santo, o Campo da Pólvora foi desativado e vendido em 22 de novembro de 1852 ao conselheiro Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos.

A cemiterada
Dois dias depois da inauguração do Campo Santo por uma empresa privada, em 25 de outubro de 1836, uma mobilização popular terminou provocando a demolição do muro frontal e de uma parte da capela. O que seria uma reação coletiva contra o novo cemitério terminou descrito pelo provedor da Santa Casa de Misericórdia, em 1912, comendador Teodoro Teixeira Gomes, como uma orquestração de interesses vilipendiados. No discurso, citado no livro Campo Santo – resumo histórico, ele relembra que confrarias e ordens terceiras “concitaram o povo a acometer contra o cemitério do Campo Santo; aí chegando, o galgaram e desmantelaram como se fora um bastião”.
Dias depois, a lei n°17 seria revogada e junto com ela cairia o contrato de concessão para a empresa, que seria indenizada em 12 de abril de 1839. A Santa Casa compraria, pela quantia de 10 contos de réis, o terreno totalizando 307.784 metros quadrados.
Até por volta de 1860, persistiu o costume de enterrar as pessoas em recintos fechados, em capelas, igrejas e outros ambientes privados. Os primeiros sepultamentos no Campo Santo, em 1° de maio de 1844, foram de escravos e indigentes. À época, o transporte da urna funerária já revelava uma distinção social: homens livres e nobres eram conduzidos em carros puxados por cavalos, com quatro rodas; os escravos mortos eram levados em veículos de duas rodas.
Macas feitas com panos e couro cru eram usadas para o transporte de cadáveres de pobres, com o nome de bangüês. A mudança para o Campo Santo implicava em uma distância de 4,5 quilômetros entre o Hospital da Santa Casa, na rua da Misericórdia, e as covas. Foi em 1846 que carroças começaram a ser utilizadas como forma de diminuir o esforço dos escravos.
No início da utilização de bondes elétricos no transporte urbano, em 1898, a linha de n° 7 tinha como destino o bairro da Federação. Em pouco tempo, a empresa adotou o bonde funerário, justamente para suprir a demanda dos sepultamentos. Uma oferta diversificada de veículos, conforme o relato da folclorista Hildergades Vianna, no livro A Bahia já foi assim: “havia bondes com formatos especiais, preços tabelados, conforme a classe, com o fim exclusivo de levar caixões de defunto para o cemitério. Os cheios de cortinas e sanefas, plumas e tapetes, eram para os ricos. Para os pobres havia o franguinho d´água, quase nu de adornos, com modestas sanefas, que voavam quando o veículo corria nos trilhos. O bonde-misto, conduzindo ao mesmo tempo o defunto e os acompanhantes, era ainda mais modesto. Para os remediados, contava-se com um discretamente decorado, com laços e cortinas pretas.”

Obras e invasões
Nas primeiras décadas de funcionamento, o cemitério do Campo Santo estava em obras constantes de ampliação com uma variação anual de 600 a 1300 enterros. Mas no exercício de 1855 a 1856, este número salta para 4225. E a explicação é dada na epidemia de cólera morbus que assolou Salvador em 1855. Apenas em dois anos da década entre 1852 e 1862, a balança entre despesa e receita esteve para o lado do lucro. A capela foi inaugurada em 7 de junho de 1874 e custou à Santa Casa 104:737$000 (104 contos e 737 mil réis).
As primeiras habitações construídas por funcionários que prestavam serviço ao cemitério também deram início ao processo de diminuição do terreno original da fazenda São Gonçalo, comprado integralmente pela Santa Casa de Misericórdia. Da planta inicial, o cemitério ficou apenas como uma ilha em volta de sua própria cartografia. Foi diminuído como se fora um picolé sendo mordido pelas laterais, até restar apenas o núcleo mais demorado de derreter. “A construção de muros cada vez mais altos foi a solução para impedir a perda de mais área até que não sobrasse nada”, explica o gerente do cemitério, Antônio Quadros, um senhor afável e gentil que até para falar de um tema polêmico como esse não consegue perder a paciência.
Em 2002, estimava-se que 90.000 m2 continuavam pertencendo à Santa Casa, dos mais de 300.000 m2 do terreno. Mas o levantamento topográfico mais recente, de 2007, calculou em pouco mais de 55.000 m2 utilizados pelo cemitério. Além disso, as áreas onde estão construídos dois postos de gasolina, na avenida Centenário e na Federação pertencem à instituição, mas são arrendadas.
Os mais de 200.000 m2 perdidos do Campo Santo serviram para originar os bairros do Alto das Pombas, a partir da década de 40, e do Calabar, a partir de 1970. A perda do terreno do é apontada como resultado de uma chaga social que é o déficit de habitação. Um dos últimos locais ocupados foi o Grotão da Mangueira, onde havia o projeto de construção de um cemitério vertical.
A partir da década de 70, a diminuição do espaço do Campo Santo começou a entrar em contradição com o problema da demanda de enterros. A expansão do cemitério esbarrava com a redução do espaço físico original. Em 1984, as notícias de jornal indicavam a asfixia de sepultamentos. Vinte anos depois, os enterros continuam sendo feitos, em ritmo controlado. O cemitério diminuiu de tamanho, mas supre o recebimento dos mortos, e responde pela sobrevivência de milhares de vivos.

CAMPO DA SOBREVIVÊNCIA
O comércio em torno do cemitério rende o sustento de centenas de famílias

A capela do Campo Santo: memória e lamentos na necrópole


O Campo Santo tem 52 funcionários, sendo que 35 deles são da equipe de inumação e exumação. Só que o mercado da morte garante a sobrevida de muita gente. “Não tenho dúvidas em afirmar que o cemitério é a maior empresa do Alto das Pombas. Praticamente todo o bairro sobrevive direta ou indiretamente de serviços relacionados a ele”, sustenta o presidente da Associação de Moradores, Rodrigo Alves. Desde o guardador de carro (pelo menos quatro disputam 14 vagas informais na rua lateral ao cemitério), até o gravador de lápide, muitos serviços ficam destinados a membros da comunidade. Um grupo de estudantes do ensino fundamental do bairro encarregado de fazer a pesquisa sobre a história e a cultura no cemitério e chegou à conclusão de que “a morte é vital para a maioria dos vizinhos”.
É um segmento que dificilmente enfrenta a recessão porque a demanda é incessante, a não ser que você seja um dos personagens do realismo fantástico imposto por José Saramago no livro Intermitências da Morte, onde, repentinamente, os falecimentos deixam de acontecer, estabelecendo um caos social. Apesar de a vida eterna ser o sonho da quase totalidade dos lúcidos poucos são os que refletem sobre a necessidade social da morte. A morte que libera os leitos de hospital e não prolonga a agonia da saúde pública, a morte que impõe uma salutar renovação de agentes sociais, reproduzindo o ciclo biológico que presume o amadurecimento e o fim do organismo. E, principalmente, a morte que garante a existência dos que orbitam a constelação funérea de um cemitério.
É a morte que há 35 anos norteia a vida e a obra de Ismael Santos Sales, um dos mais conhecidos comerciantes do Campo Santo. Desde criança, ele percebeu a oportunidade no momento de angústia e dor de seus clientes. Ficava rondando a porta do cemitério, fantasma pequenino em busca do lucro, com uma lata de manteiga na mão oferecendo flores de adornar jazigo, tentando cativar uma negociação em meio ao luto generalizado. Adulto, abriu uma portinha para a floricultura e, em 1988, comprou uma funerária.
Os crisântemos e as rosas são as flores mais usadas nesse ramo. A menor coroa custa R$40, a mais cara pode ser até R$200. O caixão mais barato é de R$300, o mais caro é vendido por R$8,5 mil, já com abatimento. Em Dia de Finados, a venda maior é de ramalhetes. “É um negócio que dá pra viver, dá para passar e ainda tomar uma cervejinha”, minimiza Sales, que hoje tem uma frota de três carros para entregas, e pode se dar ao luxo de deixar o filho gerenciando a empresa, enquanto ele toma a cervejinha do início de noite de sexta.
Com 68 anos de idade, José Cardoso, que tem o mesmo tempo de trabalho do amigo Ismael, não conseguiu fazer o mesmo pé-de-meia. Ele é do tempo antigo, quando Salvador tinha meia dúzia de funerárias: Ornamento, Duran, Fernandez, A Decorativa. Hoje, são mais de 90 empresas no ramo: o número de cadáveres multiplicou, mas a concorrência divide os lucros.
O velho Cardoso é da época em que se velava o morto em casa – a família alugava castiçais e decorava o recinto com tons lúgubres -, por isso seu apelido é Baú. Hoje, um óbito pode ser feito à prestação e pago em 10 vezes, o futuro defunto pode até antecipar seus gastos pós-vida fazendo uma espécie de convênio. Só que na prática Ismael, que encomendava dois caminhões de flores por semana, atualmente fica apenas com um terço de um caminhão. De qualquer forma, ele é dos que venceram na vida com a ajuda da morte.

Histórico comercial
A vocação comercial do Campo Santo é iniciada antes mesmo da construção do equipamento. A Fazenda São Gonçalo fora comprada por 6 contos de réis pela empresa Augusto Pereira de Matos & Cia, que obtivera concessão para administrar o cemitério pelo prazo de 30 anos. A Lei n° 17 da Assembléia Provincial da Bahia, datada de 2 de junho de 1835, estabelecia “privilégio exclusivo” para a empresa Cemitérios da Cidade.
Menos do que um ato de filantropia, a idéia de construir o cemitério já se revelava uma astuta visão comercial. Um dos sócios da empresa, Caetano Silvestre da Silva, acenava com possibilidades de lucros inescapáveis de acordo com a pesquisa feita pelo historiador João José Reis, no livro A Morte é uma Festa: “O dr. Caetano Silvestre da Silva, em 1836, era juiz de Direito da 1ª Vara Cível e cuidava dos bens de pessoas mortas sem testamento e/ou sem herdeiros e julgava as disputas sobre partilha de heranças. Com acesso privilegiado a dezenas de inventários, ele certamente pôde transmitir a seus sócios as informações exatas sobre o potencial lucrativo de uma empresa funerária na Salvador de 1836”.
Quinze dias depois da lei provincial, o contrato de concessão entre o Governo Provincial e a empresa estava assinado. A construção foi iniciada imediatamente como uma forma de sufocar a oposição ao privilégio de exploração exclusiva. A idéia era concluir a obra em um ano, com uma capela central, túmulos e jazigos para famílias de posses, além de covas rasas para os pobres. Como contrapartida, os empresários exigiram que o governo impusesse uma multa de 100 mil réis para quem fizesse sepultamentos em conventos, mosteiros ou confrarias. Os representantes de irmandades e paróquias foram justamente os primeiros a se pronunciarem contra a concessão. Um abaixo-assinado foi encaminhado ao presidente da província, Francisco de Sousa Paraíso, exigindo a revogação da lei 17. O principal argumento era ter vencido o prazo de um ano, já que era outubro de 1836.

Zeladores de covas
A vida por entre jazigos tem sido o sustento de gente como Hermínia, Nizete, Maria Rosa e Adilson. São zeladores de covas, guardiões de lápides que informalmente têm uma responsabilidade sobre a limpeza semanal do mármore que veda as gavetas. Referem-se a mortos e parentes como clientes, sempre munidos de alguma escova, uma garrafa plástica com água pela metade, para regar as plantas e lavar os túmulos.
Ganham R$5 a R$10 pela limpeza das gavetas e até R$20 por cada campa. Muitos já possuem os domicílios garantidos, outros ficam na entrada do cemitério abordando visitantes e oferecendo serviços. Hermínia de Jesus, avó de três crianças, sustenta praticamente a família toda porque o filho, que tem noções de eletricista, não arruma emprego em virtude de um envolvimento com drogas. Nizete Santos Silva começou nesse trabalho quando o filho tinha nove anos de idade. Agora, ele tem 28 anos e ela mantém a rotina cotidiana no Campo Santo. “É daqui que tiro meu pão de cada dia”. Adilson de Jesus, de 31 anos, é herdeiro da profissão da mãe Zilda. Ela adoeceu e não pode mais fazer o trabalho e por isso ele ficou com os clientes. Trabalha como vigia de um estabelecimento no Rio Vermelho à noite e durante o dia fica no cemitério. “Aqui é como se fosse uma empresa, com vários funcionários que formam uma família”. A administração não calcula o número exato desses ambulantes de serviços, mas estima-se que não são menos de 30 os que mantêm postos de trabalho constantes.
Em datas especiais, esse número pode até triplicar. Dia de Finados, dia de trabalho para Mário Daniel, de 14 anos, que com 1,70m e 90 quilos merece o apelido de Gordo. Ele é mais um soldado da legião de meninos zeladores de túmulos, que se armam com esponjas e garrafas PET contendo uma solução quase nula de detergente. Ele, Uéslei, Rafael, Matias, Rodrigo, Janaína, são todos conhecidos e momentaneamente rivais na disputa por clientes.
O Gordo está unido a um amigo de 17 anos, chamado Rafael Frank, que pela primeira vez trabalha no Dia de Finados no Campo Santo e por isso ainda tem certos pudores. Vale a pena acompanhar essa dupla. O Gordo já conseguiu mais de R$30 fazendo limpezas displicentes e apressadas em lápides. Rafael conseguiu cativar a primeira cliente só agora, depois das 15h, uma senhora que ele vai apoiando na mão, em uma caminhada lenta e respeitosa. Seu parceiro, ao contrário, vai andando rápido na frente, querendo chegar logo à campa onde pretendem limpar. Antes, ele tivera a ousadia de pedir uma carona no carrinho onde o coveiro transporta uma lápide e só não recebeu um cascudo como resposta por causa do espírito de introspecção da data.
Chester, este é o apelido de Rafael, ouve o lamento da madame até chegar ao local onde estão depositados ossos dos avós, do pai e da tia. Ali, eles trabalham por uns 10 minutos na lavagem, no plantio de novos ramos de flores e por fim estendem as mãos para não receberem nada. A senhora paga o serviço com um módico “Deus te guarde”. Nenhum valor tinha sido acertado previamente pelo neófito Chester e por isso o Gordo fica indignado. “Você me fez trabalhar de graça”, reclama, emburrado, andando com as coxas se espremendo em uma bermuda apertada. “Mas rapaz, Deus nos ajuda”.
Só que os benefícios divinos não são suficientes para o Gordo. “A bondade que você faz de graça não volta pra você de forma nenhuma”. E já segue adiante reclamando que Cabelinho está roubando uma cliente dele. É Dia de Finados e todos os meninos que ainda não pensam na morte têm pressa para ganhar uns trocados.

CAMPO DE CLASSES
A reprodução de diferenças sociais acompanha cadáveres até o abrigo da morte

Numa área marginal a ribanceira, com 5500m2, cerca de 1100 covas rasas atendem aos sepultamentos gratuitos do Campo Santo. As lápides funcionam como registro de um endereço para a eternidade e resumem o início e o fim de uma existência. Alguns têm as casas cobertas de heras, outros poderiam ser premiados com uma nova demão de tinta branca. Alguns partiram no ano passado, outros viveram pouco e deixaram pais saudosos de um maior convívio. Alguns foram sepultados há tão pouco tempo e já parecem tão abandonados.
As covas rasas estão nos fundos, escondidas dos olhos do visitante comum porque apresentam uma uniformidade triste, reduzem o cemitério a um mero local de aproveitamento de sete palmos de terra. Nas áreas mais visíveis, os mausoléus apresentam o contraponto estético e conceitual aos túmulos escavados no chão. “O cemitério é um duplo da cidade dos vivos, é como se fosse um prolongamento e um desdobramento. Então, vai-se encontrar no cemitério, além de toda a diferença de classes, a história das formas de viver e morrer na Bahia. O carneiro corresponde na Bahia ao aparecimento dos apartamentos e do apart hotel; o túmulo do casal corresponde ao sobrado, e o mausoléu às grandes mansões”, reflete o antropólogo Roberto Albergaria, que estende a associação até a tendência à cremação, que seria “uma onda de higienismo mais high tech”, com direito a uma desmaterialização asséptica.
“O Cemitério do Campo Santo é uma cidade em que se configura, de forma inusitada, a mesma divisão de classes que é vista numa cidade normal, com bairros de classes alta, média e baixa. Há também as periferias e as favelas, que são as covas rasas, as mesmas categorias sociais que se configuram nas cidades dos vivos”, opinou a professora de história da arte da Faculdade de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Maria Vidal Camargo, quando perguntada sobre o tema para uma reportagem em 2003.

A morte em castas
Os registros de sepultamentos no início das atividades do cemitério mostram a variedade que alguns utilizam como sinônimo de igualdade na morte. Além dos nomes e das datas de falecimento, dados como estado civil, profissão e causa da morte servem para identificar os cadáveres em cada degrau da pirâmide social. Domingos Borges de Barros, morto a 8 de maio de 1855, é identificado apenas como Visconde de Pedra Branca. Já sobre Luiza Maria da Piedade, falecida em 10 de dezembro de 1860, sabemos que era preta, morreu aos 50 anos, phtyzica, solteira e oriunda da África. Em 26 de Abril de 1876, morreu de “moléstia interna” Estephania Adine, 43 anos, branca, Paris, irmã de caridade, em contraposição a Anna Rita, ceifada pela mesma causa mortis, com 20 anos, África, preta.
Até 1850, a situação física do Campo Santo não tinha qualquer planejamento paisagístico e estava longe de ser um espaço atrativo ao descanso eterno das classes mais abastadas. Só em 1846, dez anos após a cemiterada, o muro frontal que havia sido derrubado foi reconstruído. Um relatório do mordomo do Campo Santo datado de 21 de julho de 1844 aborda as precariedades do espaço e remonta um ambiente que parecia ermo: “cumpre que se cuide em aformosear o cemitério, com plantações de arbustos e flores, e mandando-se buscar alguns túmulos de mármore para serem vendidos a quem os quiser, promovendo-se assim, sem muito custo, a adoção desses monumentos consagrados à dor e à saudade”.
Outro relatório, de 25 de julho de 1851, assinado pelo mordomo Manoel José de Magalhães e transcrito no livro Campo Santo – resumo histórico, dá uma noção de como evoluíra a ocupação na cidade dos mortos. “existem dois quadros, um mais novo que contém 458 sepulturas, das quais as mais antigas têm um ano; neste quadro é onde se enterram os cadáveres de pessoas livres; o quadro antigo contém 319 sepulturas, e nele já não existe nenhum lugar”.
Um dos trechos mais pitorescos trata da remuneração do capelão contratado para prestar serviços no cemitério. Além do salário, ele tinha que receber a alimentação do cavalo. “Existem dois empregados, sendo um o Capelão com o ordenado de 260$000 que foi contratado para ir a seus enterros e missas; casa de morar, e um feixe de capim diário para sustento do seu cavallo; o outro é o Guarda com o ordenado de 300$000. Convém que a Mesa mande fazer outro sumidouro; casa de morada para o Guarda.”

Nuances de atendimento
Há um embate nítido e muitas vezes hostil nos balcões onde o cemitério é tratado como negócio, onde um enterro tem que ser traduzido em um contrato e nas cifras que ele representa. A diferença é nítida quando se trata de parentes de uma pessoa que tem uma causa mortis natural e esperada. Estas mostram resignação, estão conformadas e quase sempre cumprem o ritual sem exaltação.
Os familiares de um morto de forma violenta ou muito jovem estão sempre alterados, nervosos, podem explodir como uma bomba-relógio sentimental. São eles que merecem uma atenção quase paternal dos funcionários, principalmente nas situações em que o desespero se confunde com agressões. “Ninguém vem para um lugar desses satisfeito ou para se divertir. Aqui é a consolidação da morte, o local onde geralmente cai a ficha para os parentes que vão pensar: botou na sepultura não tem mais jeito”, justifica o supervisor Ancelmo Menezes.
Essa erupção de decepções provoca episódios de grosseria, para dizer o mínimo. Um treinamento específico de atendimento para situações-limite começou em uma sala no andar superior da capela. A intenção é ensinar aos colaboradores como fazer um controle de raiva, minimizando o desgaste em casos onde um copo d´água é jogado no rosto de uma recepcionista. “É preciso muito cuidado até com a colocação de uma simples palavra, que pode ser interpretada por uma pessoa como um desrespeito à memória do falecido”.
“O Campo Santo é uma escola de atendimento”, avalia Ancelmo, que gosta de falar que no local onde trabalha não tem oportunidade de dizer “seja bem vindo” ou “volte sempre”.
As paredes de carneiros são tão uniformes de modo que algumas caixas mortuárias ficam muito parecidas. Tirando o nome ou uma ou outra característica fica difícil identificar logo de cara. Dá para perceber que alguns se atrapalham e podem dirigir as primeiras orações ao túmulo errado. Nesse ambiente onde não dá para aprimorar os conceitos de receptividade, há a partida motivada pelo erro.
Hélio Silva era funcionário há 25 anos, estava prestes a receber certificado e medalha de bons serviços prestados, mas terminou demitido por justa causa depois de ser flagrado em reportagem da TV Aratu comercializando arcadas dentárias. A venda era supostamente feita para estudantes de odontologia. A explicação dada pelo funcionário é de que retirava os ossos da cova coletiva, onde vão parar os restos mortais que não são reclamados por parentes no tempo hábil. A atividade criminosa foi punida até mesmo para servir de exemplo a outros funcionários. “Constantemente, somos assediados por estudantes que querem comprar ossadas, mas isso não é permitido. Depois desse episódio, se havia algum funcionário que fazia o mesmo, ele vai pensar duas vezes”, aposta Ancelmo Menezes.

CAMPO DA ARTE
Transformação de cemitério em circuito cultural ressalta a beleza das obras nos túmulos


Um pequeno templo à saudade, um mausoléu erguido em brancas lajes, com uma capela de dimensões reduzidas, chama a atenção na lateral da igreja do cemitério. É a homenagem de um marido apaixonado feita ainda no Anno de Nosso Senhor Cristo de 1885: “à memória de sua esposa Hermínia Ferreira Santos Alliom mandou seu marido construir este jazigo”. A reverência de 120 anos atrás perdura e continua encantando. O imóvel é parte do Circuito Cultural, onde um totem explica que a capela gótica é construída em mármore de Carrara, concebida pelo genovês Ângelo Ortelli, em 1884.
Antes mesmo de receber o status de uma espécie de museu a céu aberto, o cemitério tinha virado centro de estudos interdisciplinares. Alunos de arquitetura, belas artes, moda e, ultimamente, turismo visitam não para reverência a entes queridos que estejam sepultados, mas como pesquisa de campo.
Lucineide Bispo dos Santos percorre o Campo Santo como se participasse de um seminário. Com anotações em um papel, fotografias, ela vai finalizando o trabalho de conclusão de curso de Turismo na Faculdade São Salvador. Com as colegas Ana Patrícia Oliveira e Miriam Souza, resolveu fazer a monografia Campo Santo, um novo olhar sobre o turismo, abordando a prática como uma alternativa de atração de visitantes para Salvador. Descobriram que turistas de outros países estiveram recentemente no Campo Santo para apreciar as obras de arte sobre as lápides.
No Père-Lachaise, em Paris, no Lês Moreres, em Barcelona, e no Recoleta, em Buenos Aires, este filão já é explorado há anos. “Aqui nós temos um cemitério rico, de inestimável encanto. Vale a pena visitar não pelos mortos ilustres, mas pelas obras-primas”, recomenda Lucineide Bispo.
Patrícia Noelle e Alana Alves, ambas do 4º semestre de Decoração da Ufba, e Amine Barbuda, do 6º semestre de arquitetura, escolheram o local como cenário para um trabalho de faculdade. Elas fotografam formas e designs, vêem inspiração onde a maioria só percebe morbidez.

Socialização e arte
A museóloga Jane Palma, criadora e coordenadora do Circuito Cultural, precisou reorganizar as próprias convicções religiosas forjadas no candomblé para enxergar a riqueza da arte cemiterial. “Havia uma idéia errônea sobre transformar o cemitério em um museu. O circuito tem como objetivo desmistificar o espaço cemitério, tirar o peso e mostrar que não é apenas um local de adeus, dor e tristeza. Pode ser pesquisado e é de fundamental importância para a evolução urbana”.
Para conceber o circuito, Jane passou quase três anos assistindo a movimentação no cemitério. Nos velórios, percebia que muita gente se reencontrava e algumas pessoas iniciavam contatos, um ambiente de socialização.
A montagem do circuito não foi feita visando túmulos de personalidades, como existe em outros cemitérios do mundo. Pode ser, em casos como os mausoléus de Octávio Mangabeira e Lauro de Freitas, que estética e notoriedade se encontrem. Na análise da arte cemiterial, cada elemento é signo de um sentimento, cada imagem representa uma mensagem universal. Os desejos do falecido são expressos em esculturas que, perto de um jazigo, ganham uma interpretação própria. As colunas, que na arquitetura tradicional têm função de estrutura, na arte cemiterial podem representar a eternidade (se estiver em fundo vazado), a proteção para a alma (com fundo fechado), ou o pilar da família ter ruído (se ela aparecer quebrada).
A rosácea com oito pétalas dentro de um círculo é símbolo de poder gerador e representa equilíbrio cósmico. A morte pode ser protagonizada na imagem de um homem sem camisa com um martelo, ou então pode ser uma menina-moça com uma palma próxima a um jovem robusto carregando a chama da vida. Nesse caso, a família queria mostrar uma partida considerada prematura, como a de Lauro Farani de Freitas, morto em acidente de avião, aos 49 anos.
A Estátua da Fé, tombada em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ergue-se imponente em tamanho natural sobre o mausoléu da família do Barão de Cajahyba. A obra esculpida em bloco único de mármore Carrara, com 1,92m de altura, é a identificação do Campo Santo em todo o mundo. A mulher veste uma túnica longa e um manto, tem uma coroa de louros na cabeça e segura uma cruz na mão direita, enquanto a esquerda é apontada para o céu. O trabalho se destaca pela simetria e proporcionalidade, em que a toga parece cair com leveza sobre o corpo feminino.
Os símbolos são de fácil associação: a mulher representa a fé, e a cruz a fé cristã, a coroa de louros significa vitória e o manto é uma proteção. O trabalho feito pelo alemão Johann von Halbig, em 1865, foi comprado por Alexandre Gomes Ferrão d´Argollo, o Barão de Cajahyba, na ocasião da morte do primogênito José Joaquim, de 20 anos, na Baviera. Em 1973, o monumento foi doado pela família ao Governo da Bahia. O Barão de Cajahyba, considerado um senhor de engenho cruel, responsável pela perversidade e castigos aos escravos, tornara-se um mecenas da mais significativa dádiva da arte tumular do estado.

Campo da alegria
O último sepultamento é marcado para 16h30, mas todos sabem que até as 17h sempre há trabalho. Há um ambiente de alegria, até mesmo com confraternizações depois do expediente e comemorações dos aniversariantes do mês. Em pleno santuário de reverência à morte, os aniversariantes são brindados com uma festinha, com direito a refrigerante, brigadeiro e tortas. Há vida no Campo Santo.
Ancelmo Menezes, o prefeito da cidade dos pés juntos, ganhou esse título honorífico dos conterrâneos de São Sebastião do Passe. Ao contrário dos colegas que evitam falar que trabalham no cemitério, como se isso fosse denunciar alguma moléstia contagiosa, e geralmente despistam afirmando que são funcionários da Santa Casa de Misericórdia, ele assume a condição de supervisor do Campo Santo com a mesma empolgação com que alguém levanta a taça de campeão do torneio de futebol dos rodoviários. Há 13 anos, é dele a missão de intermediar interesses, fiscalizar o trabalho no campo e mais do que tudo colecionar as histórias que subvertem o sentido lúgubre do cemitério.
O cemitério é um local onde se guardam ossos e não jóias. Apesar desse princípio em que uma urna funerária pode ser qualquer coisa menos um cofre, muitos bens preciosos ou de valor meramente sentimental podem ser enterrados junto com um corpo. Basta uma escavação aos mais profundos esconderijos dos objetos para a surpresa e o encantamento. São itens que falam muito sobre a vida e a personalidade do defunto, como colher de pedreiro, capacete, trena, luvas, no caso de operários enterrados nas covas rasas. Entre os fidalgos, garrafas de whisky ou destiladas para o caso de não existirem botequins no além. De meninas a senhoras, muitas são as que ficam com bonecas. Há os fanáticos que são acompanhados pelos artistas representados em discos e CDs. Só que os artigos mais utilizados neste tipo de homenagem fúnebre, de acordo com os coveiros, são camisas e bandeiras do Bahia.
Houve o piadista que ficou famoso entre os funcionários porque chegou para o enterro da mãe já contando uma lorota do papagaio. Assinou o contrato do jazigo emendando a última do português. No meio do velório, alguns parentes choravam e ele, filho da defunta, se divertia falando anedotas politicamente incorretas. O pior é que o homem tinha mesmo vocação para humorista e muitos não conseguiam reprimir um riso, mesmo que fosse constrangido com a situação.
Só antes do funeral, ele resolveu explicar que tinha feito um acordo com a mãe em estado terminal e que ela pedira para ter alegria na cerimônia, nem que fosse com ele contando piadas. O filho cumpriu com requintes de comicidade a promessa. Até o fechamento da sepultura animou a cena, enquanto os mais tradicionais continuavam as orações e mostravam o desconforto com o inusitado festival de chistes. Outros tentavam controlar o riso, mesmo sabendo que o filho estava apenas executando o último desejo da falecida e não treinando para a olimpíada mundial de exóticos.
Um tipo de humor involuntário foi o que ocorreu no enterro de um senhor fidalgo, funeral bastante concorrido, que virou lembrança fácil e rápida na cartilha de gafes decorada por coveiros e auxiliares. No meio da despedida, um dos amigos com aparência que tinha afogado a saudade em algumas garrafas de cachaça pediu a palavra para recordar o companheirismo que vinha desde a infância em comum com o ilustre. E nas reminiscências juvenis do homem, ele desfilava memórias da época em que trocavam amabilidades do tipo “abaixa que lá vem p…”. O mal estar quase se transforma em gargalhadas dos funcionários, que precisaram disfarçar a vontade de rir. Uns e outros se esforçaram para abafar o discurso por demais afetuoso e tirar daquele ambiente o lastimoso amigo. É mais uma história concebida na morte, que enche de vida o Campo Santo.

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